CACHENA E BÍSARO

Carnes de eleição no Minho

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Aqui evoca-se a esteva e a urze da serra, o som do silêncio nas montanhas graníticas e selvagens. Uma dimensão que se reflete num produto DOP português pouco conhecido mas com muito sabor: a carne cachena. O cenário é Arcos de Valdevez, a Serra da Peneda e Soajo, território onde se produz esta iguaria nacional. Perto, em Melgaço, recuperou-se também outra tradição: a criação de bísaro e do fumeiro. Ambos estavam em risco de extinção, mas portugueses corajosos meteram mãos à obra e ressuscitaram produtos que, por esta altura, já teriam desaparecido. Um percurso gastronómico em versão “slow food” no coração do Minho. 

 

Cachena e bísaro. Dois produtos com caraterísticas organoléticas únicas, no Minho, que estavam em risco de extinção apenas há alguns anos. A vontade indómita de pequenos produtores conseguiu reabilitá-los e hoje são símbolos gastronómicos autóctones.

Poucos conhecem a cachena, mas esta carne tem características singulares por uma bela razão: pelos montes, atravessando a cumeeira das serras, o gado de raça cachena calcorreia o território verdejante e agreste à procura dos melhores pastos naturais. Cresce e vive em altitude, metade do ano, num habitat puro e selvagem. Daí este sabor único da carne que ganha se for provada in loco, apenas grelhada e com umas pedrinhas de flor de sal.

Proveniente da Peneda/Gerês – um bovino endógeno que se distingue pelo equilíbrio entre o sistema de produção e as características da própria raça – a cachena é, normalmente, criada em regime extensivo, em zonas de montanha e em várias aldeias do parque nacional, tendo no concelho de Arcos de Valdevez o grande centro produtor, sobretudo nas freguesias de Cabreiro, Gavieira, Sistelo e Soajo,

O Minho numa versão pura e sustentável é, sem dúvida, uma forma convidativa de descobrir o melhor que a tradição gastronómica nos pode oferecer, numa filosofia que propugna o movimento “slow”, onde tudo é feito ao ritmo da natureza, sem pressas… e integrado no espírito sustentável, salvaguardando a biodiversidade dentro da chamada “ecogastronomia”.

Comecemos pela cachena da Peneda DOP, com uma identidade própria porque define um território, uma forma única de produção, um potencial cultural e um saber fazer. De rusticidade ímpar, maior do que qualquer outro bovino autóctone da Península Ibérica, para a encontrarmos devemos ir até à alta montanha, em cotas elevadas, acima dos 800 metros.

Pastoreando livremente em grupo, em áreas comuns amplas, vive ao ar livre durante praticamente todo o ano, por vezes quase em regime semi-selvagem e é, atualmente, parte integrante do património genético do nosso país. Estamos perante um produto que sabe à terra e à tradição, condensando as novas tendências “locavore”. Daí ter visto recentemente ser aprovada a candidatura à integração na célebre Arca do Gosto (Slow Food), que selecionou já outros produtos locais como o feijão tarrestre, a laranja de Ermelo e a broa de milho dos Arcos.

Um dos que apostou na cachena foi Adelino Esteves, hoje já com 60 bovinos. “Se estes animais não tivessem sido salvaguardados e protegidos estariam já extintos e é uma raça única no mundo. Para além do mais, são animais privilegiados porque só comem pastos naturais. Por isso, a carne é diferente de tudo o resto, tem um sabor especial”, conta-nos.

Às primeiras horas da manhã, com o orvalho ainda poisado sobre os pastos, Adelino Esteves – que já viu o pai nestas andanças – anda já pelos campos verdes a levar a bicharada para mais um dia de lauto repasto, com o rio Vez e cascatas em cenário de pano de fundo. Um lugar idílico, onde a ecovia recente até Sistelo torna ainda mais apelativo um percurso. Os novos produtores que surgiram não só chamaram a atenção para esta raça como ajudaram a combater a desertificação.

