A Virtude das Virtudes

Fotografia: Fabrice Demoulin
Célia Lourenço

Célia Lourenço

O mundo dos vinhos tem, por vezes, histórias originais. Como esta em que, a partir de um trator, começou a produzir-se vinho.

 

Ainda com história muito recente, a Vinha das Virtudes localiza-se em Évora e nasceu de um improvável acaso. Estivemos com o produtor, José Rodrigues, engenheiro e empresário de Setúbal, que nos conta como tudo aconteceu há pouco mais de meia dúzia de anos. Em 2011, compra um monte cujo objectivo primeiro era passar tempo de qualidade, no campo, com a família e com os amigos. Essa propriedade fazia parte da Herdade da Avessada, que foi loteada e cada lote vendido com uma casa. Para fazer um pequeno pomar, comprou algumas alfaias e um trator. Pelo investimento, todos concordaram que o trator merecia uma garagem, mas, pelo facto de a propriedade se encontrar em área protegida da Rede Natura 2000, não era autorizada qualquer área de construção adicional. Na Câmara Municipal, recebeu informação que só conseguiria construir ao abrigo de um projeto industrial. E, por gostar de vinho e até ter planos para uma vinha (à data, sem qualquer ambição, a não ser fazer vinho para ele próprio), pensou que poderia precipitar a decisão e antecipar o projecto da adega.

A autorização para a vinha tinha como limite 2,5 ha. Então, com uma adega própria, pensou noutra escala e, para conseguir ter mais vinha, acabou por comprar o lote contíguo, o que lhe permitiu duplicar a área. Quanto ao projeto da adega, foi a partir dele que construiu a sua equipa, uma vez que foi exactamente o arquiteto que lhe apresentou aquele que é hoje um grande amigo, Pedro Baptista, enólogo da Adega da Cartuxa (Fundação Eugénio de Almeida), já com a responsabilidade de sete Pêra-Manca tinto no curriculum.

Como José Rodrigues nos diz, parece romanceado, mas é verdadeiro, a partir de um trator começou a produzir vinho. E só em 2018, o dito trator teve finalmente um telheiro porque tudo o que se foi conseguindo construir conheceu sempre outras prioridades (o vinho, claro).

Uma Vinha feita de Humildade

Na Vinha das Virtudes, os solos são derivados de granito e as cepas são muito jovens. A plantação aconteceu em 2012, um ano antes do início da construção da adega. A base do projeto é Syrah, havendo também Alicante Bouschet, Touriga Nacional, Aragonês e Cabernet Sauvignon, nas tintas. Para as variedades brancas, a escolha recaiu sobre Antão Vaz, Arinto e Viosinho. Quanto ao nome escolhido para estes vinhos, o nome original da propriedade, Monte da Ribeira, tinha o problema de ser já conotado com outras herdades e outros vinhos. Havia, então, que encontrar alternativa. O grupo de trabalho, que integrava também Pedro Baptista, recorreu à história riquíssima da época romana naquelas paragens. Terá sido a partir de pesquisas do arquiteto Jorge Fragoso Pires, autor da adega, que chegaram a Prudêncio, poeta romano que viveu entre 348 e 410, e ao seu poema épico “Psychomachia”. Este poema retrata a luta dos pecados mortais contra as virtudes, no qual as virtudes ganham sempre. O nome Vinha das Virtudes foi consensual e o produtor registou as sete virtudes, nos seus nomes latinos, para possíveis vinhos, tendo sido logo adoptados três: Liberalitas (generosidade), para a gama de entrada, Humanitas (caridade), que se materializou no Reserva da casa, e Humilitas (humildade) para o topo de gama (quando aparecesse algo que merecesse o desígnio).

E a verdade é que, para surpresa inicial de todos, o primeiro Humilitas acontece logo em 2015. Pedro Baptista, na ponderação e rigor que lhe reconhecemos, diz-nos que, a uma certa distância de tempo, não foi afinal uma surpresa tão grande. Quando se analisa o ano, o trabalho, a vindima, a dedicação, o profissionalismo e o carinho com que tudo foi tratado, foi um reconhecimento da natureza. E esse reconhecimento máximo da natureza recaiu sobre a Touriga Nacional, que se transformou num vinho com grande sentido de lugar. Tem a exuberância, profundidade e alegria da Touriga, enquanto remete para o classicismo alentejano, de terra quente e fruta gulosa. Deste vinho, foram feitas apenas 1.050 garrafas. A Vinha das Virtudes produz cerca de 15.000 a 20.000 garrafas anuais e Pedro Baptista diz-nos que estes vinhos têm uma abordagem clássica do ponto de vista da produção. Aliás, comum a todos os vinhos que provámos está exatamente um perfil clássico e uma tipicidade alentejana.

Todo o projeto revela uma dedicação comovente. Senão, vejamos. Estamos numa pequena propriedade numa região de latifúndio. A vinha tem escala a condizer, sem hipótese de aumentar a área. A adega tem pouco mais de 600 m2. Envolvido em tudo isto, temos o enólogo de um dos mais icónicos vinhos portugueses, responsável por mais de 500 ha de vinha e pela produção de mais 4 milhões de garrafas de vinho na Fundação Eugénio de Almeida. É ele o enólogo da Vinha das Virtudes. E é o próprio Pedro Baptista que nos diz que “este projeto faz todo o sentido pela vida própria que tem. Uma vida enraizada na família que o alimenta, que o acompanha, para fazer dele qualquer coisa de diferente. Têm crescido todos ao mesmo tempo - o projeto é recente, a vinha é recente, a produção de vinho, na família, é recente. Acompanham-se uns aos outros, vão-se conhecendo. É um projeto vivido profundamente, com intensidade”. E com grande humildade, acrescentamos nós. Respeito e afeto é o fio que une todas as personagens desta história. Há algo de raro e quase ingénuo em tudo isto, ao mesmo tempo sólido e prometedor. Há também uma outra virtude, a descrição. Há orgulho, claro. Mas de forma discreta. O que parece muito saudável no nosso tempo. José Rodrigues tornou-se produtor de vinho numa altura da sua vida em que sentiu necessidade de criar um legado. A Vinha das Virtudes tornou-se o ponto magnético desta família, para onde todos convergem e onde todos sabem que se vão encontrar.