Leonor de Sousa Bastos - doce poesia

Fotografia: Daniel Luciano
Fátima Iken

Fátima Iken

Para recriar de forma inédita esta receita histórica, escolhemos alguém especial à altura deste desafio: Leonor de Sousa Bastos, que deixou tudo pelo amor à arte de criar doces. Com perícia, tempo e coração, reproduziu a fórmula de “pao de llo” do século XVI que consta do primeiro manuscrito de cozinha portuguesa. O seu blogue, Flagrante Delícia, é pura poesia e uma perdição para os olhos e a gula. Aliás, mergulha-se nos olhos de Leonor como quem cai numa nuvem de açúcar em pó. Talvez por isso mesmo a arte de criar doces bata a compasso com as palavras. A literatura, tal como a doçaria, consta dos seus amores primeiros.

 


De forma quase mágica conseguiu colocar em cima da mesa esta receita com cinco séculos, que nada tem a ver com o pão-de-ló que hoje conhecemos, uma aventura divertida “mas também de muita responsabilidade”, como nos confessou. “O mais curioso é que se assemelha muito à cultura vegan dos dias de hoje, sem farinha de trigo, sem ovos, só com amêndoa”, afirma. Leonor largou os calhamaços do Código Civil quando estava já a finalizar o curso de advocacia na “Católica” para abraçar de alma e coração a sua paixão pela cozinha, num apelo à memória da avó, de forma a recriar um receituário que se poderia ter perdido.


Decidiu para isso fazer as malas e voar até a um curso de cozinha em Palma de Maiorca, a Escola D’Hoteleria de les Illes Balears, fazendo a seguir uma pós-graduação em Alta Cozinha. Segue depois em 2009 para um curso de pastelaria na escola Espai Sucre em Barcelona sob a orientação de Xano Saguer e Jordi Butrón, tendo passado ainda pelas cozinhas de Rafa Sanchez (Sheraton Arabella, Maiorca, 1 estrela Michelin) e Oriol Balaguer (Barcelona, MMAPE 93).
Regressou a Portugal em 2010, onde realiza trabalhos de consultoria e dá formação na área da pastelaria.
Em 2008, criou o Flagrante Delícia, o primeiro blogue português dedicado à pastelaria, que tem recebido, ao longo destes dez anos, diversas referências em publicações nacionais e internacionais. Já mais recentemente, lançou a empresa Utopia, que se dedica à produção e venda de sobremesas. É autora de vários livros, colaboradora de jornais e revistas de referência e participa em diversos eventos na área de pastelaria.


Refira-se que a arte de ser pasteleiro surge apenas documentada a partir do século XV, no território português, se bem que os gregos e romanos já faziam doces... com mel, mas faziam. Inicialmente, o pasteleiro era considerado “um oficial que faz pastéis” para a Casa Real. Só que esses pastéis eram, no princípio, salgados ou empadas (de lampreia, carne de vaca, carneiro ou peixe). O ofício associa-se à cozinha régia e é regulado para impedir falcatruas, como usar bode em vez de carneiro para os picados dos pastéis, o que era punido por lei, por exemplo.


A pastelaria como hoje a conhecemos começou a bulir com maior expressividade no século XVI, sobretudo pelo impulso de Catarina de Médicis. A frangipane, a massa de choux, os macarons, as tartes de amêndoa de Raguenau, a massa folhada, os croissants, a babá vão configurando a fama doce, já com o açúcar presente. Será, contudo, no século XVIII e XIX que se expande, sobretudo com o grande Câreme. Em Portugal, é sobretudo nos conventos que a imaginação dá asas ao açúcar a partir do século XVI, criando alguns dos mais delicados e sedutores doces de que há memória. 


Receita original do manuscrito da Infanta D. Maria (século XVI) – primeira receita de pão-de-ló

“Pao de llo”

A um arrátel de açúcar clarificado, amostra que faça espelho na colher depois de deitada a água flor. Então tirem-no fora e deitem-lhe um arrátel de amêndoas que não sejam bem pisadas e mexam-no muito bem. Então o tornem ao fogo e seja o fogo brando; e seja sempre no fogo mexido. E tirem-no algumas vezes donde dê o ar, porque se faz alvo. E para saber quando é cozido, tomem amostra, e como desapegar do prato é cozido. E deitem-no num tabuleiro molhado e seja estendido com uma colher de maneira que não fique basto, senão crespo. Então o fareis em talhadas da feição que quiserdes.

1/Tradução da receita original do manuscrito da Infanta D. Maria (século XVI):


Ingredientes:

  • 450 grs de açúcar
  • 200 ml de água de rosas
  • 450 grs de amêndoa pelada e pouco triturada (deve ser moída mas com alguma textura e não em pó)
     

Preparação:

  • 1 Preparar um tabuleiro para colocar o doce.
  • 2 Num tacho, colocar ao lume o açúcar com a água de rosas e deixar ferver até obter ponto de pérola (108º C).
  • 3 Retirar do lume e juntar a amêndoa, mexendo bem e coloca-se a apanhar vento até ficar esbranquiçado.
  • 4 Colocar a mistura novamente em lume brando e, sem parar de mexer, deixar que engrosse e se descole das paredes do tacho.
  • 5 (Se a mistura começar a ganhar cor, ir retirando o tacho do lume e colocar ao ar, mexendo para que coza uniformemente. O doce deve ficar espesso e esbranquiçado).
  • 6 Colocar o doce no tabuleiro molhado com água e alisar com uma colher ou com uma espátula.
  • 7 Deixar arrefecer completamente e cortar em fatias.

 

Receita original do livro de Lucas Rigaud (1780)

Pão de ló ou bolos de Saboya (Capítulo “Dos Pudins à Ingleza e outros entremeios”)

Deitem em huma tigella 20 gemmas de ovos e tanto de açúcar como pesarão os ovos, casca de limão ralada e flor de laranjeira de conserva. Bate-se com duas colheres pelo espaço de meia-hora. Deitam-se depois as claras batidas em nevado e depois de bem misturado com as gemmas vai-se deitando pouco a pouco e com cuidado a farinha, tanta quanto pesarão metade dos ovos. Depois, deita-se a massa em hua peça de cobre, da figura que lhe parecer, untada primeiro com manteiga clarificada e meta-se a cozer em forno com calor moderado, ao tempo de hora meia ou duas horas. Depois de cozido e de boa cor, sirva-se assim mesmo ao natural ou quando não com uma calda feita de açúcar fino, clara de ovo e sumo de limão.

2 / Receita do Pão-de-ló de Margaride 

  • Para 1 kg
  • Ingredientes:
  • 22 ovos (19 gemas e três claras) 
  • 325 gramas de açúcar
  • 150 gramas de farinha
     

Preparação:

  • 1 Bata 19 gemas com o açúcar, juntando três claras, durante cerca de 40 minutos, até a massa fazer bolhas (“abrir”). Junte com cuidado a farinha peneirada e incorpore bem.
  • 2 Leve a formas forradas a papel e antes untadas com manteiga e meta no forno cerca de 40 minutos a 220 graus.