QUINTA DAS BÁGEIRAS: A BAIRRADA DE UM "VIGNERON"

Fotografia: Daniel Luciano
Célia Lourenço

Célia Lourenço

Chumbado - reprovado em exame (gíria académica). Foi a reprovação de um vinho pela Câmara de Provadores da Bairrada uma das mais recentes alavancas para a Quinta das Bágeiras. O projeto é de toda uma família, sendo hoje conduzido por Mário Sérgio Nuno, que possui uma admiração maior pelo avô Fausto e um respeito profundo pelo pai, Abel. Fascinado pela região de Champagne, defensor da Bairrada até à última gota, Mário Sérgio é um “vigneron” que recusa regar a vinha e garante saber onde plantar Baga, sendo ainda um dos mais entusiasmantes produtores portugueses da atualidade.


 

A história de Mário Sérgio Nuno é uma verdadeira história de amor pela terra e pela família. Os olhos ficam com água se insistimos que nos conte a relação com o avô, o orgulho transparece se fala do pai e sorri de esperança quando nos diz que o filho está a estudar Enologia.

Na mesma rua, a rua Principal da Fogueira, a casa e a adega. As vinhas também não estão longe, a poucos minutos de carro. As férias são passadas mesmo ali ao lado, na Praia de Mira, o que lhe permite ter o melhor de dois mundos, não deixando a rotina das Bágeiras.

Defensor da identidade da Bairrada, assume-se sempre como um “vigneron”. Com Filipa Pato, criou o movimento “Baga Friends”, iniciativa que pretende defender e promover a mais forte variedade autóctone, a inimitável Baga. E a verdade é que a Bairrada é reconhecida como uma das grandes regiões portuguesas (“está a ficar na moda”, palavras de muitos…) e a Quinta das Bágeiras de Mário Sérgio, em Sangalhos, é um dos nomes incontornáveis. 

Mário Sérgio Nuno respira Bairrada. A partir do património deixado pelos avós, evoluiu num estilo próprio, desde cedo notado. Em 1989 são criados os primeiros rótulos da Quinta das Bágeiras, com um branco desse mesmo ano e um tinto de 1987. Em 2011, desafia o sistema quando vê reprovado um vinho na CVR (Comissão Vitivinícola Regional). E, para Mário Sérgio, não era um vinho qualquer, pois não se dá o nome do próprio pai por pouco… tratava-se do Pai Abel Branco e, por isso mesmo, decidiu que seria comercializado, passando a Vinho de Mesa. A diferença foi também outra: o nome passou a incluir o termo “chumbado”, tendo o sarcasmo resultado num golpe de marketing que, associado à qualidade do vinho, originou um movimento tão inesperado, quanto crescente. A curiosidade levou a que a procura do vinho aumentasse, a crítica foi muito boa e o rótulo vingou, sendo o “chumbo” visto como um atributo (quase como uma categoria superior) e não como um estigma.

 

As estórias e os vinhos de Mário Sérgio

Mário Sérgio enfatiza o ambiente de carinho e proteção onde cresceu como um privilégio. Outro privilégio é ter hoje os pais ao lado, com o Sr. Abel a “olhar pelas vinhas” do alto da sabedoria de 80 anos.

Mas continuemos o exercício de recuar no tempo. Com pouco mais de 20 anos, Mário pediu ao pai e ao avô para ficar com um tonel de um lote de 1987, feito por ambos, que iria ser vendido às Caves São João. Esse vinho era proveniente da vinha de Casal Pinhoso, muito velha (hoje com mais de 120 anos), do avô materno. Com esse primeiro vinho engarrafado, ganha prémios, tendo sido desde logo Rui Moura Alves a acompanhá-lo na enologia (neste caso, a intervenção foi manter o vinho nas melhores condições durante o estágio e, depois, no engarrafamento). Como já havíamos referido, a marca própria inicia-se com este tinto e com um branco de 1989.

Até à criação da Quinta das Bágeiras, a família produzia vinho para vender a granel. Mário Sérgio acompanhava o pai e, sobretudo, o avô Fausto, com quem tinha uma ligação muito especial, sendo nele que projeta a personificação da geração dos avós, por ser quem tinha mais paixão pela vinha. 

Às vinhas dos avós, 12 hectares, tanto do lado da mãe, como do pai, Mário Sérgio vai juntando mais propriedades. Neste momento, a Quinta das Bágeiras tem cerca de 28 hectares, distribuídos por aproximadamente 20 parcelas que, pela reduzida dimensão individual, não contribuirão para a forma mais fácil de fazer viticultura, mas é seguramente a que Mário Sérgio acha acertada nesta região. “Qualidade sem identidade não vale nada”, diz, e por considerar que a expressão da Baga apenas se consegue em determinados solos, com a exposição e inclinação certas, respeita e procura os pontos onde esses fatores se conjugam. Na maior parte dos casos são pequenas áreas, muitas vezes distantes entre si. Mas se a natureza assim o determina, Mário Sérgio lá vai perseguindo e comprando pedaços de terra nos quais reconhece potencial: solos argilo-calcários e exposição preferencialmente sul/poente, porque a Baga necessita de intensidade luminosa, de muitas horas de sol. Apenas estas condições naturais originam vinhos com frescura e acidez natural elevada (elementos distintivos cada vez mais respeitados), com estrutura e capacidade de envelhecimento. Muitas vezes, na mesma vinha, encontramos castas brancas, Maria Gomes e Bical, nas zonas mais planas e mais baixas, e exatamente na mesma linha, mas em zona de encosta, Baga. Nos encepamentos tintos, 90% é Baga, ficando a restante área distribuída entre Touriga Nacional e Jaen. 

