As Conferências do Casino do séc. XXI

Fotografia: Fotos D.R.

A Póvoa de Varzim agrega memórias naturalmente ligadas ao mar, à pesca e ao prazer que o mar proporciona. O lazer associado à praia conheceu, no séc. XIX, um período de expansão e a praia da Póvoa de Varzim, com o seu extenso areal, era a praia mais turística do norte do país. 


Há outro tema indissociável desta cidade. A literatura. Eça de Queiroz nasceu na Póvoa e isso não é coisa pouca. A Póvoa de Varzim vê-se, neste momento, candidata a Cidade Criativa da Literatura, integrando a rede de cidades criativas da UNESCO. A memória de Eça continua a mostrar-se matéria que alimenta as manifestações culturais mais diversas.
Neste fervilhar de criatividade, está o restaurante de alta cozinha Egoísta, do Casino da Póvoa de Varzim, que abriu as portas em junho de 2009, com o chefe Hermínio Costa desde a primeira hora e com o arquiteto Miguel Esteves a assinar o magnífico espaço. Na sala, a hospitalidade da equipa liderada por Ricardo Salgado, que é também o sommelier, fazem-nos sentir bem-vindos. O Casino da Póvoa relaciona-se, desde sempre, com a arte e com a cultura. Por um lado, assume o papel de mecenas, distinguindo artistas de diversas áreas. Por outro, associa-se ao município para apoiar as “Correntes d’Escritas”, o festival literário criado em 2000 a pretexto do centenário da morte de Eça de Queiroz, que continua a ser uma referência na Península Ibérica. E edita, há duas décadas, a revista “Egoísta”, reconhecida internacionalmente pela qualidade nos conteúdos e design.

Também o restaurante Egoísta é um espaço de cultura. Sempre foi. Artistas como Júlio Resende, Nikias Spakinakis, Francisco Simões ou Alberto Carneiro, entre outros, surgem em peças que parecem não poder existir noutro lugar. E Hermínio Costa pratica uma cozinha que não perde de vista as bases clássicas, sólidas e essenciais para criar um estilo. A essa base, acrescenta o valor da sua sensibilidade e do seu rigor. Reinventa-se a cada carta. O Atlântico, forte e aromático, insinua-se em cada estação, numa forma única de interpretar peixes e mariscos. Os legumes, a carne, os produtos de época, hoje em dia tão evocados, as sobremesas, tudo nos conta uma história e convoca memórias. Momentos elevados de prazer que o Egoísta nos tem vindo a proporcionar há 10 anos. E que tinham que ser devidamente assinalados, conforme nos diz a administração do Casino da Póvoa.

As comemorações do 10º aniversário do Egoísta estendem-se ao longo de um ano, tendo tido início em junho. Da ambiciosa agenda cultural faz parte o ciclo “Conferências do Casino”, uma recriação de dez jantares históricos – Eça de Queiroz participou nas “Conferências do Casino”, em 1871, onde apresentou “O Realismo como nova expressão da Arte”. Estas conferências aconteceram em Lisboa e foram uma reflexão sobre as mudanças políticas e culturais do séc. XIX. Realizaram-se apenas cinco, com o Estado a proibir as restantes. Estavam previstas dez. Cada uma tinha um tema, sempre com conferencistas diferentes. 

Quase 150 anos depois, evocam-se as “Conferências do Casino”, com o Egoísta a propor dez temas com dez conferencistas. Desta vez sem censura. Dez jantares relevantes da história de Portugal. Um por cada ano do restaurante. O chefe diz-nos que voltou aos livros, que voltou a estudar como há muito não fazia. Estes dez jantares começam e acabam em Eça e varrem uma linha de tempo que vai da Alta Idade Média até aos nossos dias, para os quais é imperiosa a investigação histórica e o aprofundamento de conhecimentos da cozinha que era praticada em cada época. Quem tiver o privilégio de assistir a todas estas conferências ficará com uma história viva da gastronomia portuguesa, como nunca se havia feito. Os desafios que se colocam a Hermínio Costa não são pequenos e alguns deles já foram ultrapassados com distinção (!), como vemos a seguir.

Os Maias, Chic a Valer!

