Quinta do Vale da Perdiz 

Fotografia: Daniel Luciano

Há um episódio da origem do Barca Velha que se replicou em plena transição para este milénio – ou seja, 50 anos mais tarde – no surgimento de um outro vinho do Douro, e não muito longe do Vale Meão. Foi em Torre de Moncorvo, na Quinta do Vale da Perdiz, em pleno ano 2000, quando se fez pela primeira vez o vinho “Cistus”, assim batizado por ser esse o nome em latim da família da omnipresente “esteva” em solo duriense…

 

Longe vão os tempos em que ir ao Douro era um tormento. Como dizia Fernando Nicolau de Almeida, o criador do mítico Barca Velha nos alvores dos anos 50 do século passado, “é mais difícil ir ao Meão do que a Luanda”. Desses tempos originários em que, partindo do Porto, o Pocinho e a mais célebre das suas quintas ficavam a cinco longas horas de caminho, pouco resta para além das memórias. Mas há um episódio da origem do Barca Velha na Quinta do Vale Meão que se replicou em plena transição para este milénio – ou seja, 50 anos mais tarde – no surgimento de um outro vinho do Douro, e não muito longe dali. Foi em Torre de Moncorvo, na Quinta do Vale da Perdiz, em pleno ano 2000, quando se fez pela primeira vez o vinho “Cistus”, assim batizado por ser esse o nome em latim da família da omnipresente “esteva” em solo duriense.


Se no início dos anos 50 não havia nas adegas do Douro sistemas de frio como hoje existem, o que obrigou Fernando Nicolau de Almeida a “importar” gelo de Matosinhos para fazer o Barca Velha, nada fazia prever que em pleno ano 2000 tal fosse necessário. Mas foi. Como nos conta António Fernandes, produtor da Quinta do Vale da Perdiz que esteve na génese do DOC tinto Cistus, nem todo o novo equipamento necessário à produção do vinho estava nas melhores condições de funcionamento: quatro cubas de fermentação, um tapete de seleção, um esmagador, uma bomba peristáltica e um equipamento de frio. “O problema é que o equipamento de frio só fazia calor! Por isso, tal como fez Fernando Nicolau de Almeida, no primeiro ano do Cistus tivemos de mandar vir gelo de Matosinhos. Lá veio um carro frigorífico cheio de sacos de gelo – e também com gelo seco, que eu nem sabia que existia. E só no ano seguinte é que comprámos equipamento de frio em condições, que ainda hoje é o equipamento que temos na adega e que funciona perfeitamente”.
Esse foi o ano de viragem do projeto vitivinícola da Quinta do Vale da Perdiz, empresa familiar que foi buscar a sua designação a uma das várias quintas que integram o seu universo – uma quinta em solo de xisto com 14 hectares, no coração do Douro Superior, nas proximidades de Torre de Moncorvo, e onde podemos encontrar as castas nobres tradicionais da região: Touriga Nacional, Touriga Franca, Tinta Roriz e Tinta Barroca. Antes do ano 2000, o sócio fundador de Vale da Perdiz – António Augusto Fernandes, pai do atual produtor e dono da empresa – dedicava-se essencialmente ao Vinho do Porto.

Os vinhos segundo o enólogo

É na adega do “Cistus”, entre cubas, lagares e muitas dezenas de barricas (uma estrutura com cerca de 2400 metros quadrados que produz meio milhão de litros por ano e que está albergada em plena Torre de Moncorvo, num dos pontos mais altos da vila) que somos recebidos pelo produtor António Fernandes e pelo experimentado enólogo Manuel Areal, um galego responsável pelo Cistus desde a primeira hora – com uma pequena interrupção nos anos de 2002 e 2003 – e que faz vinhos também nas Astúrias e nas Rias Baixas.
Como era incontornável, a nossa conversa com Manuel Areal começa pelo colheita tinto “Cistus”, na sua versão 2017, o “blockbuster” da Quinta do Vale da Perdiz de que se fazem entre 300 a 400 mil garrafas/ano, dependendo da colheita, um vinho conhecido (e reconhecido) pela sua excelente relação qualidade/preço.


“O lote deste vinho não é sempre igual”, começa por nos explicar Manuel Areal, que ao fazer o “blend” privilegia não propriamente uma determinada casta mas sim as uvas que estão no ponto ótimo da maturação fenólica – ou seja, a maturidade reprodutiva (grainha e películas) que nem sempre acompanha o ritmo da maturidade industrial (grau potencial de álcool e valores de pH). “Nós aqui procuramos sempre um patamar de qualidade. Por isso procuramos fazer vinhos com a maturação fenólica completa, pois aqui no Douro Superior atingimos graduações mais elevadas”. E que vinho é este, no dizer de quem o faz? “É um vinho com uma certa estrutura, com um certo corpo, que no caso da colheita 2017 integra Tinta Roriz, Touriga Franca e Touriga Nacional, por esta ordem. Neste “Cistus” colheita, 10 a 15% do lote passa por madeira, mas são barricas usadas de terceiro e quarto ano, só para dar estrutura, redondez e equilíbrio. Não é para dar ao vinho impacto de madeira, não queremos isso”.
Descemos da sala de provas e vamos dar uma volta pela adega. Quando chegamos ao parque de barricas ficamos surpreendidos – com a diversidade, com a quantidade e, sobretudo, com o extremo cuidado que se percebe existir no estágio dos vinhos ali albergados. São barricas imaculadas de carvalho francês, americano, húngaro e português. E ali não falta nenhuma das marcas francesas mais referenciadas a nível mundial, de múltiplas tanoarias prestigiadas e dos diversos tipos de grão, do melhor que já vimos em Portugal. “E temos um parque de barricas muito bem controlado. Não deixamos nenhuma barrica mais de dois dias sem vinho”, diz-nos um orgulhoso Manuel Areal.