O segredo está, de facto, naquilo que estes animais comem: urze, carqueja, giesta, tojo, sendo a única raça que se consegue adaptar à serra e ultrapassar a escassez das terras agrícolas. Tudo conflui para garantir um sabor especial, que o palato reconhece à primeira dentada. O resultado é uma carne tenra, de cor rósea claro ou pálida e vermelho, de claro a escuro. Tem pouca gordura intramuscular, consistência firme, é ligeiramente húmida e muito suculenta.

Avelino tornou-se numa espécie de “embaixador” da raça, divulgando-a e defendendo o grande caminho: a vertente turística e ecogastronómica. “A ideia é que as pessoas experimentem o contacto com os animais, percorram o território e venham aqui visitar-nos no espaço próprio. Assim vão ainda apreciar mais a carne”. E fala com toda a razão, porque o chamado turismo da experiência está hoje na linha da frente das tendências mundiais.

Estamos frente a frente com os bovinos. O dia de inverno frio intimida-se com os raios que surgem às primeiras horas da manhã. Mas apesar da palidez da luz cor de cal, o sol começa a surtir efeitos: um fumo de vapor sobressai sobre as verdes pradarias. Estes animais de pequeno porte – dos mais pequenos do mundo – têm uma índole bravia, que não esconde o modo de criação semi-selvagem. Baixo, curto, entroncado, de cornos elevados e em espiral, focinho negro, largo, um pouco grosso, têm a cernelha pouco saliente, com costado arqueado. Houve tempos que foi confundido com o barrosão ananicado, até porque houve uma fase em que a cobrição do gado por touros barrosões chegou a por em risco a espécie.

Para proteger a raça cachena existe uma equipa que, no âmbito da Direção-Regional de Entre Douro e Minho (Ministério da Agricultura) e da Associação de Criadores de Bovinos da Raça Cachena, empreende desde há anos o trabalho notável de tentar salvar esta raça bovina que corre risco de extinção. Planeando com a população novas técnicas de melhoramento, como a avaliação genética e genómica, consegue-se aumentar a produtividade para garantir a preservação desta raça.

A raça estava praticamente em extinção há uns anos, mas a perseverança de alguns produtores locais inverteu a situação, sendo que de pouco mais de 500 animais passou-se hoje para aproximadamente 6.000.

Uma das formas de ajudar a salvar estes bovinos é valorizar a carne, que é de excelente qualidade, ajudando a manter a sustentabilidade de dezenas de criadores, o que já está a ser feito. “A carne tem um sabor único, resultando do equilíbrio entre o sistema de produção utilizado e as características da própria raça. A carne destes vitelos é muito tenra e suculenta, sobretudo por causa da alimentação”, realça.

Vacas aleitantes por vocação, apresentam-se de muito pequeno porte, com altura ao garrote que não chega a ultrapassar os 1,15 metros. 

A estratégia de conservação e melhoramento assenta num princípio inabalável: a relação entre o produtor, o território e o animal, numa espécie de simbiose. São estes produtores que gerem efetivamente o território e os produtos, sempre assentes no equilíbrio e sustentabilidade natural dos ecossistemas.

A entidade detentora da denominação de origem protegida para a carne da Cachena da Peneda é a Cooperativa Agrícola de Arcos de Valdevez e Ponte da Barca, que sempre teve como estratégia a implementar, o fomento do conceito do consumo do produto no próprio território, “solar da raça”.

O conceito adotado é: "Se quer consumir a carne da Cachena da Peneda DOP, venha ao seu solar...", que justifica a existência deste produto unicamente nesta zona. Pretende-se um contacto com o produto, inserido na região, e proporcionar ao consumidor, mais do que a degustação, a experiência de conhecer um território de características ímpares.