No dia 6 de junho deu-se início ao ciclo “Conferências do Casino”, com a recriação do jantar oferecido por João da Ega ao banqueiro Cohen, no Hotel Central, o mais elegante hotel de Lisboa. Esta refeição faz parte do romance “Os Maias”, de Eça de Queiroz, publicado em 1888. A oradora foi Isabel Pires de Lima, ex-ministra da Cultura (2005-2008), professora catedrática da Faculdade de Letras da Universidade do Porto, grande especialista em Eça. Foi apresentado um excerto do filme “Os Maias”, de João Botelho, com a refeição do Hotel Central. E logo começámos a mergulhar no ambiente e na época do romance. Em toda a obra querosiana as refeições assumem particular importância. Há uma quase obsessão na descrição de pratos e vinhos, e “Os Maias” não é exceção.

O romance pode resumir-se a um retrato da decadência de uma família em torno de duas histórias de amor, do pai e do filho. É o espelho do Portugal romântico, da decadência do regime liberal, da monarquia e das elites. Foi salientada a importância desta refeição para toda a narrativa. No Hotel Central, a personagem Ega defende o Realismo, enquanto Alencar defende o Romantismo. Era um debate na ordem do dia, que dividia a sociedade culta, discussão que Eça não legitimava. É, também, o momento que Eça escolhe para proporcionar o primeiro encontro entre Carlos da Maia e Maria Eduarda, o par em torno do qual o romance se desenvolve. E nessa noite, enquanto se fala de literatura, política, bancarrota e decadência da cultura portuguesa, desfilam pratos e vinhos extraordinários, bem ao gosto do séc. XIX, que via na cozinha francesa o modelo a seguir.

A oradora salienta a capacidade que Eça tinha de fazer-nos rir com um romance trágico, que mostra o pior da vida e o pior do mundo… E tudo se passa à mesa. Isabel Pires de Lima diz-nos que “nos romances de Eça [não diria amor, mas] sexo e mesa estão sempre presentes!”. Quanto à refeição, Hermínio Costa foi o verdadeiro chefe de cozinha do Hotel Central. Antes da conferência, foi servido um vermouth, como se usava no final de oitocentos, La Quintinye Vermouth Royal Rouge. Nas mesas, a decoração seguiu o romance, com camélias e ananases. A refeição tinha sido desenhada por Ega, juntamente com o chef de cozinha do Hotel Central, para impressionar Cohen. E impressionou. Como impressionou quem a reviveu no Egoísta. Hermínio Costa estava no seu elemento, já que a sua formação clássica tem todas as bases da cozinha francesa, continuando ele a usar essa gramática nas criações contemporâneas. Também o menu seguiu o preceito dos menus da época, integralmente escritos em francês, com o grafismo original do restaurante do “Grand Hotel Central - Lisbonne”.

Para entrada, o romance refere “Huîtres” e Bucelas. E assim foi. Ostras frescas, acompanhadas do Morgado de Sta Catherina Reserva 2016, para um grande primeiro momento. Depois, sopa, com Hermínio Costa a apresentar “Potage - Julienne, Tapioca et Crécy”, ou seja, um creme de legumes, com tapioca (muito usada na época, em França), alguns legumes em tiras finas e cenoura (crécy). Uma verdadeira ponte entre conforto e erudição. De seguida, “Sole Normande”, à qual Eça acrescentou um detalhe de sofisticação. Seria acompanhada com um vinho tinto, St. Emilion. Ao classicismo do “Linguado, Mexilhões e Camarão”, com molho de grande técnica e sensibilidade (ou será ao contrário?), juntou-se o Château-Haut Sarpe Grand Cru Classé 2011. Novo e energético, tem o encanto da doçura do Merlot, que o acalma e o deixa envolver-se perfeitamente com a “Sole Normande”. O mesmo com o prato seguinte, no romance “Poulet aux Champignons”, que Hermínio Costa ambiciosamente afinou para "Poulet de Bresse aux Champignons”, tendo importado as requintadas galinhas francesas, da raça La Bresse Gauloise, de carne especial, que se reconhecem pelas inconfundíveis patas pretas. Também aqui, como previra Eça, o St. Emilion foi uma escolha acertada.

Para as “Petits Pois à la Cohen”, com champanhe, ouviu-se um “chic a valer!”, exclamação do convencido e provinciano Dâmaso, a personagem que Eça escolheu para personificar o novo-riquismo e os vícios lisboetas. Na preparação do menu, Ega tinha pedido um prato para o homenageado. Ficou decidido, com o chefe, que seria um prato de ervilhas com molho branco. Aqui, Hermínio Costa foi bem mais chique e avançou para um “aspic”, um clássico da cozinha francesa, na qual as ervilhas e um ovo de codorniz ficaram envolvidos em gelatina transparente, com grande beleza e sabores delicados, com a gema perfeitamente líquida. O champanhe servido foi o profundo Louis Roederer 2012.

