Leitão à Bairrada: harmonização

Fotografia: Arquivo
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Comer um leitão à Bairrada impecavelmente executado é algo transcedental, que aflora instintos atávicos de assar um animal inteiro à lenha, e também uma experiência multimodal, sinestésica, com os sentidos a criar um todo complexo e fascinante.

 

O visual dourado e vítreo da pele, sobre a carne rosácea a derreter e soltar sem esforço dos ossos, o aroma fumado da lenha, a reação de Maillard das proteínas e carbohidratos submetidos ao intenso calor dos fornos, a banha aromatizada de alho e pimenta, o sabor inebriante e a textura divinal, gordurosa e untuosa, estaladiça e cremosa, doce e picante. E a Bairrada no entorno, com os seus vinhos atlânticos de barro e giz, de acidez e taninos, espumantes ou tranquilos, mas sempre de carácter vincado e, não estranhamante, acerbadamente gastronómicos. A harmonização regional e clássica com um vinho espumante da zona é sacramental. Do ponto de vista técnico, porque resulta tão bem este casamento? Há outras possibilidades a considerar fora do âmbito regional? Alguns dos melhores profissionais da enogastronomia do país ajudaram-me com estas respostas.

O primeiro ajuste que temos que fazer no vinho a eleger é quanto à sua estrutura. O porco localiza-se na zona central da escala estrutural e pode ir do nível ligeiro, como um lombinho de leitão, ao encorpado de um cachaço de porco preto do campo. No leitão à Bairrada alimentado (pelo menos teoricamente) apenas com o leite materno, o sabor da carne é delicado, lácteo e adocicado. No entanto, a sua condimentação intensa à base de alho, muita pimenta preta, salsa, toucinho, banha e louro, somada ao preparo assado na lenha, aumenta consideravelmente os níveis estruturais do prato, e temos que buscar nos vinhos valores equivalentes de intensidade gusto-olfativa. Também abordamos o agradável diálogo entre a carne de porco, ricas em moléculas ativas de ésteres do grupo das lactonas, com os vinhos estagiados em carvalho ou que exalam aromas de coco, tonka e prunóides amarelos como o alperce, também marcados pelas lactonas.

Finalmente, em relação à textura do leitão à moda da Bairrada bem conseguido, temos uma carne muito entremeada de gordura, fundente na boca. A sua gloriosa presença no palato suscita uma sensação tátil de emplastramento e pastosidade, de gordura sólida que, para fins de harmonização vinho-alimento, deve ser contraposta à acidez do vinho, ou à sua sapidez e/ou efervescência. Estes elementos, que pesam do lado da “dureza” na balança do equilíbrio do vinho e atuam sinergicamente, são fundamentais para promoverem uma harmonização estimulante com pratos marcados pela presença de gordura sólida. A acidez motiva a salivação no palato, crucial para ajudar a emulsionar a gordura e facilitar a sua dispersão e limpeza. A pungência do gás carbónico dos espumantes também atua no sentido de desengordurar a boca, e a sapidez contrasta com a sensação de maciez e tendência ao doce dos pratos ricos em gordura sólida. Ao analisar este arcabouço teórico, é fácil de perceber o porquê do sucesso dos grandes brancos da Bairrada, inclusive os trabalhados em carvalho, com o fabuloso leitão da região. Mesmo nível estrutural e aromático, excelente acidez do clima atlântico e sapidez calcária. Da mesma forma, percebemos a excelência da clássica harmonização com seus espumantes de tanto carácter, tantos os brancos quanto os rosés. Escoltado por um bom espumante a detergir a gordura entremeada do leitão, come-se o dobro da porção! Os tintos da Bairrada muito poderosos e tânicos, por sua vez, podem exibir uma estrutura a mais do que a estrutura do prato, sobrepujando-no. Para tantos taninos e álcool precisamos mais de untuosidade, ou gordura líquida, do que da gordura sólida, pelo que uma rica cabidela de leitão acomodaria melhor esses grandes tintos de Baga.

