Bacalhau e vinho (branco)

Fotografia: Daniel Luciano
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Alegadamente, o bacalhau é a grande estrela da cozinha tradicional portuguesa. Quando pensamos em apenas um prato que evoque um país, tal como a feijoada no meu Brasil, a massa em Itália ou a “paella” em Espanha, é uma bela posta alta de bacalhau, soltando em lascas intercaladas pela sua gelatina, mergulhada em bom azeite perfumado com alho, que me vem à cabeça.

 

A tradição em Portugal é acostar o bacalhau com um vinho tinto. Mas o que nos diz a técnica da harmonização vinho-alimento? Como aproveitar ao máximo o nosso “fiel amigo” e não atrapalharmos aquela garrafa especial que tencionamos desarrolhar na noite da Consoada? No final de contas, o vinho vem ao mundo para dar prazer e cada um bebe o que quiser com o prato que quiser, mas do ponto de vista técnico, este sommelier tem que alertar-vos: bacalhau com tinto, não!


A versatilidade do Gadus morhua ou bacalhau-do-Atlântico na mesa é assombrosa. Aliada ao facto de que é consumido desde o séc. XIV em Portugal, deslumbramo-nos atualmente com essa miríade de receitas tradicionais nas quais o bacalhau submetido ao processo de salga é protagonista. Milhares de preparos que envolvem o peixe demolhado, depois assado ou grelhado, frito ou escalfado, cozido e até mesmo “cru”. Muitos ingredientes entram nestas receitas já canonizadas ao longo dos tempos, e alguns ilustres companheiros costumam repetir-se em várias delas: azeite, alho, cebolas, batatas, ovos, grãos, natas, grelos, azeitonas, arroz, pão, pimentos...


Uma possibilidade para esse nosso artigo de harmonização seria elencar uma série delas: Bacalhau à Brás, Bacalhau assado no forno, Bacalhau com natas, Bacalhau à Gomes de Sá e depois sugerir um vinho para acompanhar cada uma. Mas não, queremos desta feita mostrar que, independentemente do preparo e dos ajustes de sintonia fina que faremos depois com o vinho a harmonizar, as características fundamentais do bacalhau estarão sempre lá, a impor com intransigência as suas premissas em relação ao nubente vínico deste casamento ao mesmo tempo difícil e auspicioso. Vamos a isso!

O príncipe dos mares frios e do iodo


O que torna o bacalhau salgado tão diferente dos demais peixes e que condiciona completamente os vinhos a escolher para acompanhá-lo? Em primeiro lugar, o bacalhau salgado apresenta um alto conteúdo proteico de mais de 20% da carne, concentrado ainda pelo processo de cura com sal. Essas proteínas são muito importantes para o peixe sobreviver em águas congelantes, mas não tão fundamentais para a harmonização vinho-alimento. O teor de gordura é baixíssimo na carne, de aproximadamente 1%, a saudável poli-insaturada ómega 3 a dominar a composição. O facto de acumular a gordura no fígado e ser um peixe magro na carne é de suma importância para percebermos que não tornam necessários elementos no vinho que tradicionalmente são empregados pelos sommeliers para emulsionar e detergir gordura sólida nos alimentos: acidez, sapidez e gás carbónico. Aqui temos uma situação inversa do vinho a eleger, em comparação com os peixes gordos como as sardinhas, o salmão, o atum, o arenque ou a enguia.


Pela ação osmótica da salga, há uma concentração muito grande de sal nos tecidos do peixe e mesmo com uma demolha bem-feita, o bacalhau é rico em sódio e, consequentemente, num dos cinco sabores essenciais, o salgado. Aliás, não gosto nada quando provo um bacalhau insosso. É como beber um Baga sem taninos ou um Madeira sem acidez. Pelas regras de harmonização, quando temos uma aresta de dureza no prato como a presença marcante de salinidade, temos que amortecer esse ataque com elementos de maciez do vinho, a saber: o álcool, poliálcoois como a glicerina, e, eventualmente, os açúcares residuais. 


Em Portugal o bacalhau salgado já é um “gosto adquirido”, mas para muitos estrangeiros iniciantes que enveredam pela panóplia dos seus sabores intensos e distintos, concentrados pelo processo de salga e cura, temos aí um alimento idiossincrático, do tipo “amo ou odeio”. Um dos motivos do bacalhau não deixar ninguém indiferente ao seu perfil gusto-olfativo é o facto de ser uma fonte intensa de umami, outro sabor essencial plenamente discutido no artigo de harmonização com o atum, na Revista de Vinhos nº 345. O peixe fresco já apresenta teores relativamente altos de inosinatos, os quais são ainda exponenciados pela concentração durante a salga. Como o umami no prato realça e revela no vinho todos os seus elementos de dureza, mais uma vez temos que preconizar vinhos cuja balança do equilíbrio penda para o lado da maciez e não para a firmeza conferida pelo trinómio taninos-ácidos-sais.


Contudo, a característica mais importante, que deve ser o norte principal para navegarmos pelos mares escuros e gélidos da harmonização com o bacalhau, é o seu altíssimo conteúdo de iodo. Apenas 100g de bacalhau fornecem aproximadamente 120mcg de iodo, perto das necessidades diárias totais de um adulto. Muito saudável como alimento, certamente, mas implacável para arruinar qualquer vinho com taninos, e, neste caso, obviamente os vinhos que são macerados com cascas, engaços e sementes, os vinhos tintos.

