Ouriços - Mar em estado puro

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

Feche os olhos e imagine um daqueles dias de nevoeiro com um incrível odor a maresia. Pense agora que podia, ao mesmo tempo, saborear essa mesma sensação. Bom demais, não? Pois bem, comer um ouriço-do-mar é isso mesmo. Uma verdadeira explosão de maresia na boca, como se um “spray” marinho ou uma onda gigante nos borrifasse de alto a baixo com gotículas de água salgada. O mar em estado puro. Uma experiência que se recomenda a qualquer apreciador de sabores “exquis” e, inacreditavelmente, ainda tão pouco valorizada em Portugal.

 

Saboreá-lo é quase sentir uma tempestade no mar. Uma coisa do outro mundo. É como se a imensidão salgada do oceano aterrasse na nossa boca e nos envolvesse numa onda brutal de sal, sargaço e minerais, de um intenso sabor agridoce que nos deixa atordoados, de tão bom. Costuma dizer-se que “em casa de ferreiro, espeto de pau”. Apesar de sermos dos países onde eles mais abundam (mesmo depois das populações naturais terem reduzido nos últimos anos, pela apanha descontrolada), a maioria dos portugueses não os consome. O resultado é a sua maioritária exportação, para países onde são considerados uma iguaria inigualável, atingindo preços relevantes. Mesmo aqui ao lado, “nuestros hermanos” sabem bem apreciá-los e quase todos os restaurantes na Galiza os exibem como símbolo de um sabor muito singular e de grande valor gastronómico. Aí existe, aliás, uma fábrica de conservas de ovas de ouriço.

Por cá, capturam-se toneladas mas a maioria sai para países que os consideram um “delicatessen” como França, Espanha ou o Japão, onde 300 gramas podem exceder os 100 euros. Por todas estas características sensoriais e nutricionais são também um valor económico. Ironias do destino, já que não estamos a aproveitar um recurso natural próprio.

Pela sua quantidade, era usual apanhá-los na nossa costa e abri-los ali mesmo, nas rochas, depois de beber a sua água salgada e, com as mãos, meter as gónodas macias, cor de laranja, à boca. Estas lamelas, também chamadas de ‘coral’, devido à cor, são a zona reprodutora e é exatamente a única parte comestível. São cinco pequenos gomos preciosos que condensam mar e algas, mas cuja complexidade pode situar-se entre o doce e o amargo, com uma leve ponta de acidez, ligeiramente fumada, algumas notas de mel e avelã, algum sangue até. Uma refeição memorável, como todas as coisas simples.

Hoje, são raros os que as degustam e apanham, entre nós, pela perda da tradição e, talvez, porque o seu aspeto exterior é pouco convidativo a aproximações, pois tem o corpo cravejado de picos. O ouriço nacional não é muito grande mas tem imenso sabor. Mesmo assim, em Portugal é ainda subvalorizado, o que faz com que o mercado seja muito reduzido e a procura pouca, pois trata-se de um produto sazonal. Chamam-lhe até “caviar dos pobres”. Mas supera em sabor uma lagosta. Normalmente, o período em que entra em ovulação, na pré-reprodução, vai de novembro a abril, altura em que as suas ovas começam a atingir a maturidade. A Ericeira, e ainda em Viana do Castelo, Sesimbra e Sagres são lugares onde os ouriços crescem, mas a maioria é exportada.
Sobretudo na Ericeira, era um hábito comê-los. Aliás, o nome Ericeira tem a sua raiz etimológica na palavra ouriço (do latim “ericius”). Mas o costume foi-se perdendo na costa jagoz, depois de ter passado por quase completo esquecimento até há bem pouco tempo. O produto vem sendo valorizado nos últimos anos, existindo mesmo uma semana de festa a ele dedicada. Para este renascer muito contribuiu Luís Inácio, com quem temos encontro marcado em plena praia da Ericeira.