Uma espécie de turismo da experiência, onde as pessoas sentem o espírito dos lugares, palmilham o território e emocionam-se, acabando com a fronteira entre homem e natureza.

Para divulgar este produto foi também criada a marca territorial “Terras do Vez – Sabores e Tradições”. Além de integrar o movimento internacional “Slow Food”, destacando o território e um “saber fazer” específico, foca-se a gastronomia como ponto de interesse económico e elemento diferenciador: o prato local é realizado com carne DOP cachena acompanhada de arroz de feijão “tarrestre”.

Pretende-se realçar os produtos gastronómicos (que não poderão deixar de ser obviamente combinados com os vinhos da região) e promover o respetivo desenvolvimento, usando-os como atração de um percurso paisagístico e cultural, saboreando a genuinidade em plena serra, com percursos a pé, apostando no ecoturismo e pedestrianismo, desenvolvendo atividades em espaços rurais e naturais, procurando articular inovação e tradição nas ofertas.

Também o queijo típico da cachena é excelente e outro dos produtos a descobrir. Como estes bovinos pastam livremente na serra, aproveitando os pastos naturais e abundantes, o leite é puro e de características únicas. De pasta semi-mole, cor amarelo palha natural, tem tempo de cura médio de 45 dias e deve ser consumido num prazo máximo de 60 dias após a cura.

 

Brandas e inverneiras

 

Agora no inverno, os animais ficam com a pelagem maior e mais grossa, mas macia. De cor castanho claro, tendendo para o acerejado.

Entre abril e outubro, sensivelmente, as vacas da raça cachena sobem os montados, aparecendo depois, não raras vezes, acompanhados das crias. E é no inverno que os criadores resguardam os animais em cercas, protegendo-os dos ataques dos lobos. Reproduz-se muitas vezes na serra e aí podem nascer os pequenos vitelos. Só observar estes animais no território já é uma experiência única. Polvilhada de pequenas aldeias com casas de granito, vales com rochas graníticas, densos carvalhais e bosques de bétulas, a serra é aqui majestática e convida a um passeio a pé. Há manchas de castanheiros e azevinhos, uma fauna de veados, esquilos, gaios e papa-figos e pode até ouvir o uivo do lobo, já que este habitat serve também de abrigos naturais de javalis.

Percorrer os velhos caminhos que ligavam as brandas às inverneiras é uma experiência que se aconselha, entre frondosos bosques de carvalho alvarinho, mato florido, regatos que regam as pastagens. Ao fundo, as serras em Cabreiro e Álvora Loureda, zonas onde estes animais muitas vezes pastam, no tempo ameno, permitem às populações plantar milho, batatas e feijão. “Estes animais tiveram sempre um papel importantíssimo neste território, porque quando os terrenos estavam ocupados com cultivo voltavam para a serra. Depois, no inverno, eram de novo recolhidos”, conta Adelino.

Este é também um curioso processo. O sistema de transumância ou deslocação migratória sazonal da branda/inverneira e a relativa liberdade que proporciona aos proprietários é uma das razões que permite aos novos criadores optar por esta raça, mesmo que em muitos casos apenas possuam um pequeno número de cabeças. A tradição de levar o gado cacheno a pastar nas montanhas, na primavera e verão, e a recolha em terrenos cultivados atualiza o antigo hábito. A tradição ditava que cada família tivesse duas casas, uma na inverneira e outra na branda. Durante o inverno, os animais podem continuar a deslocar-se para os montes de dia, regressando aos estábulos à noite.

A inverneira, como o nome indica, é a aldeia onde a família passava o inverno. Situa-se a uma altitude mais baixa, em vales abrigados. No princípio de dezembro descia-se para a inverneira, onde passavam o Natal, permanecendo até março. Nessa altura subiam para a branda, que é uma aldeia de altitude, onde se fazem as sementeiras e onde se passa a maior parte do ano. A Páscoa já era passada na branda.

