Euskalduna Studio

O Porto já merecia um restaurante assim 

Fotografia: Daniel Luciano
Miguel Pires

Miguel Pires

Um dos mais recentes e surpreendentes restaurantes do país mora no Porto e é conduzido pelo chefe Vasco Coelho Santos. Chama-se Euskalduna e promete uma experiência verdadeiramente conseguida, onde menos é mais. Muito mais.


 
A riqueza gastronómica de um lugar é tanto melhor quanto maior for a diversidade da oferta. A região do Porto está bem servida de restaurantes tradicionais, de casas de comida popular e económicas, de algumas cozinhas do mundo e, também, de espaços com propostas mais contemporâneas, seja numa vertente descontraída ou mais de fine dining. Porém, no que diz respeito a estes últimos, os da chamada cozinha de autor, faltava um espaço com um conceito muito especial. Como o do Euskalduna. 

Comecemos pela origem do nome. Traduzido de basco para espanhol, Euskalduna significa Vasco, o primeiro nome do chefe proprietário deste novo espaço, que entre os vários lugares onde fez formação como cozinheiro, contam-se o Mugaritz e o Arzak, restaurantes míticos do país Basco. Em relação ao percurso, Vasco Coelho Santos estagiou ainda no famoso El Bulli tendo regressado ao Porto, depois, para trabalhar com Pedro Lemos, onde se manteve durante dois anos. Após o restaurante da Foz, viajou durante uns meses pela Europa e Ásia, efetuando curtos estágios em diversos restaurantes. Enquanto reunia condições para abrir o atual e mais ambicioso projeto, o chefe portuense foi fazendo jantares privados, tendo tido tempo, pelo meio, para conceber o Baixópito, uma casa descontraída especializada em frango, na Baixa portuense. 

Mas viajemos até à Rua de Santo Ildefonso, no centro do Porto, uma zona em processo de revitalização, onde começam a aparecer pequenos negócios que aproveitam a boa onda e o dinamismo que se vive na cidade. No número 404, à porta fechada e desde finais de 2016, encontra-se o Euskalduna Studio. Quando entramos, damos de imediato conta que estamos num lugar acolhedor, de decoração contemporânea, com uma sala ao comprido e cozinha aberta. O espaço não abunda, porém foi bem desenhado e é confortável – para o qual muito contribui a iluminação irrepreensível. Este aspeto não deixa de ser relevante, sabendo que quem ali entra é convidado a ficar o tempo que for necessário para apreciar, com calma, o menu único de 10 a 12 tempos. A opção passa por eleger uma das três mesas ou um lugar ao balcão, que foi a nossa escolha e que aconselho a reservar, sobretudo para quem gosta de ficar perto da ação e de interagir com os intérpretes. É que no Euskalduna, com exceção do sommelier, não há equipa de sala. Todos os pratos são servidos por este e pelos cozinheiros que estão à nossa frente, sem rede nem filtro. Este sistema, que se tornou mais conhecido com o Noma (em Copenhaga) e que começa a aparecer, aqui e ali (em Lisboa, é adotado pelo Loco, por exemplo), além de talento requer uma equipa motivada, conhecedora, com à vontade e capacidade de comunicação. 

E, posso dizer que Vasco Coelho Santos conseguiu reunir uma pequena e jovem equipa de luxo, do sommelier Edgar Alves ao braço direito Nuno Brás, passando pelos talentosos Rui Silva e João Costa (ou “Joãozinho”, o benjamim da equipa que ainda mal tem idade para ter carta de condução, mas que sabe explicar os procedimentos de confeção de um prato como um piloto experiente). É óbvio que toda esta conversa só faz sentido se a experiência for boa. E foi o que aconteceu. 

O chefe portuense apresentou um menu cosmopolita assente em produtos de época de grande qualidade, com manipulações reduzidas ao essencial. A proposta muda regularmente de acordo o que lhe vai chegando. Porém, ainda que o risco seja maior do que a opção por um menu muito ensaiado e certinho, o improviso, como no jazz, assenta em bases  seguras. E o que é certo é que praticamente todos os pratos estiveram bem acima da média, com alguns a roçarem a nota máxima.