E é aqui mesmo que estamos, num dia estival que já cheira a Verão, apesar de o estio ainda estar longe. Percorremos as rochas marítimas que já entram pelo mar adentro, uma imensidão azul que convida à viagem. Lá ao longe, S. Julião debrua a paisagem costeira rematada pela imponência do Cabo da Roca. Preparamo-nos para descer abaixo do nível do mar, na altura da maré-baixa, até ao viveiro natural de ouriços em plenas Furnas, o único construído em rocha natural na Europa.
Luís Inácio reabilitou estes viveiros de mariscos, abandonados há décadas e outrora dos pescadores locais, de forma a dar corpo a um projeto de reprodução de ouriços, a “Urchinland”. “Devido à apanha desenfreada, a espécie estava a desaparecer. Para além do mais, quase ninguém comia ouriços e a tradição encontrava-se em declínio. Mas desde que lançamos os viveiros, o hábito de os consumir recuperou-se”, conta-nos Luís. O renascimento do consumo foi impulsionado sobretudo a partir da criação do Festival Internacional do Ouriço-do-Mar, em 2015, uma iniciativa que deu maior visibilidade ao produto, introduzindo-o como ingrediente nas ementas dos restaurantes locais. Mas o receituário tradicional em torno do ouriço é quase inexistente, pois são principalmente comidos crus, ao natural. Diga-se de passagem que é uma das melhores maneiras de os saborear, aliás, na sua autêntica plenitude. Até porque são filtradores de água, ao contrário dos mexilhões ou amêijoas, por exemplo.

Entrar nestes viveiros é uma experiência que se aconselha. A aventura faz-se por umas escadas vertiginosas, de degraus enferrujados pelo salitre. Na altura da maré alta, seria impossível estar aqui neste submarino natural debaixo das rochas. Uma forma quase mágica de apreciar de perto os ouriços, proporcionando imagens de aparente “sci-fi” numa espécie de cápsula à moda de Júlio Verne, pelo que de repente achamos que estamos noutro planeta. Por isso, Luís faz por aqui “tours” a visitantes de todo o mundo.

De várias cores, do púrpura ao violeta róseo e lilás, os ouriços fixam-se às paredes das rochas e aí se protegem de outros predadores, como o polvo, o peixe-porco ou as estrelas-do-mar. Alimentam-se assim não só de algas e plâncton como dos próprios minerais, o que lhes configura o sabor tão intenso.

O projeto conta com uma parceria do Instituto Politécnico de Leiria, onde a reprodução é feita em laboratório, numa maternidade de ouriços que visa a proteção da espécie, ameaçada de extinção. “Na Croácia, por exemplo, os ouriços extinguiram-se totalmente”, avisa Luís. Recolhem os fluidos sexuais, produzindo assim as larvas aquáticas em laboratório. Passadas cerca de 12 a 20 semanas, colocam-nas no mar, originando assim novos ouriços. Apesar de todo o prazer que causam, os ouriços não sabem o que é sexo. Isto porque a fecundação faz-se no exterior, libertando as fêmeas os óvulos para o mar, ao mesmo tempo que os machos largam o líquido reprodutor. A união origina um ovo, seguindo-se uma fase larvar e posterior evolução para uma carapaça cravejada de picos. Animais de poucos contactos, portanto. Antes e depois. Quanto mais laranja for, indicia ser fêmea e por isso é mais caro.

Sobre os mantos rochosos, “ouriçar” volta, agora, de novo a ser uma prática comum, valorizando-se a sua reprodução e a sua faceta gastronómica, pelo que têm surgido negócios regionais dedicados à produção e comercialização de ouriços-do-mar, o também chamado “caviar jagoz”. Luís consegue uma média de produção que ronda os 500 quilos por ano, contrariando assim a previsível extinção dos ouriços, devido à apanha ilegal descontrolada, até porque apenas 30% dos ouriços sobrevive, pois os restantes são comidos.

Um tesouro cravejado de picos

Invertebrado marinho, parente próximo das estrelas-do-mar e dos pepinos-do-mar, este equinoderme pulula nas formações rochosas, onde se esconde. Se encontrarmos hidrodinamismo forte, ou seja, ondulação intensa, os ouriços refugiam-se em cavidades nas rochas junto à costa. Se tal não ocorrer, usam os minúsculos pés que possuem para se movimentarem, alimentando-se de algas e pequenos invertebrados. E mesmo sabendo-se ainda pouco sobre o ouriço, 70% dos seus genes são similares aos humanos. Mesmo não parecendo quem os observa a olho nu, possuem sistema respiratório, digestivo e nervoso e a sua esperança de vida poderá ser mais longa que a nossa, uma vez que o seu sistema imunitário é tremendamente forte.

