Quinta da Murta

Brancos muito sérios

Fotografia: Fabrice Demoulin

Às portas de Lisboa, Bucelas é (re)conhecida pelos vinhos brancos da casta Arinto. A Quinta da Murta dá sinais de consistência, demonstrados nesta prova vertical de vinhos que viaja até 2006. Os exemplares desse mesmo ano, de 2007 e 2008 são particularmente ilustrativos do potencial do projeto.

 

Quantas capitais europeias desfrutam da prerrogativa tão distinta de produzir vinhos com o seu nome? Viena é seguramente uma delas, uma das muito poucas que dispõe de vinhas, adegas e produtores dentro dos limites geográficos do concelho. Lisboa é a outra capital europeia que usufrui da magia e distinção de associar o nome ao mundo do vinho. São três denominações de origem a enquadrar-se no nome e espírito da capital, três regiões históricas e emblemáticas, três designações que contam com glórias passadas e infelizmente também alguns problemas atuais. Carcavelos, Colares e Bucelas estão situadas geograficamente próximas de Lisboa, desenhando um anel verde que envolve a cidade num saudável perfume rural, um património histórico e natural que reclama simultaneamente cuidado, investimento e preservação.

A região de Bucelas sempre se amparou histórica e racionalmente nos vinhos brancos, singularidade que a marca de forma definitiva. A individualidade de Bucelas assenta numa só casta, o Arinto, variedade que atinge o apogeu precisamente aqui em Bucelas, onde encontra condições ideais para nos encantar. Mas a vizinhança com Lisboa pode ser entendida simultaneamente como uma benesse e uma tragédia. A magia do nome e a proximidade à capital acaba por ser igualmente o pesadelo de Bucelas, que sofre diretamente com a pressão urbanística de Lisboa, apesar de por ora ir conseguindo resistir com alguma serenidade à quase inevitável invasão do betão.

É na área mais rural do concelho de Loures que as vinhas imperam numa lógica de relevo acidentado, que permite exposições variadas e uma humidade igualmente elevada, que é regrada e suavizada por condições de insolação elevadas. É terra de brancos, terra de Arinto, terra de vinhos frescos, minerais, perfumados e intensos, com uma boa capacidade de envelhecimento em garrafa. O declínio já foi o fado desta região, uma decadência atenuada e alterada com a entrada de novos produtores que vieram rejuvenescer a região e com a renovação de interesse pelos vinhos brancos da última década. É indiscutível que a recente recuperação de popularidade dos vinhos brancos ajudou na regeneração do nome e prestígio de Bucelas, coração de toda uma plateia de apreciadores de vinhos brancos com carácter. Infelizmente, uma quantidade significativa de vinha continua a não estar inscrita na Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, acabando por não estar apta a produzir vinho de Bucelas. São vinhas que produzem vinhos para consumo próprio, num aparente paradoxo para uma zona de tanto potencial.

A casta Arinto é omnipresente, dando origem a vinhos vibrantes e de acidez elevada, vinhos com perfil mineral intenso e enorme capacidade refrescante, vinhos com um potencial de guarda muito acima da média. A acidez firme é mesmo o principal cartão de visita da casta Arinto.

Aromaticamente é uma casta relativamente discreta e sem pretensões de exuberância ou intensidade, privilegiando na região os apontamentos de maçã verde, lima, limão, a que por vezes se junta um carácter vegetal temperado, habitualmente contraposto por uma mineralidade pungente. Há, no entanto, quem lhe atribua um carácter tropical intenso, com particular ênfase no maracujá, condição pouco habitual e um pouco contranatura face às condicionantes naturais da casta.

Macerações e fermentações longas a baixa temperatura retiraram esta casta do esquecimento global, devolvendo-lhe uma relevância a que já não estava habituada. A fermentação em madeira pode assentar-lhe bem perdendo, todavia, com esta operação, algum do potencial de guarda em garrafa.

A Quinta da Murta assume-se como um dos novos protagonistas, correndo nos vários tabuleiros da região mas destacando-se maioritariamente pelos vinhos espumantes e pelos vinhos tranquilos de Arinto, produzidos num estilo que se tem afinado com o lento passar do tempo. O projeto que passou por diversas fases e pela presença de diferentes proprietários sofreu alguns momentos de indefinição pontual, que parecem pertencer ao passado, aparentando estar hoje pujante e bem estruturada. Poderemos mesmo dizer que a casa vive um momento particularmente feliz, que é facilmente percetível no lançamento de vinhos cada vez mais ambiciosos e com um capital de inovação e risco que só costumam chegar com a maturidade.