Hoje em dia, há ainda aldeias que mantêm a tradição incólume, apesar das casas terem mais condições. De maneira geral, as inverneiras localizam-se, basicamente, nas próprias povoações onde os proprietários têm a residência principal, ao passo que as brandas têm vindo a ser melhoradas. Em alguns casos, tendem a evoluir para locais de habitação permanente e a constituir assim novas povoações.

Sugerimos uma saltada à Branda de Santo António de Vale de Poldros, a 1.200 metros de altitude ou a branda da Aveleira, na Peneda. Entre cerros de pedras gigantes e cobertos de tojo, podemos agora observar manadas de cachenas com os singulares cornos compridos e torneados e ainda garranos, cavalos selvagens da região, de pequeno porte e musculados.

Há aqui cerca de dez brandas, e grande número de cardenhas em bom estado de conservação, e ainda hoje é possível ver alguém a “brandear”.

 

Integração no “Slow Food”

 

A carne cachena viu recentemente aprovada a candidatura à célebre “Arca do Gosto,” integrada no movimento de chancela internacional “Slow Food”, uma espécie de catálogo mundial de produtos da terra muito especiais. Para além do renome mundial, é uma entidade respeitada pela defesa de um modo de vida sem pressa, que começa na mesa e procura a difusão do conhecimento enogastronómico, com especial preocupação com a proteção do património agro-alimentar, preservação dos conhecimentos rurais e artesanais e a defesa da biodiversidade vegetal e animal. A broa de milho de Arcos de Valdevez, a laranja de Ermelo e o feijão “tarrestre” de Soajo e Peneda já integram a Arca.

O feijão tarrestre combina na perfeição com a carne cachena. Trata-se de um feijão minhoto dos quatro costados, igualmente ameaçado de extinção. Tem formato de rim, é miúdo e tem pele fina, apresentando uma grande variedade de padrões e cores, com predominância para o bege. Depois de sujeito a cozedura, o feijão mantém o grão inteiro, com interior creme e aveludado de sabor intenso. Quanto à utilização culinária, é frequente em sopas e pratos com massa e arroz, existindo uma série de receitas tradicionais de utilização deste produto. Este feijão tem na composição nutricional altos valores de fibra bruta e de ácidos gordos insaturados, que contribuem para a redução dos níveis plasmáticos de colesterol e triglicéridos, características que o tornam um alimento funcional.

A “Slow Food”, como se sabe, além da convivialidade, da lentidão e do prazer, defende também a ecogastronomia e a noção de que comer deve estar associada à proteção do ambiente. Ou seja, exatamente as vertentes do produto em causa. Assim, o movimento defende tudo aquilo que a “fast food” não pratica: produtos originais, locais e sazonais, receitas passadas de geração em geração, agricultura sustentada, produção artesanal, refeições calmas em família e amigos. Estes produtos e a envolvente adaptam-se como uma luva à filosofia.

A “Arca do Gosto”, criada em 1996, redescobre, cataloga, descreve e publicita alimentos de todo o mundo que, tendo qualidade gustativa extraordinária, estando fortemente ligados a comunidades e culturas específicas, e sendo produzidos em pequena escala por produtores artesanais que usam métodos agrícolas sustentáveis, correm perigo de extinção ou foram esquecidos.

Com o auxílio de uma comissão internacional, constituída por membros dos vários grupos nacionais (pesquisadores, cientistas e especialistas em alimentação), que monitoriza o processo de seleção de alimentos em todo o mundo, o projeto já acolhe mais de 750 produtos de dezenas de países. 

Igualmente, a “Terra Madre”, criada em 2004, pretende construir uma rede internacional de produtores de alimentos e representantes de comunidades locais, cozinheiros, académicos e jovens, com a finalidade de estabelecer um sistema de produção de alimentos que seja bom, limpo e justo, e que respeite a Terra, as pessoas e a diversidade de gostos, alimentos e culturas. 