 

“SOMMS NÓS”

Contei com a inestimável contribuição de alguns dos melhores sommeliers de Portugal para iluminar o assunto do vinho a escolher com este emblema da nossa cozinha regional. As respostas são incríveis e variadas, abrangendo escolhas clássicas ou mesmo provocadoras. Vale a pena levar esse guia precioso para as suas próximas incursões à terra sagrada do leitão.

 

Rodolfo Tristão

Em relação ao leitão penso que será importante referir a untuosidade/gordura que tem, do ponto de cozedura e os acompanhamentos. Caso seja a batata frita, vamos ter mais untuosidade, dando um sabor mais intenso ao conjunto. Caso seja batata cozida, a mesma ajuda com o amido, mais presente na combinação, mas retira um pouco de gordura ao conjunto; por outro lado "enche" mais um pouco. Partindo do leitão com batata frita penso que um vinho espumante fica bem, pois temos o gás que ajuda a limpar e liga bem com a acidez do vinho branco. Espumantes com a presença das castas Baga ou Bical serão os mais adequados. Caso seja tinto da região, pede-se uma combinação por terroir: casta Baga, sem madeira, com a temperatura de serviço entre 14º/15º graus para ir buscar um pouco da acidez e frescura à casta. No ponto que referi da batata cozida, deverá ser servido um espumante branco ou branco da casta Bical com muita mineralidade.

 

Edgar Alendouro

Haverá muitos e bons vinhos para acompanhar com um belo leitão à Bairrada! Gosto especialmente de um vinho branco feito pelo Luís Pato, o Cercial, parcela Cândida da Vinha Formal 2015. Elegância, frescura e uma fantástica mineralidade, fazem deste vinho uma belíssima companhia com o leitão!

 

Ivo Peralta

Indo directamente ao vinho e com o crescimento dos Blanc de Noirs, optava por um vinho espumante deste estilo, talvez o Hibernus Cuvée Noir Brut Nature Vintage 2015. Um vinho produzido com base em Baga e Touriga Nacional, apresenta uma bolha fina e uma mousse de média persistência para cortar a gordura do leitão, amaciando todo o lado especiado com que é cozinhado, e revelando todo o lado mais amanteigado que ele tem. Generalizando, o Blanc de Noir tem normalmente mais estrutura de boca, uma acidez precisa que ajuda a cortar toda a intensidade e ajuda a “derreter” todo a carne no palato.

 

David Teixeira

Sugiro o Quinta da Cúria Clefs D´or Tinto 2010 da Bairrada, à base de Merlot, Touriga Nacional e Cabernet Sauvignon, com 13º de álcool. É um vinho de cor rubi intenso, no palato apresenta uma conjugação de frutos vermelhos a lembrar mirtilos, amoras e ameixas pretas, impressiona desde logo pela sua vivacidade, musculado e intenso revelando grande capacidade de guarda, dando conta desde logo que estamos na presença de um grande vinho.

 

António Lopes

Como clássico que sou, vou orientar a minha escolha para espumantes estagiados, de vinhas preferencialmente em calcário. Porque o estágio? Dar-lhe-á volume suficiente para aguentar a gordura do leitão e aglutinar alguns dos sabores nele presentes. Ao mesmo tempo, o calcário reflete-se no vinho com uma firme acidez, que irá limpar essa mesma gordura, refrescando o paladar e deixando só os sabores mais agradáveis.

 

André Figuinha

Acho que neste caso não se deve fugir muito à cultura e história, devendo também promover a região e os seus vinhos. Embora se possa conjugar com diversos vinhos, no caso dos brancos ricos em mineralidade e nos tintos com acidez bem presente, o tradicional será sempre um espumante. Aquilo que me fica como focos de harmonia são a crocância, o especiado apimentado bem como a gordura de boca. A minha escolha iria para Luiz Costa Brut Nature 2015 da Bairrada.

 

João Chambel

Para sair um pouco dos espumantes eu escolheria um vinho do Dão, um vinho como o Rufia Branco Macerado, pela sua enorme aptidão gastronómica, por ter estrutura e acidez para aguentar bem o leitão e, com aquele traço de laranja confitada no nariz, parece-me uma excelente escolha.