Todos os vinhos produzidos e comercializados nesta empresa familiar provêm de uvas próprias, sendo por isso que Mário Sérgio se afirma “vigneron”, preferindo o termo francês ao português “vitivinicultor engarrafador” (concordamos que é mais literário e empático). Com outra filosofia e também grande importância, quer para a identidade quer para a economia da região, existem as grandes caves (os “negociants”), sem as quais a história da Bairrada não seria igual, “havendo lugar para todos”, conforme nos diz Mário Sérgio.

Quanto à produção da Quinta das Bágeiras, os números atuais rondam as 120.000 garrafas por ano, das quais 60% são espumantes. Tendo como linha ideológica de todo o projeto a observância dos métodos tradicionais (sempre aberta, porém, à evolução da viticultura e enologia), com uvas colhidas à mão e utilização de lagares sem leveduras adicionadas, por exemplo, também nos espumantes se segue o método tradicional, com remuage manual em pupitres de madeira e não se adiciona qualquer açúcar ao licor de expedição. Ou seja, todos os espumantes das Bágeiras são “bruto natural”.

Além dos Bairrada clássicos, tintos de Baga de vinhas muito velhas, vinificados em lagar com estágio em tonéis antigos, dos quais o Garrafeira conquistou desde cedo um lugar de destaque, a Quinta das Bágeiras é reconhecida pelos brancos. Hoje conta com muitos seguidores do estilo, tanto entre consumidores como entre quem faz vinho, mas no início o gosto que imperava era outro, no qual era difícil reconhecer um branco sem fruta exuberante. Mário Sérgio esteve quase a desistir, mas tanto a história familiar (na qual se conta uma predileção por vinificar brancos, nada usual na geração dos avós) como o próprio gosto por vinhos brancos, como os que a Bairrada proporciona, estruturados, cheios de acidez e mineralidade, ou seja, vinhos com tensão e pouca facilidade, mantiveram a esperança que um dia clientes e crítica concordassem com essa opção. Terá sido David Lopes Ramos o primeiro a perceber a qualidade e a diferença dos brancos das Bágeiras, tendo assim incentivado o projeto dos Garrafeira.

Mário Sérgio quis, entretanto, homenagear as gerações anteriores, tendo surgido o Pai Abel. O tinto tem origem na vinha Costeira (considerada uma das melhores), um mato que já “tinha sido uma vinha muito boa”, segundo o pai e o avô Fausto. Mais uma vez em encosta, de solos argilo-calcários, com exposição sul/poente. Plantaram-se cepas de Baga, Touriga Nacional e uns pés de Maria Gomes, todas misturadas, conforme se verifica nas vinhas velhas. Quanto ao Pai Abel branco, de Maria Gomes e Bical, provém também de uma única vinha, Barrio, com o mesmo tipo de solo e que, em tempos, havia sido uma pedreira. Estas vinhas têm cerca de 15 anos, uma idade jovem para os exemplos da região. O que Mário Sérgio tentou foi que produzissem vinhos semelhantes aos das vinhas mais velhas. Para tal, desenhou-as a partir de modelos antigos, como vimos, e reduziu muito a produção. Conseguiu, desta forma, vinhos impressivos, muito estruturados e fortes. Como imaginou que seria um vinho Pai Abel.

Na nossa visita, tivemos oportunidade de conhecer os mais recentes lançamentos de uma outra homenagem, desta vez, ao avô Fausto, o grande companheiro de brincadeiras, cúmplice de conversas e segredos. O avô, ao contrário do pai, preferia vinhos mais ligeiros, mais abertos e menos alcoólicos, talvez pela maior elegância, talvez por ser possível beber mais quantidade… A verdade é que se procura, para os Avô Fausto, elegância e suavidade em vez de robustez e estrutura.

O branco de 2015 é um Maria Gomes, a casta preferida do avô, com uma quantidade de 3.500 garrafas. Foi fermentado em barrica usada, da Borgonha, não tendo sido filtrado, nem estabilizado. Se o quiséssemos reduzir a uma palavra, seria “delicadeza”. Todo ele exige atenção, numa descrição total, com enorme charme. Também o tinto, pela subtileza, precisa de olhar atento, sobretudo por estar ainda novo. É muito bonito, de estrutura esbelta e pouco extraído na cor, muito autêntico e com orgulho num certo lado de alguma rusticidade (a lembrar um Cabernet Franc - Chinon talvez…). Para Mário Sérgio é o menos consensual, mas sente que é o que mais se aproxima do que quer para o Avô Fausto. Este vinho não é sempre de uma só vinha e as castas podem variar. O 2013 é só de Baga, 80% de vinha velha e 20% de vinha nova, e teve uma produção total de 4.000 garrafas.

