Bruno Prats, o senhor Chryseia

Uma questão de “drinkability”

 
Marc Barros

Marc Barros

Bruno Prats é um nome maior da enologia mundial. Bordalês, após décadas a trabalhar em exclusivo na mais famosa região mundial de vinho abraçou outros desafios, incluindo a produção no Chile, na África do Sul e no Douro. Com a família Symington criou o Chryseia, vinho amplamente elogiado e bem pontuado em termos internacionais, profundamente elegante e que tem, de algum modo, sinalizado uma ligeira mudança de perfil em alguns dos mais exclusivos DOC da região. Prats sintetiza tudo numa expressão feliz – “drinkability”, a capacidade de um vinho ser bebido. 

 

Desde que a “bíblia” internacional do vinho, leia-se a revista norte-americana “Wine Spectator”, considerou o Chryseia 2011 o terceiro melhor do mundo (em finais de 2014), o lançamento de cada nova edição aumenta a expetativa entre os enófilos. Estamos à mesa do restaurante Vinum, nas caves Graham’s, V.N. de Gaia, a convite da família Symington, precisamente para ser apresentada nova edição do Chryseia à Revista de Vinhos – A Essência do Vinho. A colheita 2014 (PVP: 49,50€), classificada por nós com 18 valores em 20 possíveis, merece-nos os seguintes comentários: “Rubi cintilante. Nariz de caruma, alguma fruta silvestre, ligeira violeta, algum café e ligeira especiaria de barrica. Extremamente elegante, com mais apontamentos de café e cogumelo. Profundo e fresco, é sem dúvida muito elegante e com excelente acidez. Muito persistente”. 

Este conjunto de considerações pode ficar sintetizado numa só expressão, sem com isso beliscar o que quer que seja: “drinkability”, a capacidade de ser bebido. “A Quinta de Roriz confere grande mineralidade ao vinho, diferente do perfil dos Douro muito concentrados”. A explicação é fácil de entender e é-nos transmitida por Bruno Prats.

A parceria Symington/Prats começou em 1999. Nesse primeiro ano houve lugar a vários ensaios e experimentações, procurando perceber quais as parcelas de vinha mais adequadas e quais as castas que estariam na base do vinho. Em 2000 surge a primeira colheita do Chryseia. “De certa forma, foi inteligente da parte deles convidarem-me”, confidencia-nos Bruto Prats, para logo a seguir enquadrar a ideia: “Fiquei surpreendido por me terem convidado, até porque eles conhecem bem o Douro. Mas foi inteligente porque trouxeram alguém que não sabia nada de vinhos do Porto, que apenas estaria focado nos vinhos DOC. Se me tivessem convidado para fazer vinhos do Porto teria recusado porque não iria trazer nada de novo”.

Bruno Prats cruzou-se com a família Symington no âmbito da PFV – Primum Familiae Vini, organização que reúne algumas das mais famosas famílias ligadas as vinho. Só para percebermos a exclusividade, eis a listagem atual de membros: Baron Philippe de Rotschild (Médoc, França), Egon Müller Scharzhof (Mosel, Alemanha), Hugel (Alsácia, França), Joseph Drouhin (Borgonha, França) Marchesy Antinori (Toscânia, Itália), Perrin (Vale do Ródano, França), Pol Roger (Champagne, França), Tenuta Sanguido (Toscânia, Itália), Torres (Penedes, Espanha), Vega Sicília (Ribera del Duero, Espanha) e, claro, a Symington Family Estates (Douro e Porto, Portugal). 

Quando os caminhos se cruzaram, o Château Cos d´Estournel ainda integrava a PFV. Bruno Prats liderou-o, com os dois irmãos, durante quase 30 anos. Não bastasse isso, a ligação da família a grandes propriedades do vinho já conhecera capítulos anteriores, quando o avô de Prats fora proprietário do célebre Château Margaux. Com a saída de Estournel do foro familiar, Bruno Prats enceta um trajeto a solo, propositadamente longe de Bordéus e da França. No Chile, em parceria com Paul Pontallier, Ghislain de Montgolfier e Felipe de Solminihac, na Viña Aquitania, e na África do Sul, com Lowell Jooste e Hubert de Bouard de Laforest, em Anwilka / Klein Constantia, que possui a curiosidade de uma vinha histórica datada de 1685.

