No segredo dos deuses

Fotografia: Ricardo Garrido
Fátima Iken

Fátima Iken

Delicados, inimitáveis e em forma de meia-lua, os pastéis de Fão ou “Clarinhas” são uma iguaria que nos obriga a parar na localidade para uma pausa divinal. O desvio vale sempre a pena, até porque Fão preserva, de forma pouco usual, o espírito do século passado nas casas, nas ruas e… nos pastéis de chila, uma receita centenária e no segredo dos deuses. Não existe escrita por ninguém e foi passada de geração em geração desde o século XIX. 


Fios diáfanos e doces envoltos por massa fina e estaladiça. Os pastéis de Fão eram tão bons que, no início do século XX, seriam a fórmula ideal para curar males de amor. Considerados como fonte de cura, ressuscitavam um ser padecente em duas trincas. Já um jornal local, O Espozedense, garantia, em 1915, que “oferecer meia dúzia deles tem feito a união dos casais”. Curioso? O facto é que a receita original vendia-se aos milhares, tal como hoje.
Os que tinham tendência para adoecer por males de amor, só tinham de aviar “a receita” da miraculosa vitualha. A pastelaria era, aliás, nomeada como “farmácia-doçaria”, sublinhando-se que se tivesse o cuidado de evitar imitações, o que ainda hoje ocorre noutros lugares. De facto, o açúcar nessa altura era também visto como remédio, fazendo parte de inúmeras fórmulas e receitas com objetivos terapêuticos.
Ícone gastronómico de Fão, vila de Esposende que se abre sobre o Cávado, atravessa já algumas gerações familiares desde o final do século XIX, altura da extinção dos conventos. Há também quem diga que a fórmula será herdeira dos pastéis de chila do Convento do Menino Jesus, em Barcelos, sendo descritos pela imprensa da altura como “únicos e distintos”. 
Mas Pedro Alves, representante da quarta-geração e hoje herdeiro da receita e do “modus faciendi” que observou desde pequeno, diz que a bisavó foi a criadora da receita. De tudo o resto não há certezas. De nome Clara, terá começado a fabricar essa receita com as irmãs Amália e Rosália em 1900, iniciando a sua comercialização neste mesmo lugar onde agora estamos, a “Pastelaria Clarinhas”, algo que foi um autêntico sucesso. Mas seria só em 1947 que registaram a patente, registando o nome como uma marca da casa e preservando assim o legado familiar. Segundo Pedro, “como os pastéis tinham de ter um nome, pois para os patentear não podiam chamar-se apenas pastéis de Fão, resolveram chamar-lhes “Clarinhas”, até porque não só a minha avó se chamava Clara como os bolos eram brancos com o açúcar em pó”.
A tradição centenária ainda hoje se repete diariamente na pastelaria, no centro de Fão. Humilde e discretamente situada numa das fiadas de ruelazinhas da vila, estes são os originais, sendo Pedro um dos responsáveis pelo processo. Conhece e pratica todas as etapas, da massa ao recheio, da execução à fritura. Mas a receita nunca foi escrita e muito poucos a sabem, apenas memorizada de forma a transmitir o segredo apenas oralmente. Ainda atualmente, o retrato da mentora dos pastelinhos na vila nos observa do alto de uma das paredes da pastelaria, uma espécie de “alma mater” do lugar que parece ainda vigiar os passos que a massa leva a tender.
Aliás, desde o princípio do século que se mantém a receita original e Pedro faz questão de respeitar o tipo de ingredientes e sua qualidade de forma a não alterar sabores e a crocância da massa. “A matéria-prima é muito importante e a qualidade dos ingredientes das “Clarinhas”, da chila à farinha, passando pelos ovos é fundamental. Claro que hoje já não é a farinha de antigamente, mas tento ter a mais parecida”, conta.