 

Bísaro e fumeiro em Melgaço

 

Outro exemplo da recuperação de uma tradição no Minho que se teria perdido nos tempos acontece perto, mais propriamente em Alvaredo, Melgaço. Esta é também terra de passagem da “Rota do Alvarinho”, onde pode aproveitar para conhecer de perto a Quinta de Folga e a Quinta de Soalheiro, degustando os produtos artesanais de porco bísaro com os vinhos, uma parceria deste projeto, por razões familiares.

Optamos pela rota A1/A3 até Valença e depois pela N202 até Melgaço. Mas pode ainda escolher o percurso pela A28 até Viana do Castelo e depois seguir até Ponte de Lima/Melgaço.

A Quinta de Folga corporiza um projeto quase de aventura: reabilitar a criação de porco bísaro, raça autóctone criada ao ar livre, ritual que aqui já se tinha perdido, apostando assim na recuperação das raízes locais. Aqui se efetua todo o circuito do campo até à mesa, permitindo conhecê-lo, mediante marcação prévia, até à degustação final, numa casa recuperada, com lareira e vistas deslumbrantes.

Rui Lameira e Maria João Cerdeira, ambos veterinários, são um casal especial. Arregaçaram as mangas e lançaram-se na produção da raça autóctone de porco bísaro e produtos de fumeiro, tradições que aqui estavam praticamente extintas. “Resolvemos preservar esta ligação histórica, utilizando o engenho e a arte do saber fazer tradicional, passados de geração em geração, para produzir produtos que se caracterizam pela fidelidade a tradições já esquecidas noutros locais e desde tempos imemoriais ligada à confeção dos produtos do fumeiro de Melgaço”, conta-nos Rui Lameira.

A ideia nasceu da vontade de recuperar sistemas de produção naturais, apostando na criação ao ar livre de animais de raça bísara, de forma a ser uma atividade sustentada no aproveitamento dos recursos endógenos. Apesar de Rui ser do Alentejo, dedicou-se a 100% a Melgaço, terra-mãe de Maria João, onde decidiram fazer criação do porco bísaro e recuperar o fumeiro tradicional, mais comum no Alentejo ou Trás-os-Montes. “Aqui, a raça estava praticamente perdida. Antigamente, o fumeiro tradicional de Melgaço era uma referência, mas com o passar dos anos foi desaparecendo. Nós decidimos repescar a tradição e começamos por recolher o ‘saber fazer’ de cinco mulheres locais”, conta-nos Maria João.

Para isso, chamaram essas pessoas da terra para cada uma realizar uma receita – que só sabiam traduzir de forma oral . “Fizemos o registo do receituário e medidas exatas, porque cada uma sabia como se fazia, mas não as medidas certas. Faziam a ‘olhómetro’. Engraçado que, depois ao compararmos, todas tinham a mesma quantidade de ingredientes. Desdobrámos as receitas e conseguimos uma homogeneidade”, enfatiza Maria João. Ou seja, caso este trabalho não tivesse sido levado a cabo, o receituário perdia-se e as medidas de alho, vinho e sal para maturar a carne extinguia-se no segredo das gerações passadas.

Atualmente possuem já 100 animais, sendo que não existem muito núcleos de produção no concelho, até porque os custos para manter esta criação são elevados. 

 

Casamento com Alvarinho

 

Na Quinta de Folga, os animais são criados ao ar livre, em regime de produção ecológica. Os bísaros são grandes, de pelagem preta, branca ou malhada, pele grossa e com cerdas compridas, grossas e abundantes. De temperamento bastante dócil, são vagarosos e com movimentos pouco elegantes – podem pesar entre 120 e 180 quilos – têm orelhas compridas, largas e pendentes, flanco largo e pouco descido.