Coberto de espinhos, o chamado “Paracentrotus lividus”, é uma espécie de joia da coroa marítima. Um tesouro cravejado de picos que esconde no seu interior todo o mar possível comprimido. Abundam sobretudo a Norte, mas estendem-se por toda a costa, apreciando o mar batido, tal como as percebes, outro manjar dos deuses, mas mais comum nos nossos hábitos alimentares. Na Ericeira, quem se pode queixar são só os surfistas, que habitualmente soltam na praia alguns impropérios quando ficam com os pés cravejados de picos, ao pisarem displicentemente um destes bichinhos preciosos mas tão ariscos. Nada como uma maré baixa, com grandes poças, para umas horas bem passadas a apanhar ouriços em cima das rochas. Para isso, deve munir-se de um fato de borracha, umas luvas anti-corte, um pau com um ferro na ponta em forma de gancho e uma rede ou camaroeiro. Depois, olho vivo para descobrir as nossas esferas cravejadas de picos, normalmente dissimuladas entre as algas, locais onde há mais comunidades. Com o gancho tenta-se separar o ouriço da rocha com bastante cuidado para não o dilacerar e guarda-se. Vai ver que em pouco tempo a rede está cheia. Mas lembre-se que não poderá apanhar mais do que dois quilos.

A “caça” pode trazer vários, de cores entre o púrpura e o verde, o castanho e o violeta. Deixam-se num lugar fresco para que escorra a maioria da água e as ovas ficarem assim mais rijas e depois é só abrir e degustar o pitéu. A abertura é uma parte que necessita de alguma prática, mas depois de lhe apanhar o jeito é sempre a abrir. O melhor será usar luvas, uma faca ou tesoura enfiando a ponta na boca do animal, abrindo depois de um toque lateral. Com pés ambulacrários, movem-se de forma rápida e o seu esqueleto duro protege-os dos caranguejos e outros peixes. A sua boca, curiosamente apelidada “lanterna de Aristóteles”, mais parece uma garra, localizada na superfície central do corpo, que se delicia com mantas de algas e outros invertebrados. Daí a sua sapidez e qualidades organoléticas. O consumo deste invertebrado por populações do litoral data dos princípios do Neolítico (5000 a.C.). Na Europa, desde o século IV a.C. que aparecem referidos em manuscritos e a denominação “lanterna de Aristóteles” deve-se ao facto de ter sido o filósofo o primeiro a descrever as suas características zoológicas.
Por baixo da sua carapaça cheia de espinhos, é onde se encontra a sua parte comestível, os seus órgãos reprodutores, chamados gónodas. Esses cinco gomos laranja são apenas 20% do seu corpo, mas é aquela que nos interessa, neste caso. As gónadas dos machos costumam ser mais esbranquiçadas e as das fêmeas mais alaranjadas, sendo que a diferença fundamental reside no tipo de pigmentos das algas que ingerem. De coloração arroxeada, negra, castanha, mas também alaranjada, violeta ou esverdeada, o seu diâmetro ronda os sete centímetros, podendo ser encontrado, para além de Portugal, na Bretanha, Galiza, Mediterrâneo e Adriático, já que se adapta a uma grande diversidade de habitats, onde se junta em grupos, como animal gregário que é. Encontram-se nas poças de maré, escondidos por baixo das rochas. Todo o seu corpo possui células sensíveis à luz, já que não possuem olhos.

Captura ilegal e exportação clandestina

A captura ilegal de ouriços, tendo em conta o seu valor comercial – costumam ser vendidos ao mercado espanhol muitas vezes de forma clandestina – pode estar a desequilibrar os ecossistemas, uma vez que são apanhadas toneladas, sem qualquer controlo, apesar das várias medidas de fiscalização na costa portuguesa. O exercício da atividade de apanha está sujeito a licenciamento, a requerer anualmente à Direção Geral de Recursos Naturais, Segurança e Serviços Marítimos, através de formulário próprio. Existem ainda limitações diárias de quantidades permitidas, por cada indivíduo, de apanha. Apesar da captura estar regulada desde finais dos anos 80, muitos são aqueles que os apanham de forma ilegal, pelo que esta espécie está ameaçada. Nos anos 90, foi proibida a pesca com semiautónomo, a qual permite ao mergulhador permanecer várias horas debaixo de água. Desde então, só se podem apanhar ouriços à mão ou por apneia, o que inviabiliza grandes capturas. Mas, mesmo assim, o facto de o ouriço ser muito apreciado mesmo aqui ao lado em Espanha, leva à sua apanha ilegal, afetando os ecossistemas ecológicos, com impacto nas populações selvagens e na sobrevivência da espécie. Esta procura comercial excessiva tem contribuído para uma acentuada redução da população de ouriços-do-mar nas praias portuguesas.