A narrativa de Eça não refere a sobremesa, apenas que no fim da refeição os comensais “atacaram os ananases” do arranjo. Pois bem, o chefe Hermínio decidiu usar esse fruto numa “Charlotte à l’Ananas”, que bem poderia ter saído da cozinha do Hotel Central. Também não há qualquer referência a Vinho do Porto (tão comum em Eça), mas emendou-se a mão ao escritor e foi servido um Croft 10 Anos, que não só alinhou com a Charlotte como se mostrou um dos grandes 10 Anos que temos no mercado. “Chartreuse, licores e cognac” foram os últimos protagonistas desta refeição literária e, no Egoísta, foram o remate da primeira e inesquecível “Conferência do Casino”.

Abade de Priscos, à grande e à francesa!

Póvoa de Varzim, 3 de outubro de 1887. A família real havia chegado ao Porto cerca de uma semana antes, para uma visita oficial ao norte do país. Nesse dia, estava marcado um jantar na Póvoa, preparado há meses por Manuel Joaquim Machado Rebelo, Abade de Priscos, e que incluía os mais requintados ingredientes, pratos e vinhos. Póvoa de Varzim, 26 de wetembro de 2019. A segunda “Conferência do Casino”, com a recriação deste banquete histórico. Para orador foi convidado o crítico gastronómico Fortunato da Câmara, autor do livro “A Vida e as Receitas Inéditas do Abade de Priscos”. Esteve presente o sobrinho do próprio Abade, Mário Vilhena da Cunha, co-autor do referido livro, que partilhou uma série de objetos do tio: loiça, toalhas de linho, o menu do jantar devidamente anotado e a forma de cobre do famosíssimo pudim. Tudo exposto durante a conferência.

Fortunato da Câmara explicou detalhadamente como tinham sido os preparativos para o jantar, desde os melhores fornecedores dos produtos mais requintados e exclusivos, à preparação das mesas, com cristais e pratas. Falou igualmente da excecionalidade de um homem à frente do tempo, atento a tudo o que o rodeava. O Abade de Priscos tinha especial talento para interpretar e executar receitas, era um seguidor da alta cozinha francesa, usando as técnicas e produtos com grande criatividade. A dualidade rigor-requinte era a linha mestra.
O menu original é muito extenso, um verdadeiro banquete à medida da época. O chefe Hermínio fez o exercício de o reduzir não o desvirtuando. O mesmo aconteceu com os vinhos, tendo Ricardo Salgado tido a inteligência de não saturar a refeição. Antes da Conferência foi servido champanhe Mumm Cordon Rouge. O livro de Fortunato da Câmara foi precioso, já que enuncia as compras que foram feitas. Assim, no menu apenas está referido “champagne”, mas nessas listas, está Mumm e Chandon. A entrada foi um “Consommée de Perdrix à l’Abbé de Priscos”. Assim mesmo, como o próprio Abade o enunciou. Um verdadeiro manifesto de delicadeza e bom gosto, perfeitamente límpido, de cor topázio brilhante, no mesmo tom do Blandy’s Sercial 10 Anos que tínhamos no copo. A cor foi reforçada com o uso de cebola, enquanto a transparência cristalina foi conseguida com claras de ovo (clarificação). Precioso! 
Seguiu-se o “Pâté de Gibier, Brioche et Foie Gras”, com o Sauternes Château Les Justices 2010. Aqui, o chefe juntou três elementos distintos do menu original com grande mestria. Percebe-se laranja no Pâté de Caça, numa grande harmonia com o Sauternes. O “Poisson à la Póvoa de Varzim” materializou-se na reconhecida pescada da Póvoa, servida com alcaparras, couve-flor e um molho aveludado, onde se percebia a profundidade do conhaque usado. Para completar, um branco de Colares, Casal Santa Maria 2014.