Raça autóctone de suínos por excelência da região Norte de Portugal, originários do tronco céltico, a carne tem uma excelente qualidade organoléptica, principalmente devido a possuir maior quantidade de gordura intramuscular, com um bom equilíbrio na relação ácidos gordos insaturados/saturados e predominância do mono-insaturado oleico. Apesar de ser das mais emblemáticas raças autóctones portuguesas é ainda ultrapassado em notoriedade pelo porco preto ibérico.

Salpicão de vinho Alvarinho, chouriço de sangue ceboleiro, alheira, presunto ou farinheira com Indicação Geográfica Protegida (IGS) são algumas das delícias que merecem, de facto, ser provadas, tudo confecionado segundo receituário antigo e de forma artesanal. A quinta pode ser ainda o local ideal para organizar eventos tradicionais, com ementas como o cozido, o cachaço ou a feijoada de porco bísaro, sempre para um mínimo de dez pessoas, opcionalmente com mini-cursos de provas de vinho, emblema da casta Alvarinho, da Quinta do Soalheiro, uma vez que há ligações familiares entre os dois projetos, integrando assim a “Rota do Alvarinho”. O aroma frutado da casta Alvarinho e nuances exóticas casam na perfeição com estes enchidos, limpando a boca e despertando o palato para voos de novas configurações frescas.

Rui Lameira salienta ainda a necessidade de apostar nas sinergias turísticas com outras áreas do turismo e enoturismo do concelho, de forma a tornar-se num “incoming” positivo para Melgaço, “perpetuando o fumeiro de maneira sustentável, não perdendo as tradições e a história cultural“. No futuro, pensam também construir bungalows nas imediações da criação, para fomentar o ecoturismo.

Em 1995, a Associação Nacional de Criadores de Suínos de Raça Bísara (ANCSUB) deitou mãos ao trabalho, instituindo o registo zootécnico da raça. Há 20 anos, esta raça suína autóctone estava praticamente extinta. O trabalho de recuperação, realizado ao longo destes anos, permitiu livrar a raça da extinção, tendo registado sempre um aumento anual do efetivo.

Hoje, há mais de 4.000 porcas reprodutoras, uma situação possível por via da valorização dos produtos obtidos, criação de canais de escoamento e dispositivos comunitários de defesa das especificidades das carnes – Denominação de Origem Protegida (DOP) e Indicação Geográfica Protegida (IGP). A produção é normalmente limitada a zonas de Trás-os-Montes, Beiras e Estremadura e como animal de grande rusticidade, o regime de exploração indicado é semi-extensivo. Nunca deverão ser explorados em regime intensivo, pois são animais criados em parques ou cercas, maioritariamente sem alimento disponível, pelo que terá de ser fornecido no local.

Aqui, na Quinta de Folga, são sobretudo alimentados com castanhas em outubro e novembro, do “terroir”, o que lhe confere um especial sabor, e ainda de misturas de cereais cevada, ervilhaca, couve, batata e trigo.

Para além da degustação dos produtos, a par do vinho Alvarinho, os visitantes podem ainda dar passeios pedestres, visitar a horta e ver os animais, sendo que são já cerca de 30.000 os que passam por aqui anualmente, na grande maioria alemães, ingleses e noruegueses, a par de uma crescente procura do enoturismo.

O porco bísaro está ligado desde tempos imemoriais à confeção do fumeiro de Melgaço, existindo inúmeros documentos históricos que comprovam esta ligação. Silvestre Bernardo Lima no tema “O gado suíno na exposição agrícola do Porto de 1860”( Arquivo rural,vol.IV,1862), escrevia: “Os grandes e afamados presuntos de Melgaço derivam da variedade tipo bísaro, cujas pernas e coxas são grossas, sucadas e cheias de carne até ao pernil.”

De facto, a história e a identidade dos homens constrói-se da memória. Reabilitá-la é fazer ressurgir a nossa própria história enquanto nação. Bem-aventurados os que conseguem, com esforço, trazer de volta sabores e tradições que, hoje em dia, estariam perdidas para sempre.