 

Abel Almeida

Sendo eu um bairradino de nascença e um fã incondicional da nossa grandiosa casta Baga, tive recentemente a oportunidade de estar numa das melhores harmonizações gastronómicas que qualquer pessoa gostaria de ter. Na visita à casa de Sidónio de Sousa e de Paulo Sousa em Sangalhos, durante o almoço fomos presenteados com um fantástico arroz de cabidela de leitão, a mostrar-se bem apurado e apimentado (como nós tanto gostamos nesta zona) realçando toda a goma que as fissuras do leitão dariam ao arroz, e o famoso leitão assado do nosso amigo Ricardo Nogueira (Mugasa). Era nítido que precisávamos de um grande Baga para fazer uma harmonização perfeita (estando nós na casa de um dos maiores clássicos da Bairrada). O Eng. Paulo Sousa, lendo as nossas mentes, presenteia-nos com o garrafeira 1997 e o 1991! Que momento ! O 1991 a mostrar o porquê deste ano ser um Vintage na Bairrada, com uma frescura inigualável que é bastante característica nos vinhos de Sidónio, realçando ainda a pirazina e o nariz de terra, oriundo da nossa argila, e também a fruta presente num vinho com 27 anos. Mas a escolha do dia para mim foi para o garrafeira 1997, a fazer um par perfeito com a cabidela e o leitão. A mostrar-nos ainda a sua força e a sua exuberância, notas granadas, tinta da china e intensas, só com uma ligeira auréola atijolada, no nariz a mostrar Bairrada, frescura, pirazina, eucalipto, mato molhado de Outono, fruta escura misturada com menta, nuances de tabaco e profundo, na boca a corresponder ao nariz e a fazer-nos esboçar um sorriso orgulhoso depois do "aftertaste" de um Baga como este, musculado, corpulento, intenso, cheio persistente, taninos fixos a pedir comida e ainda garrafa, especiado, super fresco, oriundo das vinhas com mais de 90 anos. Na harmonização, incrível como este Baga de 1997 conseguiu "amaciar" os condimentos especiados presente na cabidela e no leitão, com tanino e acidez a brilhar lindamente com a goma e a gordura do leitão, casando-se na perfeição; o terroso da argila e do calcário a fazer realçar a pele crocante do leitão assado a lenha em fornos de tijolo, obrigando-nos praticamente a comer e a beber mais, tornando-se viciante. São estes momentos que nos fazem gostarmos mais da Baga e da gastronomia local.

 

Nélson Guerreiro

Recomendo um vinho espumante Brut ou Brut Nature, ou então um branco tranquilo. No primeiro caso deverá ter bastante acidez e uma bolha constante, preferencialmente algo jovem e fresco , com boa estrutura de boca, ligeiramente frutado. No segundo caso, um branco da região com alguns anos, talvez da casta Cercial ou Bical. Um vinho com alguma viscosidade no palato (estágio em madeira ou maceração pelicular), com a salinidade dos solos típicos da região que representam e que tenha bastante acidez e de preferência baixo teor alcoólico (12% - 12,5%).

 

