A arte do blend no Vinho do Porto

Ramos Pinto

Fotografia: Fabrice Demoulin
Célia Lourenço

Célia Lourenço

“Os blenders são cuidadores dos stocks. Recebem um património e devem entregá-lo à nova geração”. É sob esta premissa que Ana Rosas trabalha os vinhos do Porto da Ramos Pinto, casa com historial que desafiou convidados e jornalistas a perceberem melhor os bastidores de um blend da categoria Tawny. 

 

Início de novembro. A Ramos Pinto promoveu uma master class dedicada a um tema fascinante: o blend de tawnies. Esta prova para profissionais teve lugar no hotel Pestana Palace, em Lisboa, e inseriu-se numa agenda que se estende a mais três cidades: Paris, Londres e Nova Iorque. Ana Rosas, a master blender da casa Ramos Pinto, dirigiu a prova e mostrou a elevação de um trabalho que envolve elementos tão delicados quanto complexos.

Na Ramos Pinto, casa muito focada em Vinho do Porto, fundada em 1880, a sala de provas é, desde sempre, partilhada por uma dupla. Atualmente, Ana Rosas tem João Soares como braço direito. Esta equipa sucede a João Nicolau de Almeida e Fernando Soares – o primeiro, tio de Ana, o segundo, pai de João. É uma linha familiar, como um legado ou património de conhecimento e “saber fazer” que cada um enriquece e passa à geração seguinte. Mas a geração seguinte não inicia o trabalho após a anterior ter concluído o seu. São necessários muitos anos para a equipa “rookie” formar a sensibilidade, o rigor de prova, a memória dos vinhos velhos e apreender o estilo da casa. Esses anos são passados a ver criar lotes e a perceber as decisões tomadas perante dezenas de amostras.

A primeira parte da prova, com um blend da vindima de 2015, pretendeu mostrar as características que um vinho deve ter para ser selecionado para envelhecimento. Este vinho foi vinificado em lagar, é proveniente da Quinta do Bom Retiro (Cima Corgo) e é encorpado, tem bons taninos, estrutura e frescura. Para ser Vintage precisava ainda de mais estrutura e robustez. O destino será, então, integrar lotes de LBV e ser deixado em casco para futuro uso em tawnies.

Ficámos, depois, a conhecer o Quinta da Ervamoira 10 Anos, o Quinta do Bom Retiro 20 Anos e o Ramos Pinto 30 Anos. Cada casa de Vinho do Porto tem um estilo distinto, existindo um perfil padrão do IVDP – Instituto dos Vinhos do Douro e Porto para cada categoria. Estas categorias superiores de tawnies são vinhos que resultam de lotes que implicam o absoluto conhecimento de todos os vinhos existentes, das combinações prováveis, da arte de harmonizar aromas, sabores, idade, frescura, complexidade. É, sem dúvida, o mais importante e exclusivo trabalho do blender que tem de perpetuar o estilo da casa em cada vinho que cria (lia-se no convite da prova que o Tawny é o “mais humanizado estilo de Vinhos do Porto”).

Nas palavras de Ana Rosas, o 20 Anos é o “Príncipe dos Tawnies”. E foi exatamente esse vinho que fomos desafiados a terminar.

Todos os participantes tinham à frente um blend kit. O exercício consistia em, a partir do modelo fornecido, o Quinta do Bom Retiro 20 Anos, terminar o lote que havia sido aprovado pelo IVDP no início do ano (após algum tempo o vinho altera-se, pelo que deve ser provado e levemente retificado de forma a repor as características sem alterar as análises). Tínhamos o vinho base (20 Anos) e seis amostras com características e idades muito distintas: “W12 Anos”, “30 Anos RP”, “40 Anos RP”, “WWWW 60 Anos”, “Colheita 1924” e “Colheita 1909” (o casco mais antigo do stock da casa), estes três últimos chamados “bonificateurs” (vinhos muito velhos, usados em pequenas quantidades).

O entusiasmo tomou conta dos participantes e, entre a descoberta do quanto a adição de apenas umas gotas de vinho muito velho altera o aroma do vinho base, e as múltiplas combinações que aquelas amostras permitiam, lá se chegou à conclusão que a fórmula era 23,5 ml do vinho base, 1,5 ml de “30 Anos RP” e 0,8 ml de “Colheita 1924”.

O respeito por tudo o que estava à nossa frente era imenso… Ana ia descrevendo o trabalho na sala de provas por analogia ao processo de análise e tentativas que cada um ia desenvolvendo. O grande trabalho do blender é feito com os aromas e ganha uma dimensão quase coreográfica. O silêncio, os gestos repetidos, os copos alinhados, o eterno retorno.

No final, foram provados dois vinhos da Quinta do Bom Retiro, ambos de 1924, um Vintage e um Colheita. Estes vinhos saíram das mãos da primeira dupla de blenders da casa, António Ramos Pinto e Spratley. O Colheita tem uma cor de iodo, aromas de casca de tangerina, café e uma potência que contrasta com a expressividade mais subtil do Vintage. Este, um vinho que se vai mostrando em notas de tabaco de cachimbo, com uma boca viva e alguma secura (quase excêntrica). Exatamente nesta linha foi provado o Vintage 2014 (Bom Retiro), o qual, 90 anos depois, se apresenta igualmente como um Vintage mais seco que o habitual e temos a tentação de achar que percebemos. Que em 1926 aqueles vinhos de 1924 eram assim… 

Toda a beleza que envolve um Tawny, o mistério dos aromas e das cores, a afinação do que parece perfeito, remete-nos para o campo da arte. Esta prova mais não foi que uma aula de estética. “Os blenders são cuidadores dos stocks. Recebem um património e devem entregá-lo à nova geração”, ouvimos de Ana Rosas.