Passámos, depois, para dois pratos de carne, com o mesmo vinho. O menu refere “Bordeaux”, informação que foi complementada com o registo das compras, “Saint-Julien”. No Egoísta foi servido o Château Lagrange 2015. Primeiro com “Salmis de Caille aux Truffes”. Depois com o “Filet de Boef Glacé au Porto et Petits Legumes”. Mais uma vez, a mestria e rigor do chef Hermínio Costa foram absolutamente irrepreensíveis. Para a codorniz, que surge com acompanhamento de cogumelos e trufas, Hermínio Costa tinha lido apontamentos do Abade de Priscos que referiam “pinhoada”. Após algumas experiências percebeu que a doçura da pinhoada (nougat de pinhão) se ia impor demasiado, mas não queria desistir da ideia. Então, polvilhou a carne e o molho com pequenos “cristais” e o resultado foi… um fogo-de-artifício surpreendente. O clássico “Filet de Boeuf” surgiu com cozedura e sabor perfeitos, molho brilhante (brilho acentuado pela adição de um pouco de chocolate) com redução que durou dois dias. No comentário final, o chefe Hermínio, com a descrição que o caracteriza, desabafou “foi apenas isso…”. A sobremesa, juntou duas do banquete desenhado pelo Abade de Priscos, “Gelée aux Fraises en Belle Vue, Gateau Breton au Chocolat”. A subtileza da geleia de morango foi o contraponto perfeito para a “gourmandise” que associamos ao chocolate. Uma ligação clássica, morango e chocolate, que encontrou eco no Porto escolhido, Rozés LBV 2009.

Quando nos preparávamos para o (merecido) café, Fortunato da Câmara retoma a palavra para nos falar um pouco do Pudim Abade de Priscos. A forma original lá estava. Também a receita, passada por uma sobrinha de Manuel Joaquim Machado Rebelo (ele nunca a escreveu). Esta era uma sobremesa caseira e não era indicada para menus sofisticados. Claro que não foi servida ao rei D. Luís… mas claro que, à revelia do moralismo gastronómico do Abade de Priscos, Hermínio Costa preparou pequeníssimos pudins, feitos em formas de canelés, também em cobre, como mignardises para o final da refeição. Tudo “à grande e à francesa!”


Infante D. Henrique, Talent de Bien Faire

No dia 14 de novembro, a terceira “Conferência do Casino” recuou à Alta Idade Média, a dezembro de 1413, com os banquetes que o Infante D. Henrique promoveu para a “Apresentação do Plano Ultra-Secreto da Conquista de Ceuta aos Grandes de Portugal”. A conferencista convidada foi Bernardete Faria, professora de História e de História de Arte. O Infante faz parte da chamada ínclita geração, nome dado aos filhos de D. João I e D. Filipa de Lencastre, pelas suas imensas qualidades. Na “Crónica da Guiné”, de Gomes Eanes de Zurara, é apresentado como o arquétipo do cruzado, cuja divisa “Talent de Bien Faire”, mais tarde adotada pela Marinha em sua homenagem, é bem reveladora da sua personalidade.

Bernardete Faria mostrou-nos a importância dos banquetes que o Egoísta se propôs recriar. Em termos geo-estratégicos, Ceuta era uma cidade fundamental e D. João I decide conquistá-la, começando a arquitetar essa expedição em segredo. Também ouvimos Bernardete Faria referir, com graça, que o rei “tinha a nobreza desempregada, há décadas que não havia uma guerra” (!). A verdade é que Ceuta foi o ponto zero dos Descobrimentos portugueses. Foi a partir desta expedição que se começou a descer pela costa de África. Que se avançou pelo mundo, originando a tão falada “globalização”.

E como se chegam a estas “festas de desenfadamento” promovidas pelo Infante D. Henrique? Foram a forma de garantir a aliança com os “grandes de Portugal”, foram dias lúdicos que “amaciaram” os mais perigosos. As festas duraram 15 dias, entre o Natal e os Reis, em Viseu, porque os domínios da comarca da Beira foram dados ao Infante. Viseu era a sua casa, uma espécie de corte da aldeia. O plano para a conquista de Ceuta só viria a ser apresentado em julho de 1414, em Torres Vedras. O que é fascinante, neste tema, é o facto de estarmos perante cozinha medieval e de não haver registos concretos das refeições. A partir das fontes existentes, Hermínio Costa teve de interpretar pistas e, a partir de um estudo aprofundado da cozinha medieval portuguesa, construir uma refeição que espelhasse o que poderia ter existido na mesa do Infante.