Mico Drumond

Algo a ter em conta na recomendação do vinho a acompanhar o Leitão à moda da Bairrada (até porque temos a versão do Ljubomir na carta) é a estação do ano. Se durante a Primavera e o Verão a minha escolha cai para um rosé, durante o Outono e o Inverno prefiro emparelhar com um tinto. Passo a explicar: os elementos que considero fundamentais num Leitão da Bairrada são o tostado da pele, a gordura suculenta da carne e as especiarias do molho. Tudo o resto (a guarnição) muda de restaurante para restaurante mas invariavelmente vai bater às batatas fritas à rodela crocantes, salada e a tradicional fatia de laranja. A minha escolha do rosé em alturas mais quentes prende-se com o  facto de querer apresentar um vinho que ajude a limpar as especiarias e acrescente o factor “frutos silvestres” ao prato. Terá de ter algum volume de boca (caso contrário perde-se no palato), uma acidez média e algum comprimento. Num dia quente, acrescentar taninos ou especiarias a uma refeição que por si é forte não faz sentido. Em relação ao vinho escolheria o Quinta do Poço do Lobo Reserva Rosé pois satisfaz os critérios acima descritos. Em relação às épocas mais frias, as opções são muitas, mas prefiro ir um tinto da casta Baga com algum comprimento, acidez média e algumas notas terrosas, especiadas e fumadas. Neste caso a fruta a acrescentar será mais escura (cerejas), as especiarias e o fumado do vinho criam um elo de ligação ao prato e continuamos a ter a frescura a limpar os excessos. O lado terroso do vinho dá o cariz mais “regionalista” ao pairing sem destoar dos restantes elementos. O meu vinho de eleição seria um Luís Pato Vinha Pan com mais de 10 anos. É um vinho que provém de uma vinha centenária que garante uma Baga clássica e profunda.

 

Manuel Moreira

O leitão à Bairrada tem várias características que determinam o perfil de vinho a harmonizar, sem referir a variação entre as várias peças (cortes). Normalmente são servidos os vários cortes por travessa para se poder apreciar a diversidade de sabores. Na minha opinião as características determinantes são: intensidade de sabor média/alta de média complexidade; relação entre a carne e gordura de algumas partes; relação de pele e camada de gordura imediatamente por baixo; o efeito crocante e estaladiça da pele; proteína com pouco tecido conectivo que em geral faz a carne "tenra". Tendo isto em conta, em geral prefiro vinhos de boa estrutura, corpo moderado, acidez viva e frutada. No caso de tintos, que tenham taninos firmes, joviais e redondos e perfil fresco. Nos brancos, a gama pode estender-se a partir dos frutados até alguns com barrica, mas subtil. Frescura é condição fundamental. Não precisa ser muito ácido.

Os espumantes devem ser menos complexos mas com mousse cremosa e boa fruta no médio palato. Rosés de boa estrutura, no estilo mais contemporâneo, frescos e sabor mais rico, especialmente de fruta. Regiões favoritas nos brancos: Alvarinho Monção e Melgaço; Dão com base de Encruzado; Bairrada com Bical e Maria Gomes; Colares branco. Tintos de clima mais "fresco": Dão, Bairrada com Baga menos austero, Beira Interior, Douro das cotas altas e menos álcool. Espumantes: Bruto Reserva ou Super Reserva, Espumante Baga, sem dúvida. Espumantes tintos polidos. Rosés: Covela, Redoma, Dona Maria ou Quinta Nova Nossa Sra. do Carmo.

 

Pedro Ferreira

O leitão depende sempre da forma como é confeccionado e os molhos e a guarnição que o acompanha. Tento, por norma, ajustar com um vinho da região de onde vem a iguaria principal. A minha sugestão é o Quinta das Bágeiras Garrafeira Tinto 2015. Um ano fantástico para tintos em Portugal, de um terroir único, um Baga elegante de vinhas velhas dos melhores solos argilo-calcáreos da região, onde o equilíbrio dos taninos, corpo, frescura e fruta do vinho se adequam perfeitamente à intensidade do leitão à Bairrada. Sugiro provar o vinho à temperatura de 15ºC em copo Borgonha.

 

Rafael Amorim

A minha sugestão seria o Hibernus Grand Cuvée Vintage 2011. Sendo o Leitão da Bairrada dotado de gordura, estrutura, especiarias e um daqueles pratos que quer-se sempre mais, nada melhor que a harmonização regional com um belo Vintage, com estrutura e capacidade para limpar o palato a cada trago. Aquela combinação clássica que vai durar toda a refeição. O teor de álcool não elevado também ajuda nesse sentido. Uma harmonização que funciona principalmente pelo contraste entre o sabor aprofundado do leitão, alho e pimenta com o frescor, a vivacidade e a belíssima acidez do espumante.