BACALHÔA

MOSCATEL, O VINHO LUMINOSO

 
Célia Lourenço

Célia Lourenço

Com o Vinho do Porto e o Vinho Madeira, o Moscatel encerra a trilogia mágica dos fortificados portugueses. Na Península de Setúbal, a Bacalhôa alcança um estilo próprio que inclui excelente exemplares, como são os casos do Superior 30 Anos 1985 e do Superior 20 Anos 1996. No cenário sempre único do Palácio da Bacalhôa, olhamos a Arrábida no horizonte e provamos vinhos que sabem caminhar a par com o tempo.

 

A casta Moscatel é provavelmente tão antiga quanto a história da vinha e do vinho. Terá surgido no Médio Oriente, apontando algumas fontes para uma origem fenícia, outras, egípcia. Também existem referências a um possível berço helénico, na ilha de Creta. A verdade é que, independentemente da origem exata, esta variedade conheceu uma expansão notável por todas as regiões da bacia mediterrânica e, desde a Antiguidade Clássica, o perfume característico e intenso é associado às cores quentes do Mediterrâneo.

Trata-se de uma variedade com uma dupla aptidão para vinho e consumo de mesa. Nos vinhos, os generosos são particularmente famosos e de qualidade reconhecida, sendo três as derivações da variedade que encontramos em Portugal: Moscatel Galego (ou do Douro, exatamente por produzir vinhos em Favaios, no Douro), Moscatel de Alexandria ou Graúdo (ou de Setúbal, mais uma vez pela expressão geográfica) e, também, Moscatel Roxo, mais rara e a única casta tinta autorizada em vinhos licorosos na região de Setúbal.

A história do Moscatel na Península de Setúbal é milenar, tendo sido o século XIX decisivo no aumento da área de vinha na zona de Azeitão. A região de produção dos vinhos generosos de Setúbal viria, depois, a ser demarcada em 1907 juntamente com Colares, Carcavelos, Dão e Vinho Verde, sendo as primeiras regiões criadas após a do Vinho do Porto, em 1756.

Na zona mediterrânica, e não só, existem várias regiões demarcadas para Moscatel. A maior expressão em Portugal é precisamente em Setúbal e a fama tem-se afirmado pela qualidade e diferença. Fomos perceber essa diferença nos vinhos Bacalhôa e como é que o Moscatel de Alexandria é, por direito, Moscatel de Setúbal.

A Bacalhôa detém 10% da totalidade do Moscatel da região – 50 hectares de Setúbal e 5 hectares de Roxo –, em solos argilo-calcários da Serra da Arrábida. Duas das vinhas, “Serra da Ursa” e “Quinta dos Frades”, a primeira de Moscatel de Setúbal, a segunda, de Moscatel Roxo, ficam em Azeitão, enquanto se espraiam na “sombra” do relevo mais elevado da serra. 

A nossa visita decorreu num dia soalheiro de janeiro, com temperaturas amenas de 15ºC e, se no inverno as vinhas podem parecer menos fotogénicas, é nesta altura que deixam perceber claramente a ocupação do território e a morfologia, onde cada pé é um ponto de uma malha que se adapta ao relevo. A “Serra da Ursa” é uma vinha de beleza tranquila, com vista para Lisboa, na qual o silêncio e a amplitude da paisagem envolvem até o mais distraído.

Todas as vinhas da Bacalhôa estão protegidas dos ventos quentes de sul pela exposição norte. E este parece ser um fator decisivo. Se o Moscatel é uma casta que procura uma insolação intensa e temperaturas altas, certo é que os vinhos irão beneficiar de maturações mais lentas. Assim, se juntarmos ao clima perfeito de Setúbal vertentes viradas a norte, temos maior frescura, maior equilíbrio, menos peso e mais elegância.

Filipa Tomaz da Costa é a enóloga que, desde 1981, faz parte da equipa da Bacalhôa, assinando os vinhos Moscatel desde a primeira edição, em 1983. Juntamente com Francisco Avillez mostrou-nos, ainda, as “estufas” onde estagiam os vinhos (em meias pipas usadas, muitas delas de whisky). Este processo permite uma evolução diferente (quase como acontece com o Vinho Madeira), no qual os vinhos passam vários anos em edifícios cuja construção, configuração e pé direito potenciam temperaturas elevadas. As amplitudes térmicas anuais e diárias são enormes, sendo apenas o ambiente fechado da barrica que vai controlar (e atenuar) um pouco essas diferenças térmicas. Depois de uma, duas ou mais décadas, passam para uma enorme cave de estágio, enquanto aguardam o engarrafamento.

A Revista de Vinhos – A Essência do Vinho foi recebida no magnífico Palácio da Bacalhôa, edifício quinhentista de imenso valor histórico e artístico, cujo rigor e austeridade de desenho e volumes provocam emoção a quem visita. O espírito do edifício, não se podendo explicar, sente-se assim que passamos os portões.

