Josko Gravner

… ou o reino dos vinhos “laranja”

 
Alexandre Lalas

Alexandre Lalas

Vinhos “laranja” são os brancos de maceração longa, com uma cor quase âmbar e até algum tanino. Num copo escuro, numa degustação às cegas, muitas vezes passam por tintos. Há um grupo cada vez maior de aficionados por este tipo de vinho. Bares especializados em vinhos laranja – ou com uma boa seleção deles – são cada vez mais comuns em mercados como Nova Iorque, Londres ou Tóquio. Há bons exemplares em quase todos os países produtores de vinho. Mas não há dúvida que a maior referência mundial no assunto é um italiano de sangue esloveno, baseado no Friuli. Quando se pensa em vinho laranja, é impossível não lembrar do nome de Josko Gravner.

 

O produtor tem um ar de eremita exótico, adora andar pelos vinhedos de jipe, vestido com um macacão. Não é muito de receber visitas, frequentar eventos vínicos, ir para feiras ou qualquer outro tipo de aparições. Na verdade, tirar o produtor de casa não é das tarefas mais fáceis. Afinal de contas, é andando nas vinhas ou trabalhando na adega que Gravner se sente confortável. 

Fora isso, existe um homem humilde, generoso e genial. Um sujeito da terra, que jura que “o vinho é uma questão de filosofia e não de enologia”, frase que repete até à exaustão. Um sujeito carregado de paixão pelo que faz, pelas uvas que planta, pela terra que cuida. Mas nem sempre o vinho de Gravner foi “laranja”. Nem sempre foram feitos em ânfora, com uvas brancas colhidas em novembro – quando todos os vizinhos já terminaram, inclusive, a vindima das uvas tintas. Para entender até onde o produtor chegou, é indispensável conhecer o caminho.

Quando chegou da faculdade, recém-formado em enologia, Josko foi trabalhar com o pai, na mesma região onde ainda hoje estão as vinhas da família. Com a certeza indissolúvel de que sabia tudo, coisa que só os jovens conseguem ter, convenceu o pai a seguir o caminho das tendências que guiavam os vinhos daquela época. As uvas contaminadas pela podridão nobre, por exemplo, eram descartadas, apesar dos protestos do pai, que apelava a Josko que as provasse e visse como eram as mais saborosas. Mas a impetuosidade e o saber teórico do Gravner, o filho, levou a melhor. Até porque fazer vinho parece ter sido um dom nato do produtor. Tanto que não demorou para que o jovem firmasse o nome na galeria dos grandes do vinho italiano, colecionando prémios, notas altas e reconhecimento da crítica especializada, apaixonada pelo estilo grandioso dos brancos (feitos com vinhas velhas de Chardonnay e Sauvignon Blanc) e dos tintos (em especial o Merlot). 

Até que em meados dos anos 1990, quando o nome Josko Gravner era sinónimo de vinhos espetaculares do Friuli e o produtor se firmava como dos mais premiados da Itália, recebeu um convite para viajar até aos Estados Unidos, junto com outros vinhateiros da região. Josko foi. E o que viu por lá mudou tudo o que havia na cabeça e no coração do já não tão jovem assim enólogo/viticultor. Gravner visitou adegas que, com orgulho, mostravam como usar a tecnologia para fabricar aromas e direcionar vinhos a este ou àquele mercado. Viu como se fazia para concentrar o mosto e conseguir notas mais altas de críticos especializados. Viu como se mexia nisso, como se interferia naquilo. E percebeu que a uva, a matéria-prima, a razão de ser de um vinho, adotara um papel meramente secundário, de instrumento do homem para fabricar aquilo que queria vender. Ora, Gravner não gostou nada do que viu. 

 

Como água da nascente

 

Quando chegou a casa, ao ser questionado pela mulher sobre como havia sido a viagem, Josko desabafou: “Aprendi tudo o que não quero fazer”. Começou a estudar, a pesquisar. Leu sobre a origem do vinho, foi visitar a Geórgia e conheceu ânforas que na Antiguidade serviram para fazer vinho. Comprou uma para experimentar e usou-a na vindima seguinte. Gostou tanto que abdicou de todas as barricas francesas de que dispunha e remodelou a adega para receber as novas aquisições: ânforas com capacidade de 2.000 litros, que enterrou no subsolo da adega. 

O passo seguinte foi dado no campo. Josko arrancou as vinhas de mais de 60 anos de Chardonnay e plantou Ribolla Gialla, uva ancestral e nativa do Friuli. Chamaram-no louco, mas não se importou. Sabia o que estava a fazer, tinha a exata noção de que estava apontando o caminho da modernidade justamente ao olhar para trás. 

Passou a adotar uma longa maceração dos vinhos brancos (hoje ficam quase sete meses na ânfora). Até que, em 2001, sentiu que o vinho estava pronto. E fez o primeiro vinho em ânfora, lançado apenas sete anos depois. A crítica que antes o exaltava, desprezou-o.  Foi chamado de decadente e os vinhos foram considerados oxidados, estragados. A cor, um âmbar brilhante, longe daquele amarelo-ouro do anterior Chardonnay de Josko, já era motivo para discórdia. E o gosto, então único, não foi entendido. Mas o produtor não estava nem aí para a crítica. Tinha a certeza do caminho escolhido. Sem o uso de nenhum tipo de produto químico, foi cada vez dando mais autonomia à terra para que ela sim, expressasse o ano, o lugar, a uva. Deixou o canal aberto com a natureza.

Disso beneficiou como ninguém. Aos poucos, os vinhos foram quebrando as barreiras e Josko melhorando o que já era bom. Passou a colher mais tarde, a usar justamente as uvas atacadas pela botrytis nos anos em que ela aparece (como o fabuloso 2005), as mesmas que o pai tanto gostava e que o jovem enólogo, que carregava todas as certezas do mundo, desprezava. Acertou o tempo de maceração e de estágio em enormes barris de madeira velha. Arrancou o resto que não era Ribolla Gialla ou Pinolo (uva tinta também do Friuli). Definiu a produtividade de cada planta, de cada vinhedo. Recentemente, chegou à conclusão de que nem precisa mais desengaçar a uva, colocada inteira e ao cacho na ânfora, tal a uniformidade da maturação do fruto, do engaço, do caroço. 

O estilo de Josko, antes incompreendido, foi imitado. São muitos os produtores fora do Friuli que passaram a fazer vinhos brancos de maceração longa. A crítica, antes refratária às ideias de Gravner, agora valoriza-as. E até deram nome a este estilo de vinho: “Orange Wines” (vinhos laranja). 

O nome, por sinal, desagrada ao produtor. “Os meus vinhos não têm nada de laranja, são de cor âmbar. Um vinho laranja é um vinho estragado”, costuma reclamar. Mas o nome pegou e o estilo espalhou-se pelo mundo. Há vinhos do tipo feitos em Portugal, na França, na Áustria, no Chile, nos Estados Unidos, até no Brasil. Sem falar na Itália, onde mesmo fora do Friuli muitos produtores abraçaram o estilo. 

Mas, embora a ideia tenha sido disseminada e copiada mundo fora, não é apenas o homem quem faz o vinho. Na verdade, talvez o ser humano seja apenas um instrumento para que a natureza chegue o mais intacta possível até ao copo do consumidor. E neste quesito, Josko Gravner segue único. “A água da nascente é sempre a mais pura. No caminho, o homem contamina esta água com todos os disparates e decisões erradas que toma. O que tento fazer é manter os meus vinhos o mais próximo possível desta nascente, que é a uva e a terra de onde ela vem”.