Para além do Cistus 2017, também já está no mercado o Cistus Reserva 2015, um vinho com um nível de estrutura superior, de vinhas com idade média de 26 anos, cujo lote integra maioritariamente Touriga Nacional (na proporção de 53%), Tinta Roriz e Touriga Franca, e que estagiou 17 meses em madeira nova e de segundo ano.
Referência especial para o Concilium 2011, que resulta de uma seleção das melhores barricas dessa colheita, lote com 50% de Tinta Roriz, 30% de Touriga Franca e 20% de Touriga Nacional que esteve 22 meses em barrica francesa de grão extrafino, “um vinho que corresponde à expressão máxima do que podemos fazer aqui na nossa adega”, como sublinha Manuel Areal. Vão fazer-se apenas mil garrafas deste vinho de que não publicamos aqui nota de prova, apesar da sua excecionalidade, pois só deverá ser lançado em finais do ano corrente.

Pioneiro no Douro Superior

Cumprida a visita a adega e provados todos os vinhos, rumámos para um agradável almoço no mais emblemático restaurante de Torre de Moncorvo, a Taberna do Carró, junto à igreja, mesmo no centro da vila. Aí tivemos oportunidade para aprofundar a conversa com o produtor António Fernandes, ficando a saber que o seu pai começou a plantar as vinhas “à volta” de 1985: “O meu avô era de uma aldeia aqui próxima”, começa por explicar-nos, “mas que fica fora do Douro, pelo que não havia anteriormente qualquer ligação familiar à região. O meu pai era engenheiro técnico agrário e trabalhava aqui na delegação do Ministério da Agricultura em Torre do Moncorvo. Nessa altura concorreu ao PDRITM, o Projeto de Desenvolvimento Rural Integrado de Trás-os-Montes, ainda antes da entrada de Portugal na então CEE. Houve uma série de fundos que se destinavam a reestruturar as vinhas tradicionais, as vinhas em que as castas estavam todas misturadas, e uma das condições para aprovação dos projetos era precisamente que as novas vinhas fossem plantadas com as castas separadas. E assim começou o projeto”.


“Nessa altura não havia praticamente produtores privados aqui na zona”, continua a contar-nos António Fernandes, “pois todos vendiam para a adega cooperativa. O meu pai também lhes entregava as uvas. Mas a certa altura arranjou massa crítica, juntou um conjunto de pessoas que aceitou avançar com ele, e embora fosse um tiro no escuro, avançou mesmo. Apesar da aposta principal ser o Vinho do Porto, muito naturalmente, desde o primeiro ano do projeto fez sempre um vinho do Douro, cuja marca ainda existe e que se chama “Fraga do Facho”. Por isso posso dizer que, aqui na zona, o meu pai terá sido um dos primeiros produtores-engarrafadores privados”.
Chegamos então ao ano 2000, o tal ano-chave que marca o arranque do “Cistus” com a entrada de António Fernandes no projeto: “Até ao ano 2000, o meu pai estava mais focado no Vinho do Porto. E a própria adega estava dimensionada – e foi concebida – para a produção de Vinho do Porto, em que há maior rotação e por isso não são precisas tantas cubas. A partir do momento em que arrancámos com o Cistus, começámos a investir na parte da adega e constituímos a empresa “Quinta do Vale da Perdiz” em julho desse mesmo ano, 50% pertencente à nossa família e os outros 50% a uma sociedade detida na sua maioria pelos irmãos Álvaro e Fernando van Zeller”.
Este caminho em conjunto com os irmãos van Zeller iria durar oito anos, até que em 2008 – ano do falecimento de António Augusto Fernandes, o sócio fundador de Vale da Perdiz – a família de António Fernandes compra os outros 50% da empresa aos irmãos Álvaro e Fernando van Zeller. E o projeto fica exclusivamente familiar até aos dias de hoje.


Para além dos vinhos DOC já referidos, a Quinta do Vale da Perdiz faz outro tanto de Vinho do Porto, sensivelmente 800 pipas por ano. E além do “Cistus”, mantém a marca “Fraga do Facho”, mas para já circunscrita a uma versão “bag-in-box”.
Os 50 hectares deste projeto estão repartidos pela já citada Quinta do Vale da Perdiz, mas também pela Quinta da Ponte de Pau (oito hectares e meio no vale da Vilariça, metade dos quais corresponde a vinhas velhas com uma idade média superior a 60 anos), Quinta da Vergeira (no vale do Nídeo, em Foz Côa, também oito hectares e meio de Tinta Roriz, Touriga Franca, Touriga Nacional e Tinta Barroca), Quinta do Vale da Pia (a cerca de três quilómetros de Torre de Moncorvo, uma grande propriedade com dez hectares de vinha em socalcos) e Quinta das Chãs (nas terras chãs do vale da Vilariça, ou seja, na zona integralmente plana da Vilariça, com uma área total próxima dos 7 hectares).
 

TEXTO Luís Costa