Entre estes, destaco o caldo de dashi elaborado com cavala (em vez de bonito seco, como fazem os japoneses), um prato de uma enorme finesse e elegância no palato, valorizado pelo acompanhamento de legumes crus e avinagrados e uma gema de ovo numa consistência de barrar. Outro prato vencedor foi o rabo de boi com couve grelhada (tão boa que pedi para repetir) e molho de carne confecionado como mandam as regras. Mesmo algumas propostas mais controversas não deixam ninguém indiferente. É o caso das gambas do Algarve (cruas) com molho de cabeças de carabineiro, granizado de caril, maçã e manga. A conjugação funciona muito bem, sobretudo para quem gosta de caril. Porém, este preparado de especiarias toma conta de tudo, anulando parte do sabor do marisco (que era de grande qualidade). Apreciei ainda a valer um prato de génese portuguesa, o filete peixe-galo (de polme e fritura perfeita), acompanhado de uma saborosa açorda (que só pecava por se agarrar mais aos dentes do que devia). Vinha tudo ligado com um interessante caldo de peixe emulsionado com gordura de boi e óleo de coentros.

Também merece destaque a corvina grelhada com molho feito com as peles de bacalhau ou o porco ibérico com um molho de se colar aos lábios, feito com os pezinhos. E o que dizer da pornográfica rabanada (inspirada na torrija do Mugaritz), servida com gelado de queijo da serra, que fechou o jantar? O único prato menos conseguido foi a tainha do mar com escabeche. Não por qualquer preconceito relacionado com o nome do peixe (que não tem nada a ver com o de águas menos convidativas), mas apenas porque a textura rija me desagradou. 

Em matéria de vinhos, a oferta do Euskalduna é muito coerente com o tipo de cozinha praticada. A carta não é grande mas é diversificada e evita o óbvio, dando preferência a vinhos com personalidade (novos e colheitas antigas) de pequenos produtores de todo o país, como dá para perceber pela amostra abaixo, ou seja, pelo pairing de vinhos (25€) que acompanhou o menu: espumante Hehn 2006 Velha Reserva (Távora-Varosa), Casal Santa Maria Arinto 2014 (Lisboa), Barbeito Delvino Dry 5 Anos (Madeira), Quinta de San Joanne branco 2000 (Vinhos Verdes), Quinta da Costa do Pinhão Peladosa tinto 2014 (Douro), Quinta do Canto 1995 Garrafeira tinto (Bairrada), Quinta do Regueiro Alvarinho Barricas 2014 (Vinhos Verdes), VT Casal Figueira (Lisboa), Barbeito Malvasia 2000 (Madeira), Kokpe Colheita 2007 branco (Porto). Ainda neste campo devo destacar, além do talento do Edgar Alves na escolha dos vinhos, o cuidado com as temperaturas de serviço e a qualidade dos copos, sobretudo os topos de gama da Zalto, que valorizam ainda mais este tipo de vinhos – não é à toa que têm vindo a ser adotados por uma boa parte dos restaurantes de duas e três estrelas Michelin.

Estou em crer que o forte dinamismo que o Porto tem vindo a viver vem permitir que restaurantes com uma oferta mais sensível e arriscada, fora da matriz mais comum, possam ser bem-sucedidos. O Euskalduna chegou na hora certa e merece o destaque e a glória. Espero (ansiosamente) que outros projetos lhe sigam o exemplo. 

 

Classificação


 
Cozinha: 18 
Sala: 18
Vinhos: 18

Euskalduna Studio
R. de Santo Ildefonso, 404, Porto
T. +351 935 335 301 

Horário: de quarta a sábado, ao jantar, das das 19 às 23h
 
Preço médio: não existe escolha à carta, mas apenas um menu de degustação por 75€. Harmonização de bebidas (não obrigatório), que além de vinhos pode incluir cerveja ou infusões: 25€