Depois, fomos apresentados ao mais recente “chumbo” na família. O Quinta das Bágeiras Reserva tinto 2015 foi rejeitado pela Câmara de Provadores da CVR Bairrada e, como tal, tem o carimbo “Chumbado” no rótulo das 5.700 garrafas. Trata-se de um lote de Baga e Touriga Nacional (60%+20%) e está agora a entrar no mercado. É um vinho descontraído, com a Touriga Nacional a proporcionar alegria e a possibilidade de ser bebido novo.

Para o fim, ficou o Abafado Baga 2005, que sairá em setembro, e a Aguardente Vínica Velhíssima. Esta última, foi elaborada a partir das cinco melhores barricas de 1989. Trata-se de uma aguardente que esteve 25 anos em barris de 50 litros, tendo passado os últimos três anos em barricas de Vinho do Porto. Apenas foram produzidas 307 garrafas, com um PVP de 430,00€. Para as aguardentes, Mário Sérgio faz uma primeira vindima de Baga (a segunda, é para o espumante rosé, enquanto a terceira vindima se destina aos vinhos tintos). É uma aguardente de uma profundidade assinalável, um pouco austera e muito envolvente, com notas de geleia e tabaco. Quanto ao Abafado (2.000 garrafas), teve estágio de barrica, tendo sido usada, na fortificação, aguardente de Baga. É um vinho com um carácter medicinal e algum exotismo, do qual Mário Sérgio se orgulha, promovendo este tipo de vinho doce com fortes tradições na região.

A Quinta das Bágeiras é um projeto que se prepara para a quarta geração e que envolve toda a família. Mário Sérgio conta com a irmã como sócia, com a mulher, Germana, à frente de toda a contabilidade da empresa e com os pais, que o apoiam incondicionalmente. O Frederico vai ser enólogo e a irmã Francisca é novinha, mas vai lavando garrafas…

Ao longo da vida recebeu vários prémios, entre os quais “Produtor do Ano 2014”pela Essência do Vinho. Os vinhos têm o reconhecimento dos pares, da crítica e dos consumidores, com os mercados estrangeiros a ocupar quase metade das vendas. É visto como um dos grandes produtores da região, com vinhos que se diferenciam pelo estilo e personalidade. E, com convicção e profunda sinceridade, diz-nos que o que mais queria era ver a Bairrada afirmar-se como marca…

 

17
Quinta das Bágeiras Abafado Baga 2005
Bairrada / Licoroso / Quinta das Bágeiras

Cor topázio. Os aromas estão no registo do estilo oxidativo, com madeiras exóticas e frutos secos. Na boca sente-se acidez elevada e tanino muito fino. Notas de tintura de iodo, associadas a noz, alfarroba e alcaçuz. Termina longo, com doçura equilibrada. É um vinho com muita presença e carácter distinto. CL

36,90 € / 14ºC
Consumo: 2017-2030

 

17,5
Quinta das Bágeiras Avô Fausto 2015
Bairrada / Branco / Quinta das Bágeiras

Amarelo limão. Aromas de manteiga, flor de laranjeira e casca de laranja, todo ele num perfil muito discreto e distinto. A boca é também subtil e muito delicada, com carácter citrino bem vincado, acidez equilibrada e final envolvente. CL

17,00 € / 11ºC
Consumo: 2017-2020

 

17,5
Quinta das Bágeiras Avô Fausto 2013
Bairrada / Tinto / Quinta das Bágeiras

Cor aberta. Novo, com algumas notas verdes e vegetal seco. A boca mostra acidez, taninos de textura sedosa e notas de resina. É discreto, com um traço de rusticidade muito autêntica. A prova implica atenção porque não é um vinho imediato, existindo uma elegância associada a alguma magreza muito distinta, quase glamorosa. Cheio de personalidade. CL

22,60 € / 16ºC
Consumo: 2017-2025

 

15,5
Quinta das Bágeiras Bruto Natural Rosé 2015
Bairrada / Espumante Rosé / Quinta das Bágeiras

Cor rosa aberto acobreado, com bolha fina/média. Tem nariz de fruta vermelha e vegetal seco, muito fresco e vigoroso. A boca é mais elegante que o nariz, com fruta fresca, boa mousse e final vegetal, num estilo seco, gastronómico e prazenteiro. CL

6,75 € / 8ºC
Consumo: 2017-2022


15,5
Quinta das Bágeiras Chumbado (Quinta das Bágeiras Reserva 2015)
Bairrada / Tinto / Quinta das Bágeiras

Cor violácea e densa. Nariz muito jovem, com traços vegetais marcados num fundo aromático floral. A boca reflete o nariz, com taninos moldados, acidez vincada e frescura. É um vinho harmonioso, com simplicidade e muito versátil na mesa. Um ótimo tinto para desfrutar novo. CL

9,05 € / 16ºC
Consumo: 2017-2022