Arte secular tecida com tempo e paciência

Passamos agora à sala de confeção e sobre a longa mesa de mármore original repousam já alguns quadrados de massa irrepreensivelmente fina e esticada. Na caldeira de cobre borbulha, há horas, em fogo lento, a chila desfiada com a calda de açúcar. Um aroma convidativo sobrevoa as nossas narinas. Um procedimento muito delicado e de grande cuidado. A abóbora chila é oriunda de produção local e precisa de ser descascada, limpa, cozida e desfiada numa etapa anterior. São usados milhares de quilos por ano.
Depois, num trabalho minucioso, espalha-se o recheio cuidadosamente sobre cada retângulo de massa e cobre-se com a outra parte, cortando em forma de meia-lua e deixando os doces descansar sobre um tabuleiro. São centenas de Clarinhas que aqui nascem todos os dias, de forma artesanal, respeitando ritmos e procedimentos seculares. “O segredo está nas três coisas: na massa, no recheio e na maneira de fritar”, defende Pedro, enquanto espalma cuidadosamente o recheio com um garfo.
Hora agora de fritar, outro momento fundamental para que a massa fique crocante. Outro pormenor curioso é que as Clarinhas são fritas em banha de vaca, vulgo rilada, extraída da zona renal do bovino, de forma suave e lenta, virando constantemente os doces dos dois lados até ao ponto ideal, dourado e estaladiço. Esse facto confere-lhes também um sabor peculiar e ajuda ao sucesso da consistência subtil da massa. Pedro vira os pastéis sem parar para fritarem de forma uniforme, que flutuam como leves travesseiros na gordura transparente e vai, cuidadosamente, rebentando algumas bolhas.
“Isto tem muito que se lhe diga”, desabafa. Mas parece fazê-lo como numa coreografia mágica. Provavelmente porque já o mimetiza há 25 anos, desde a morte da sua mãe, até então a alma da confeção da receita. A questão da receita ser imitada em vários restaurantes e pastelarias das redondezas desde há décadas, mas sob o nome de “pastéis de Fão”, também não o incomoda. Isto acontece tal como o pastel de Belém, que é reproduzido um pouco por todo o lado como pastel de nata, daí ter também sido registado pela “Confeitaria de Belém” no início do século XX.

Uma provável inspiração nos doces das Clarissas

Há ainda quem as confunda com as meias-luas ou “pastéis de Santa Clara” de Vila do Conde e do Mosteiro de S. Salvador de Vairão, mas tudo é diferente, sobretudo o recheio. Crê-se ser uma versão popular desse doce conventual mas a massa é frita – tal como os do Mosteiro de Vairão  – e o recheio incorpora os fios diáfanos da abóbora, ao contrário dos conventuais, feitos com amêndoa. Por isso, esta apelidação nada tem a ver com as “clarinhas” de Vila do Conde, cujo étimo evoca Santa Clara, apesar de ser uma provável recriação com base na inspiração dos doces feitos pelas Clarissas.
Aliás, os doces são muito diferentes na sua confecção, pelo que as origens são diversas. Da mesma forma, os pastéis de Santa Clara de Coimbra, das clarissas locais, representam outra maneira de confeção e um receituário diferente, cada um com sua especificidade. Estes doces conventuais de Coimbra eram outrora vendidos na roda do Mosteiro de Santa Clara de Coimbra e mais tarde recuperados pela confeitaria local, onde a receita original se manteve. Muitas das especialidades conventuais acabaram por se tornar patrimónios identitários locais, até porque, depois do encerramento de muitos conventos, as freiras “passaram o testemunho” de várias receitas para não se perderem.
A Ordem de Santa Clara é das que registou uma maior atividade doceira e os pastéis de Santa Clara surgem em Vila do Conde, Porto, Xabregas, em Lisboa, Mosteiro de Jesus em Setúbal, Mosteiros das Chagas e da Esperança, em Vila Viçosa, Mosteiro da Conceição em Beja, e ainda em Vila Real, no antigo Convento de Nossa Senhora do Amparo, com ligeiras variações no seu receituário. Mas quanto às “Clarinhas de Fão”, a história é outra e, tanto a massa como o recheio, desenham-se de forma peculiar.
Pedro defende a autenticidade das Clarinhas e enfatiza que nenhuma das imitações se aproxima sequer deste doce. Depois do pastelinho ter repousado e sido polvilhado por uma nuvem de açúcar em pó, era hora de o provar. De olhos fechados, como convém, para saborear algo de muito especial que justifica per si uma incursão a Fão.

Pastelaria Clarinhas
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