Para lá do respeito que desde sempre nutriu pelos Symington, era (e continua a ser) um apreciador de vinhos do Porto, não sendo de rodeios quanto ao Douro, “um dos melhores ´terroirs´ do mundo”. Apesar dessa perceção, admite que pouco conhecia sobre vinhos DOC. “Para um bordalês, fora de Bordéus há apenas dois vinhos: Champagne e Porto”, diz-nos, a sorrir. Portanto, o caminho estava por desbravar. 

Mãos à obra e surgem as primeiras notas no bloco de apontamentos do enólogo. Logo de início, e na sequência de várias experiências, Bruno Prats percebe que as castas Touriga Nacional e Touriga Franca seriam a base do Chryseia. A vindima 2000 haveria de ser generosa, mas se essa data marca a primeira colheita do vinho, a verdade é que as mais recentes são, na opinião de Prats, “melhores”. 

Sempre em estreita colaboração com Charles Symington, o enólogo da família que detém o maior património de vinhas no Douro (27 quintas que perfazem mais de 2.000 hectares de terra, sendo mais de 1.000 hectares de vinhedos), Bruno Prats foi percebendo que poderia adaptar os princípios que desde sempre seguira em Bordéus na Quinta de Roriz. O primado do “terroir”. “Tenho uma formação técnica. Ainda hoje, ao fim destes anos todos, estou para perceber por que razão um ´terroir´ é melhor que outro. A verdade é que ainda não encontrei a resposta, mas o ´terroir´ é essencial num vinho”, enfatiza.

Analisa, a esta distância, que no virar do milénio “havia poucos grandes vinhos” DOC Douro. Realidade bem distinta da de hoje, onde os vinhos da região “são conhecidos como estando entre os melhores do mundo”. Convida-nos a uma breve reflexão: “Isto aconteceu em apenas 15 anos, quando uma nova geração decidiu abraçar o Douro DOC. É uma grande conquista!”.

 

A importância do envelhecimento

 

Quando nos debatemos no patamar dos grandes vinhos, os detalhes passam a fazer toda a diferença. A capacidade de evolução, a predisposição para um correto envelhecimento, é daqueles aspetos que claramente marca pontos. Muitos. Bruno Prats reconhece-o: “A capacidade de envelhecimento é o que me faz distinguir um bom ´terroir´ de um excelente ‘terroir’”.

Não sendo o Chryseia uma “bomba”, cheio de concentração e com taninos por domar, a verdade é que a grande profundidade que lhe está no ADN permite-lhe encarar o desafio do tempo com serenidade. O pai da criança estima, por exemplo, que o célebre 2011 dure pelo menos uns 20 anos. Garante, entretanto, que as colheitas 2000 e 2003 estão atualmente “num grande momento de forma”. Ou seja, além de um prazer imediato para enófilo que se preze, o Chryseia apresenta-se como um bom investimento. 

E, pronto, lá estamos nós de novo a abordar a questão do “terroir”: “Há três fatores na música: o estilo musical, os instrumentos e o músico. O mesmo acontece nos vinhos – o ‘terroir’, a casta e o enólogo. Só os vinhos de bom ´terroir´ conseguem evoluir”, observa.

À medida que o projeto Chryseia se foi consolidando, outros rebentos foram sendo pensados e materializados, novamente seguindo a prática de Bordéus de ter um segundo vinho. Na mesma mesa do restaurante Vinum que partilhamos com Bruno Prats, Charles e Rupert Symington, provamos ainda a segunda e terceira linhas.

O Post Scriptum 2014 apresenta-se rubi, com aromas de fruto silvestre, fundo de violeta, algum cedro e mina de lápis. Penetrante, tem taninos sólidos mas sempre num registo elegante, finalizando longo e cheio de frescura (PVP: 13,50€). Surge, claramente, entre as boas opções qualidade/preço de uma linha média de vinhos no Douro. É elaborado da mesma forma que o Chryseia, tendo concentração e longevidade menores. Mas percebe-se facilmente que é da mesma família. “É o ´Chryseirinha´, como lhe chamam no Brasil”, diz-se na mesa. O primeiro lançamento deu-se em 2002, sendo que desde 2007 tem sido elaborado, sobretudo, a partir de uvas da Quinta da Perdiz, a segunda propriedade agregada à Prats & Symington, no vale do rio Torto.