Antes da conferência foi servido Phaunus Pet Nat Loureiro 2017. A existir um vinho efervescente na Idade Média, só mesmo um “petillant naturel”. Neste caso, até o nome, o rótulo e a filosofia da biodinâmica que lhe está associada, fazem sentido. Todas as refeições medievais tinham pão. De centeio, mais comum. De farinha de trigo refinada e branca, para as mesas abastadas. E aqui tivemos esses pães e também uma fogaça, da qual já existem registos na época. Depois, começava-se com um caldo. Hermínio Costa apresentou um “Caldo de Carne e Verças”, generoso na carne por estarmos na mesa do Infante, de notável autenticidade de sabor (verças eram couves e hortaliça). Serviu-se um palhete, o Quinta de Montalto Medieval de Ourém 2017. O nome fala por si. Um vinho que existe desde o séc. XII, exemplo vivo do estilo que se preferia. Seguiu-se a “Truta Defumada com Papas de Milho Painço”. Nas Beiras, com a distância do mar, as trutas eram uma preferência natural. E as “papas” eram recorrentes. Quer fossem engrossadas com pão quer fossem de cereais. Ainda não existia o milho miúdo (originário da América do Sul), mas o milho painço ou “millet” era muito comum, sobretudo no norte do país. O conjunto resultou num grande prato, que poderia perfeitamente constar numa carta do séc. XXI. E quanto ao vinho? Zurara refere ter havido preferência pela Malvasia da região e, no Egoísta, foi servido o Quinta das Maias Malvasia Fina 2018, do Dão.

No prato seguinte, uma surpresa que certamente agradaria ao anfitrião. Há registos do seu prato preferido ser “Bacalhau com Cebola e Amêndoas”. Hermínio Costa deslumbrou com uma cebola recheada, num rasgo de criatividade, sem recorrer a técnicas extemporâneas. É simplesmente uma cebola cortada ao meio, com o bacalhau desfiado com azeite e a amêndoa laminada. No copo, o branco do Dão Paço dos Cunhas de Santar Vinha do Contador 2014.

Depois, entramos no reino das carnes. Primeiro “Capão Assado com Castanhas”, um prato muito apreciado na Idade Média (herança romana), que tinha lugar nas grandes mesas. A carne estava deliciosamente suculenta e as castanhas, usadas como acompanhamento (papel que a batata viria a tomar, mais tarde), além de serem um produto da época (dezembro), foram uma escolha perfeita. Por fim, caça, indispensável numa mesa da nobreza. “Veado Guisado com Cogumelos”, apresentado numa pequena cocotte. Para a carne foi servido Beaune 1er Cru Lei Reversées 2014, de Jean Claude Rateau. Zurara refere vinhos franceses e, se realmente existiram nestes banquetes, a escolha de um Borgonha parece acertada. Pela ancestralidade, primeiro com os romanos, depois com os monges de Cister. E pela ligação da Borgonha a Portugal. O pai de D. Afonso Henriques, primeiro rei de Portugal, era borgonhês, não sendo por acaso o papel que a Ordem de Cister (originária da Borgonha) teve no povoamento do território. A verdade é que o lado etéreo do vinho encontrou relação elevada com os pratos. Parece que se voltou ao essencial da cozinha e do vinho. Muito bonito.

Por fim, “Bolo e Fritos de Mel com Marmelada”. Como nos referiu Bernardete Faria, existia açúcar mas era caríssimo. O mel era o adoçante mais usado. O mesmo se passava com as especiarias. Existiam algumas, que chegavam à Europa por rotas terrestres. E, aqui, o chefe Hermínio usou, também, um pouco de canela. Como vinho de sobremesa, Barbeito Malvasia 10 Anos. E perguntamo-nos… já existia Vinho Madeira? Claro que não. Surge aqui porque a Madeira foi descoberta há 600 anos (1419), por iniciativa do Infante D. Henrique. Também por sua iniciativa, 30 anos depois, foram plantadas as primeiras vinhas, de Malvasia, trazidas da Grécia.

José Bento dos Santos, presidente da Academia Portuguesa de Gastronomia, presente nas três conferências, disse ter sido a que mais o emocionou. Pelo desafio. Pela concretização perfeita de uma cozinha medieval. Disse-nos que apenas existiam quatro tipos de cozedura na Idade Média: em água, assado (diretamente nas brasas), guisado (ou estufado) e frito (com azeite, herança árabe). Ao longo da refeição tivemos todos os exemplos e esse cuidado impressionou-o. Também os vários tipos de conserva, fumo (truta), sal (bacalhau) e açúcar (marmelada). Percebe-se um “Talent de Bien Faire”, uma vontade de fazer bem. E conseguir.

Nas cenas dos próximos capítulos, o Egoísta propõe, já no dia 11 de dezembro, o Banquete que a Rainha D. Catarina ofereceu a D. Maria de Portugal para celebrar o casamento com o Duque de Parma (1565). Com a convidada Guida Cândido, autora do livro “Comer como uma Rainha”. Para 2020, as datas serão ainda anunciadas. A não perder.

TEXTO Célia Lourenço