A Madeira Filosofal

Fotografia: Fotos D.R.
José João Santos

José João Santos

Há vinhos que podem ser prosa e poesia, que podem ser vilões do tempo ou guardiães de memórias. Desafiam o nosso entendimento e ora nos fazem sentir deuses, ora comuns mortais. Pelo menos uma vez na vida deveríamos provar vinhos como os que foram apresentados na segunda edição da “Madeira Wine Experience”, no Palácio de Seteais, em Sintra.

 

“O sonho é vinho, é espuma, é fermento…”. Assaltam-nos estas palavras de António Gedeão na célebre “Pedra Filosofal”. Também como ele, uma espécie de alquimista poeta, tantos que fazem vinho parecem querer proporcionar poesia pura e encantatória. A diferença é que muitas vezes não escrevem ou pronunciam uma única palavra; deixam que o vinho se expresse por si só.
É difícil fugir a escritores e poetas, cingirmo-nos ao simples relato de acontecimentos, quando tudo se parece com um conto e tem Sintra por cenário. Melhor, o Palácio de Seteais, num chuvoso final de tarde de sábado de novembro. O enquadramento é único, não apenas pelos jardins exteriores como por toda a envolvente de edificado e de mata, num dos mais bonitos e compreensivelmente visitados centros históricos do país.
Seteais foi mandado construir pelo Marquês de Pombal no século XVIII para o cônsul e empresário holandês estabelecido em Portugal, Daniel Gildemeester. O dito cônsul recebera do marquês o monopólio da exportação de diamantes e acumulou uma senhora fortuna. Aliás, foi também dono do Palácio das Janelas Verdes, em Lisboa. Mas até os melhores contos conhecem reveses. 


Continuando na senda dos escritores, o eterno Eça de Queirós, em “Os Maias”, haveria de se referir a Seteais para sublinhar o desleixo “daquele vasto terreiro coberto de erva, com o palacete em fundo, enxovalhado, de vidraças partidas(…)”.
Longe, felizmente bem longe vão esses tempos de declínio. Em 1946, o Estado adquire o palácio e ali permite, a partir de 1954, ser feito um hotel de luxo. O edifício, que terá sido arquitetado por José da Costa e Silva, mantém o lado clássico e de romantismo, sendo hoje um imaculado cinco estrelas do grupo Tivoli. Alberga mais de 2.000 trabalhos artísticos, da pintura à tapeçaria, das gravuras às porcelanas, do mobiliário aos óleos e aos murais, sem esquecer os frescos mitológicos. São 30 quartos num palácio que parece de sonho e que foi, uma vez mais, escolhido para uma prova com vinhos que nos fazem igualmente sonhar, por vezes até divagar.
Paulo Cruz, que naquele dia celebrava os 91 anos do carismático Bar do Binho, andava numa roda- viva. Escolhera Seteais por tudo o que descrevemos mas, e sobretudo, por ser um palco invulgar para provas raras como esta segunda edição da “Madeira Wine Experience”. O mentor do também famoso “Porto Extravaganza” é hoje dos principais divulgadores de vinhos fortificados e mais do que estar focado nas categorias especiais gosta de promover momentos em que as expetativas simplesmente não se cumprem, são superadas.


Numa sala de Seteais, 40 privilegiados preparavam-se para provar nove vinhos raros e exclusivos, que ajudam a perceber o porquê da imortalidade e da indestrutibilidade do Vinho Madeira. Afinal, se o vinho mais antigo em prova, o Leacock’s Sercial Solera 1860, iria prometer muitas mais décadas de sobrevivência, onde está o exagero?
Num processo meticuloso e literalmente trabalho com pinças, Paulo Cruz abrira as garrafas na quarta-feira anterior à prova, decantando respeitosa e cuidadosamente cada vinho. Na véspera, sexta-feira, os vinhos regressaram às garrafas e foram finalmente vertidos para os copos horas antes do início da degustação. Espreitamos a sala de apoio, onde todo o processo decorreu, e é bem provável que uma certa porção dos anjos ainda se faça por lá sentir nestes dias. Poderemos interpretá-la como um elixir da eterna juventude, não estivéssemos nós a falar de vinhos Madeira, mas é mais rigoroso entendê-la como um perfume.

Vinhos sem idade

Finalmente sentados na sala principal, a primeira parte fora reservada à apresentação do novo projeto Ilha – três curiosos vinhos DOP Madeirenses, um branco blanc de noirs, um rosé e um tinto, exclusivos da casta Tinta Negra e com assinatura de Diana Silva. Sangue novo a partir da casta mal-amada na Madeira, refletida numa trilogia de vinhos que merece prova nem que seja pela curiosidade de testar algo de diferente.
Cumprida uma pausa e eis que, um a um, os nove magníficos vão chegando.
Como acontece nestas ocasiões, o patamar está de tal modo elevado que qualquer vinho que fique uns degraus abaixo da excelência pode ser rapidamente injustiçado. Pelo contrário, os que melhor se expressarem facilmente levitam até aos céus, esgotando-nos os predicados, esmifrando-nos os descritores.