Citando dados disponibilizados pela Direção Geral de Recursos Marinhos, a captura licenciada de ouriços-do-mar alcançou três toneladas em 2013, nove toneladas em 2014 e 20 toneladas em 2016. Por isso, ou se opta pela reprodução em cativeiro – vários projetos científicos decorrem neste sentido em Portugal - ou a extinção está próxima.

No Norte, uma equipa da Universidade do Porto - do Centro Interdisciplinar de Investigação Marinha e Ambiental (Ciimar) estudou ao pormenor duas populações selvagens de ouriços-do-mar, nas praias Norte e de Carreço, em Viana do Castelo. Nasceu ainda simultaneamente na Ericeira o projeto Ouriceira Aqua que visa o acabamento de gónadas (recolher os animais adultos e engordar as gónadas para que fiquem disponíveis mais tempo) e o desenvolvimento da sua qualidade para consumo humano – em termos de valor económico, nutricional e características sensoriais – reproduzindo-os em cativeiro. O Ouriceira Aqua, que envolve investigadores do Centro de Ciências do Mar e do Ambiente (MARE), Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa (FCUL), Universidade de Évora (UE) e Escola Superior de Turismo e Tecnologia do Mar de Peniche do Instituto Politécnico de Leiria (ESTM), está também direcionado para a reprodução de ouriços com vista ao repovoamento e neste campo tem registado melhorias ao nível da mortalidade larvar, um dos principais problemas da reprodução em cativeiro.

Ouriços no menu: o misterioso sabor agridoce

São considerados uma iguaria valiosa em vários países do mundo e degustá-los é uma verdadeira experiência para os sentidos, que supera até percebes e navalheiras, apesar destes dois últimos mariscos serem já bastante aprazíveis. De sabor delicado mas suculentos, envolvem-nos numa onda de mar em estado puro, refrescante e sensual. Na Provença, por exemplo, existem as célebres “oursinades” que os consagram várias semanas como reis da festa. Sobre finas fatias de tostas, com algumas gotas de limão ou temperados dentro das carapaças, para comer diretamente à colher. Na Ericeira, a tradição das chamadas “ouriçadas”, em que grupos de amigos e famílias andavam a apanhá-los na praia, era sobretudo comum na Páscoa. Também no Norte, em Castelo de Neiva, são normalmente as mulheres que os apanham, tal como as percebes e comem-se na época natalícia.

De sabor agridoce e odor intenso, o seu potencial gastronómico é imenso. Envolvente, opulento e fresco, o ouriço deve estar vivo quando nos preparamos para o consumir pois trata-se de uma matéria-prima muito sensível e frágil. Isso mesmo denota-se a olho nu, pois os seus picos movimentam-se e ele mesmo pode começar a andar. O melhor até será degustá-lo ao natural, sem qualquer tempero, mas podem ser cozidos a vapor ou assados, o que evita, para os mais sensíveis, a desagradável sensação de os estar a comer vivos. Quando está morto fica com os picos abaulados e sem viço. Também as ovas devem estar granuladas e consistentes. Há ainda quem se aventure a usá-los em risottos, empadas, açordas, tibornas, em “consommés” ou purés, aromatizando molhos, sopas de peixe e mariscos. Tirar partido desta iguaria em versões criativas e contemporâneas, exibindo a sua versatilidade, é sempre um desafio para um cozinheiro. Para os abrir, tanto se pode agarrar com cuidado a casca cortando-o ao meio com uma faca no sentido longitudinal ou com a ponta de uma tesoura que se enfia no aparelho mastigatório (a tal “Lanterna de Aristóteles”), e cortando lateralmente a carapaça. 

Depois, retira-se a tampa, extrai-se a parte negra e retira-se apenas a zona cor de laranja. Se optar por cozê-los a vapor, bastam dois ou três minutos. Depois de arrefecerem, coloca-se a mão em concha para o acomodar e com a faca procede-se da mesma forma. O melhor será depois coar a água da cozedura, que fica roxa, e aproveitá-la para um caldo. Mas o melhor será mesmo ler as sugestões de receitas criadas por Alexandre Silva, com a vantagem de não precisar de fogão. A maneira ideal de, neste caso, deixar falar a Natureza.