Há também lugar para um terceiro vinho, o Prazo de Roriz, agora com a colheita 2015 (PVP: 9€). De cor rubi, aromas de estágio em barrica, alguma violeta e framboesa. Fácil de se gostar, tem bastante frescura e finaliza bem. Resulta de um lote das castas Tinta Barroca, Tinta Roriz, Tinta Amarela, Touriga Nacional e Touriga Franca.

Não estivéssemos nós no Douro, e numa parceria com uma das grandes famílias ligadas ao Vinho do Porto, o jantar finaliza com um Vintage. Quinta de Roriz Vintage 2004 (PVP: 40€), agora relançado, revela-se através de um rubi intenso, com notas de geleia de fruta vermelha, café e floresta. Bastante fresco, deixa uma agradável sensação de licor e um final bem demorado. Regressou e está para durar.

Para um enólogo de conhecimentos globais como Bruno Prats, a grandeza de um anfiteatro natural como o Douro já lhe deixa marcas, tal como um jantar com vista para as marginais ribeirinhas de Porto e de Gaia acaba sempre por constituir boa lembrança. “Um vinho sem uma história não tem futuro. O vinho deixou de ser apenas um produto alimentar; é agora um produto de entretenimento”, diz-nos. Seguir-se-ia um novo regresso a casa, para a Suíça, junto a Lausanne, onde também encontra vinhas a curta distância. Repete a ligação ao Porto uma mão cheia de vezes por ano. Que assim continue, dirá certamente quem gosta de grandes vinhos. 

 

Ele, visto por eles

 

Rupert Symington não tem meias palavras. “Foi um dos grandes orgulhos da minha vida”. É assim que descreve a parceria entre a família Symington e Bruno Prats. “Trouxe-nos uma arte diferente”, justifica, ao explicar a visão distinta de um enólogo que nunca havia trabalhado no Douro e que nada sabia sobre elaboração de vinhos do Porto, estando apenas focado nos DOC. Administrador da Symington Family Estates, Rupert entende que o Chryseia representa uma certa pedrada no charco, na medida em que estabeleceu padrões de maior elegância nos vinhos DOC Douro. “O setor dos vinhos do Douro aproximou-se mais de nós do que nós deles”, enfatiza. E quando a questão é o preço de um novo vinho icónico, uma eventual subida está por enquanto descartada. “Não é a nossa filosofia”, garante.

Charles Symington é o enólogo da família e com Bruno Prats tem partilhado uma vivência mais técnica. Recorda os primórdios do projeto, relembrando que “a lógica do Douro é diferente das outras regiões do mundo”. O caminho faz-se caminhando, pelo que os vinhos que resultam da parceria têm um perfil com identidade própria mas, claro, sempre dependentes de cada colheita. Na mais recente de Chryseia, 2014, Charles entende traduzir-se num vinho “encorpado mas elegante, muito aromático e equilibrado”.   

 

Roriz e Perdiz

 

A parceria entre Bruno Prats e a família Symington concretiza-se a partir de matéria-prima oriunda de duas quintas no Douro localizadas perto de Ervedosa, São João da Pesqueira. Desde logo, a Quinta de Roriz, uma das mais apreciadas da região, debruada sobre o rio Douro, adquirida pelos Symington à família van Zeller, em 2009. Antes, no século XVIII, foi comprada por Robert Archibald, tornando-se assim das primeiras propriedades durienses a ser detida por uma família britânica. Orientada a norte, tem solo xistoso e vestígios de estanho, consequência da presença de minas que chegaram a existir no ponto mais elevado da propriedade. Estará aí parte da justificação para vinhos fortemente profundos e frescos.

A Quinta da Perdiz está localizada no vale do rio Torto, numa encosta escarpada do outro lado da mesma montanha. Tem clima mais quente e alcança vinhos mais maduros.

Dado o foco do projeto nos vinhos DOC, apenas as uvas mais maduras de castas menos adequadas para os Douro são destinadas a vinhos do Porto. No caso específico do Vintage de Roriz, somente uma pequena quantidade de anos considerados excecionais acaba por ser engarrafada.

 

Curiosidades

 

Chryseia significa “d´ouro” em grego clássico.

O Chryseia foi o primeiro vinho tinto português no “TOP 100”  da revista norte-americana “Wine Spectator”, quando a colheita 2001 atingiu 94 pontos.

A mesma publicação haveria de o eleger como terceiro melhor vinho do ano 2014, ao classificar a colheita 2011 com 97 pontos.

Bruno Prats foi distinguido com a ordem nacional de mérito da República Francesa.