Sendo impossível na maioria destes vinhos afirmar com todas as certezas do mundo as etapas que conheceram até à data – a eterna questão da rastreabilidade dos vinhos muito velhos – , não deixa de ser comovente percecionar como se apresentam após tantos e tantos anos. Analisando o bloco de notas, acidez, frescura e longevidade são das palavras mais recorrentes. E isso diz tudo, não?
Como cavalos sem freio que galgaram o tempo com voracidade e sem temer o que fosse, muitos destes vinhos apresentam-se ainda jovens apesar de, na verdade, serem já bem mais do que centenários. O Leacock’s Sercial Solera 1860, por exemplo, está prestes a celebrar 160 anos (!) mas dá-nos a certeza de ter ainda muita estrada para andar. O Artur Barros Sousa Malvasia Cândia Fajã dos Padres 1934 impressiona pela sucessão de camadas de aromas e de notas gustativas, tendo uma viscosidade marcante. O Blandy’s Bual 1920 é como que o paradigma de um Vinho Madeira perfeito – na elegância do nariz, na integração da acidez com o volume, no final distinto. Melhor ainda, será relançado em 2020, nesse ano com o brilho suplementar de ser centenário.
A prova termina como quase sempre nestas ocasiões, com as garrafas vazias colocadas numa espécie de santuário, venerado e fotografado dezenas e dezenas de vezes. Mas não há “likes” nas redes sociais que possam encher-nos mais o ego do que estes vinhos. É que naqueles instantes, nós, os comuns mortais, sentimo-nos como eles, os vinhos imortais.


Os nove, um a um

19,5
Blandy’s Bual 1920

Aloirado. Muito elegante nos aromas apetrolados e de breve iodo, flor seca e folha de chá. A acidez gigantesca está perfeitamente integrada com o volume e o toque final, a lembrar tabaco, só o valoriza. Combiná-lo com um charuto poderá levar-nos ao Éden; apreciá-lo a solo é sentirmo-nos pequenos deuses. Será relançado em 2020.


19
Leacock’s Sercial Solera 1860

Aloirado. Notas de restolho e de fruto seco. Bastante tenso na boca, com um volume gigante, em que a acidez nos parece cortar a gengiva. Está com perto de 160 anos mas mantém-se novo. Sim, novo! Esteve à venda até meados dos anos 80 do século passado e quem ainda tiver uma garrafa tem vinho para muitas outras décadas.


19
Artur Barros Sousa Malvasia Cândia Fajã dos Padres 1934

Mogno. Convence desde logo no nariz, mas é impossível de adjetivar tamanho o rol de notas: flor seca, caramelo e fruto caramelizado, iodo… tudo em camadas sucessivas. A estrutura é brutal e o final prolonga-se por minutos. A viscosidade que deixa nas paredes do copo espelha o portento que é. Que vinho!


18,5
Adega Torreão 1875

Aloirado. Notas de caramelo e algum licor, ligeiro verniz e fundo salino. Antecipa ser fresco mas não é dado a facilitismos. Acidez bem integrada e lado austero, quase amargo, que o eleva de patamar. Foi novamente engarrafado em 1963.


18,5
Padre Vale Verdelho 1913

Aloirado. Bastante aromático, com verniz em primeiro plano, seguindo-se fruto caramelizado e iodo. Como uma onda, vai balanceando estrutura e acidez até projetar um final que mais parece não ter fim. Um grande vinho!


18
Blandy’s Centennial Blend Eng. 1995

Um blend das cinco principais castas brancas da Madeira. Cor mogno. Nariz de folha de chá seca, uma nota medicinal e um toque de vinagrinho. Doçura e acidez em equilíbrio, tendo argumentos para continuar em garrafa.


18
H.M. Borges Malvasia Solera 1880

Cor quase mogno. Breve caramelizado, a que se junta uma nota de folha seca e um complemento de querosene. Mais expressivo na boca, volumoso mas sempre fresco. É outro jovem, que parece estar só agora a iniciar caminhada.

17,5
Artur Barros Sousa Bastardo Reserva Velho Eng. 1996

Aloirado. De nariz discreto, é a salinidade o denominador comum e dominante em toda a prova. Bastante seco e afirmativo, finaliza com frescura.

17
Padre Vale Avozinha 1883

Quase acastanhado. Aromaticamente distinto de todos os outros. Nota química muito evidente, a lembrar tintura de iodo e verniz. Rugoso e rústico, deixa uma sensação final mais pesada. Do início ao fim é força bruta e estrutura.