Bacalhau metaliza até Rufete

Cito o Rufete pois foi o tinto leve de corpo que escolhi para o meu teste de harmonização deste artigo, mas poderia ser qualquer vinho tinto com baixa carga tânica e equilíbrio voltado para a maciez da fruta. Era de facto um delicioso Rufete da Beira Interior, uma resposta de Portugal aos Pinot Noirs frutados e elegantes, e aos bons Beaujolais de taninos muito sutis. Este foi um dos quatro vinhos que abri para acompanhar uma posta gigantesca de bacalhau apenas regada em azeite no forno, da forma mais natural possível. O resultado já o esperava, pois há muitos anos luto contra a ideia de vinhos tintos com bacalhau. O tão sedoso e frutado Rufete ficou magro e duro, e os seus taninos totalmente metálicos, no confronto com o iodo do bacalhau. Um casamento fracassado com divórcio litigioso. E o pior é que ainda vejo às vezes recomendações de tintos tânicos do Alentejo e Douro com bacalhau, um desastre de proporções épicas, na minha opinião.


O segundo vinho que testei com a minha linda posta perfeitamente confitada, desfazendo-se em lascas suculentas revestidas da gelatina do bacalhau, foi um vinho de talha do Alentejo, de um dos meus produtores preferidos nesta escola. Um convincente branco de “talha” que ostentava a estrutura necessária para encarar o bacalhau, mas cuja riqueza fenólica conferida pela curtimenta com as cascas saltou do equilíbrio, realçada pelo iodo do bacalhau. Tal como no tinto, o vinho tornou-se magro, adstringente e metálico, perdendo a sua fruta e equilíbrio. Casamentos errados por vezes destroem o carácter de uma das partes.

Frescura e mineralidade?

O mundo pede cada vez mais frescura, tensão e mineralidade nos vinhos brancos. Essa é a nova tendência, e mesmo no Novo Mundo, cujos apanágios de alguns dos seus clássicos brancos eram a potência, a cremosidade e a maciez, o padrão mudou radicalmente na última década. Confesso que sou um dos arautos da frescura e mineralidade nos brancos e emociono-me quando me deparo com um Chardonnay atual do Chile, da Argentina, dos Estados Unidos ou da Austrália, antes uma bomba de fruta sem tensão, e encontro-os vibrantes, eletrizantes, puros e frescos como um Chablis. A verdade é que cada vez é mais difícil encontrar um branco gordo, de acidez não pontiaguda, cremoso e macio. Em qualquer lugar do mundo! E é exatamente esse perfil generoso que precisamos para alguns alimentos e pratos como o bacalhau. O sal do bacalhau precisa do conforto da maciez do vinho. O umami do bacalhau irá aguçar todos os elementos de dureza do vinho. Se este já se equilibra para a frescura e mineralidade, ficará totalmente pendente para a balança da dureza quando encontrar o bacalhau.


O terceiro vinho que testei foi um branco do Douro de cotas altas, sempre impressionante na sua frescura e sapidez mineral do xisto. Infelizmente, o equilíbrio do vinho que já pendia agradavelmente para o lado da dureza, resultou completamente ríspido, como se escutássemos uma música apenas com os agudos, sem o balanço dos graves. E o bacalhau ficou com gosto de óleo de peixe, talvez pelo efeito do ferro no xisto com a gordura insaturada.

Brancos grandes, grandes "pairings"

O meu quarto vinho do teste com a posta de bacalhau engendrou uma harmonia perfeita e pude realizar com fervor a transição de uma experiência técnica de trabalho para usufruir de um delicioso momento hedonístico. Um branco alentejano maduro, anterio à atual transformação em vinhos de menos álcool e mais frescura. Grandioso no olfato e na boca, gordo, untuoso e quase enjoativo na exuberância da fruta, ao escoltar o bacalhau teve o seu lado da dureza, antes oculto no equilíbrio, acentuado e revelado pela carga de umami. A sua maciez alcoólica e glicérica amorteceu o salgado do peixe. O iodo não tinha o que metalizar, pois os fenóis da madeira eram muito discretos e já integrados na estrutura. Um casamento harmónico de dois grandes carácteres.
Outros grandes brancos portugueses notórios pela sua estrutura, corpo, untuosidade e riqueza, além do Antão Vaz alentejano, podem trazer harmonias fabulosas com o bacalhau. Mas atentem para que não tenham o equilíbrio governado pela frescura e mineralidade. Alguns grandes Encruzados do Dão, ainda que estejam cada vez mais tensos e minerais, Viogniers de Lisboa, Fernão Pires de Setúbal ou do Tejo.


Depois, para cada receita específica, ajustamos um pouco os parâmetros do vinho a harmonizar, mas sempre dentro das condições discutidas acima. Um outro aspecto muito importante da superioridade destes grandes brancos alcoólicos e macios para o casamento perfeito é que as receitas de bacalhau normalmente trazem muita untuosidade, nomeadamente do emprego copioso do azeite. Para gordura vegetal em estado líquido, não usamos acidez para limpá-la, mas sim álcool no caso dos brancos e taninos no caso dos tintos (para os quais não há hipóteses dada a carga imponente de iodo do bacalhau). Tudo fecha com perfeição para preconizarmos a maciez em detrimento da dureza quando o assunto é o bacalhau. Um branco tenro, generoso, magnificente e aconchegante como deve ser a Consoada, onde o bacalhau é absolutamente impreterível.