À nossa espera estava uma prova cuidadosamente preparada por Filipa Tomaz da Costa, que começou por nos apresentar os vinhos de 2016. Numa fase muito inicial de evolução (amostras de vinhos que não haviam sido ainda prensados), mostraram vida e alegria. O Moscatel de Setúbal com muita fruta e chá, o Roxo mais delicado e floral, com as incontornáveis rosas. São vinhos fragrantes, coloridos, de boca muito franca e que demonstram já grande equilíbrio entre o carácter frutado natural e a riqueza de açúcar e força alcoólica. Tudo com uma frescura notável. E, ainda sem qualquer estágio, diferenciam-se pela cor. O de Setúbal apresenta-se amarelo ouro, enquanto que o Roxo tem uma bonita cor cobre. Depois, com o tempo, ambos tendem a convergir para os mesmos tons topázio e âmbar.

Seguiu-se o Moscatel de Setúbal 2014, num estilo frutado e acessível, com estágio de um ano em barrica (sem passar pela estufa). Já o Moscatel Roxo 5 Anos, no qual é criado pela primeira vez um lote de diferentes colheitas (50% de 2007, 25% de 2006 e 25% de 2004), é um vinho mais sério e muito diferente.

Na mesma lógica de comparação das duas castas conhecemos os “Superior” de 2002, que passaram 10 anos em barrica. Ambos muito intensos, o Setúbal muito cítrico, enquanto que o Roxo se mostrou austero e rígido, com uma boca poderosa. Muito bonito.

Na categoria “20 Anos”, o pas de deux aconteceu com vinhos de 1996 e as cores começam já a mostrar nuances esverdeadas. Ambos com notas de râncio e um comprimento que não acaba. O Setúbal com um acentuado carácter de farmácia tem uma elegância superlativa, enquanto o Roxo (primeiro a ser produzido dentro desta categoria) é um vinho muito desenhado.

A prova foi finalizada com dois “Superior” de Setúbal – 20 Anos 1995 e a estreia do 30 Anos 1985 (em estufa desde fevereiro de 1989 até ao engarrafamento, em novembro de 2016). O que impressionou no 1995 foi a fruta e o estilo sofisticado e polido, enquanto o 1985 distribuiu charme e emocionou com a boca infindável e atributos maiores que qualquer adjetivação.

O que fica desta prova é uma ideia de diversidade enorme, uma paleta muito ampla, com vinhos individualizados e de carácter marcante. Existe sempre uma doçura envolvente que não cansa, a recorrente frescura, uma notória capacidade de envelhecimento e uma exuberância sem maquilhagem. Muitos deles, vinhos de contemplação, de sedução, sendo um privilégio conhecê-los e sabê-los portugueses.

 

Os Moscatéis, um a um

 

18,5

Bacalhôa Moscatel de Setúbal Superior 30 Anos 1985

Brilhos esverdeados sobre fundo castanho são a primeira impressão deste vinho austero e cheio de charme. O expectável râncio, mas também a sublimação em notas de laranja cristalizada e chá preto. A boca é intensa e perfumada, gorda, rigorosa e elevada. CL

 

18,5

Bacalhôa Moscatel de Setúbal Superior 20 Anos 1996

Cor acastanhada com reflexos esverdeados. O nariz é salino e fortemente marcado por aromas de farmácia. É um vinho que apresenta algum râncio de grande elegância, a par de amêndoa e figo. É muito rico e denso, com uma boca irrepreensivelmente untuosa, fresca e interminável. CL

 

18,5

Bacalhôa Moscatel de Setúbal Superior 20 Anos 1995 

Após o 83 surge este fantástico 95! Austero, notas citrinas confitadas, figos e sensações florais. Macio, aveludado e de grande riqueza na boca, excelente acidez e termina muito longo. Um Moscatel grande e sofisticado! (nota de prova já publicada na WINE 101)

 

18

Bacalhôa Moscatel Roxo Superior 20 Anos 1996 

A cor é âmbar, com laivos esverdeados. É um vinho muito cristalino e desenhado, com râncio, notas de chá verde e chá de rosas. A boca é muito harmoniosa, com sugestões de mel, frutos secos e uma acidez impressiva. Tudo é superior, com uma extraordinária leveza e aparente juventude.

 

17,5

Bacalhôa Moscatel de Setúbal Superior 2002

Topázio. Uvas passas, mel, casca de laranja, tudo muito equilibrado. Na boca muito saboroso, macio, boa acidez, fresco e longo. (nota de prova já publicada na WINE 101)

 

17

Bacalhôa Moscatel Roxo Superior 2002

Tons de citrinos, mel, floral e especiarias doces. Ligeiro tostado que o abrilhanta. Texturado e consistente na boca, notável frescura, sabores mais quentes e especiarias mais notórias que conferem persistência. (nota de prova já publicada na WINE 89)

 

17

Bacalhôa Moscatel Roxo 5 Anos

De cor acastanhada, sobressaem aromas de rosa e flor de laranjeira, a par de um lado mais doce, com caramelo toffee e algum mel. A boca, muito elegante e aromática, deixa brilhar uma acidez que se envolve na untuosidade do final longo.

 

16

Bacalhôa Moscatel de Setúbal 2014

Cor acastanhada. O nariz é muito fresco, com casca de laranja, geleia, “marmelade” e uva passa. De boca envolvente e aromática, é um vinho de doçura equilibrada, sem complicações, luminoso, com final de boa projeção e frescura.