Foi precisamente para descobrir o rumo atual da Quinta da Murta, mas sobretudo para compreender o percurso do produtor, que repetimos uma visita, dez anos depois do primeiro contacto in loco com o projeto. Uma visita que pretendeu descobrir o potencial de um produtor, uma região e uma casta, analisando o evoluir natural da expressão de um terroir particularmente individual. Dez anos em que o nível de açúcar residual foi sendo diminuído, em que o tempo de estágio em garrafa foi aumentando, em que o estilo foi sendo afinado para aquilo que a casa considera ser a defesa do padrão natural de Bucelas.

Terminada a prova, o panorama não poderia ser mais satisfatório pelas informações e impressões proporcionadas pelos vinhos mais velhos. Uma capacidade de guarda notável que emociona nos vinhos mais velhos e que, nota mais importante, sai reforçada nos vinhos mais jovens que indiciam ter um potencial de guarda ainda superior aos primeiros vinhos da casa. Mas também a satisfação de perceber que a casa nunca caiu na tentação quase irresistível de potenciar aromas de índole mais tropicais ou de intensidade extra que fazem o agrado de tantos enófilos. Aqui conseguiu-se manter um estilo mais austero, controlado e fechado, que é afinal a característica que melhor define os vinhos estremes da casta Arinto. Um produtor a seguir com atenção.

 

18

Quinta da Murta 2006

Cor amarela palha intensa. O estilo aponta mais para a delicadeza e elegância do que para a profundidade ou intensidade, revelando uma identidade e originalidade que o destacam entre os pares. Fresco, fresco, vibrante e intenso na boca, com um potencial de crescimento impressionante. 

 

17,5

Quinta da Murta 2007 

Tonalidade amarela ouro pálida. Leve toque de acidez volátil, manga, abacaxi doce, flores e um lado medicinal que lhe acrescenta graça. Apesar do lado relativamente exótico desta estranha coabitação entre as notas de doçura aromática e a extrema secura e frescura da boca, o vinho revela um equilíbrio surpreendente e uma frescura invejável. 

 

17,5

Quinta da Murta 2008 

Cor amarela ouro de mediana intensidade. Começa por afirmar o mel de forma veemente para logo oferecer protagonismo às notas de vegetal seco, manga madura, farmácia e um travo de doçura, que volta a realçar a presença do mel. A boca aumenta a dispersão ao acrescentar uma acidez tensa e seca, que revela uma estranha mas feliz coexistência entre um lado de aparente doçura e uma secura e tensão que apaziguam a sensação de doçura. 

 

17

Quinta da Murta 2009

Cor amarela ouro pálida. Perfumado, elegante e delicado denota alguma timidez aromática que lhe retira algum brilho no nariz, características que a boca equilibra com uma acidez retemperadora, uma mineralidade convincente e um final de boca seco e energético. 

 

16

Quinta da Murta 2010 

Cor amarela ouro muito pálida. Começa por destacar notas de lima, mel e jasmim para logo comutar para anotações de palha seca e chá, que acabam por se destacar no nariz. Extremamente seco, vivo e mordaz, revela uma acidez menos incisiva que o conduz para um final tenso mas moderado no comprimento.

 

15,5

Quinta da Murta 2011 

Tonalidade amarela mais pálida. O nariz combina aromas pouco concordantes entre si, alternando entre uma mineralidade intensa inicial, que é prontamente substituída por aromas ferrosos ainda mais intensos, que escondem notas discretas de fruta cozida na retaguarda. Profundamente fresco, quase bruto e irascível na afirmação da acidez, direto e tenso, duro mas tremendamente eficaz na transmissão de frescura. Um branco desconcertante. 

 

17

Quinta da Murta 2012 

Cor amarela ouro com laivos de ouro pálido. Presença marcante de sílex, pedernã, ervilhas, maçã bravo de Esmolfe e limão, revelando uma delicadeza e frescura que a boca logo se encarrega de reiterar. Delicado, fraco, mineral, vibrante, com final elegante e etéreo. Ainda com anos de vida pela frente é neste momento um branco num excelente momento de forma. 

 

16,5

Quinta da Murta 2013 

Cor amarela palha intensa. Às notas vegetais logo se sobrepõe uma rara mistura de maçã verde e pêra cozida, lã e fortes apontamentos minerais. Boca muito mais gorda que o esperado, intensa, cheia, quase glicerinada, mais pesada e gorda que o padrão da casa. 

 

17

Quinta da Murta 2014

Cor amarela muito pálida. Aroma cítrico entusiasta, levemente vegetal com algumas indicações de uma mineralidade que se adivinha e que a boca logo se encarrega de confirmar. Seco, mais austero que o esperado, tenso, vivo e ligeiramente curto no final de boca. A precisar de tempo em garrafa.

 

16/17

Quinta da Murta 2015 (amostra)

Cor amarela muito clara. Leve toque de anis, vegetal seco, lima e um ligeiro fundo herbáceo, que lhe assenta bem. Tenso, claro, direto e preciso, termina longo e com excelentes indicações para o futuro.