Uma Afro-Portuguesa, com certeza!

Afirma-se que a cozinha típica da Bahia, com a qual o Brasil atrai todos os anos milhares de turistas, foi levada pelos escravos africanos, esquecendo-se sua inquestionável ascendência lusitana.

Quando visitam a cidade de Salvador, no Nordeste do Brasil, os forasteiros ouvem que a cozinha típica, condimentada, aromática e apetitosa da capital da Bahia, usada como atração turística internacional, foi trazida da África ou adaptada pelos negros da etnia ioruba, levados à região como escravos. Aportaram ali entre os séculos XVI e XIX, eram muitos. Chegaram a compor 75% da população da Baía de Todos-os-Santos, da qual Salvador é a porta de entrada.

Os nomes dos pratos são, de facto, africanos: vatapá, caruru, acaçá, bobó, abará, etc. A cozinha na qual nasceram, nem tanto. Surgiu na casa dos donos de escravos, portugueses natos ou dos descendentes diretos.

A preparação da comida cabia às mucamas, negras requisitadas para os serviços no interior da casa-grande do engenho de açúcar ou da fazenda; ou no sobrado urbano. Daí, a contribuição dos escravos. Guilherme Radel, no livro “A Cozinha Africana no Brasil” (Press Color, Salvador, 2006), indica que a culinária africana era bastante atrasada no século XVI, pois desconhecia a fritura, baseava-se no assado, no tostado e no cozido, usava pouco sal e quase nenhuma hortaliça. Em compensação, as mucamas revelaram-se grandes cozinheiras e deram fundamental contribuição à gastronomia baiana.

O facto de serem escravas não representava uma exclusividade, pois o trabalho doméstico teve origem servil. Foi assim desde a Mesopotâmia, origem da nossa civilização, cujo território correspondia ao moderno Iraque, parte da Síria, Turquia e Irão.

Naquela região apareceram impérios pioneiros e as receitas mais antigas de cozinha. Por isso, os turistas que visitam Salvador deveriam saber que os pratos chamados de afro-brasileiros são, na verdade, afro-portugueses.

Por que dizer que o cremoso vatapá veio com os escravos da etnia ioruba, quando ele descende da açorda lusitana? A receita, como mostrou Radel, teve os ingredientes trocados na Bahia por produtos locais. Além disso, a “açorda brasileira” passou a ir ao fogo, ao contrário do prato que o inspirou.

Em vez da água em ebulição, recebeu leite de coco, o azeite de dendê substituiu o de oliveira; o pão molhado continuou a ser usado, às vezes cedendo lugar à farinha de rosca e ao fubá; as ervas aromáticas deram espaço às especiarias baianas. Da mesma forma que a matriz portuguesa, o vatapá baiano incorpora bacalhau, camarão, etc.

O mesmo sucedeu com o caruru, um cozido que deriva do esparregado português, no qual as nabiças, espinafres e outras verduras picadas e reduzidas a puré foram substituídas por quiabo, o azeite de oliveira pelo dendê, o alho por castanha, amendoim e camarão seco.

Originalmente, o caruru era um refogado de ervas que acompanhava pratos de peixe e carne.

Para Radel, as únicas receitas verdadeiramente africanas da cozinha baiana são o abará – feijão-fradinho descascado e moído, temperado com sal, cebola, azeite de dendê e camarão seco, cozido em banho-maria ou vapor, e enrolado em folha verde de bananeira; e o acarajé – bolinho de feijão-fradinho, cebola e sal, frito em azeite de dendê, servido com molho de pimenta e camarão seco.

Vários pratos típicos da Bahia incorporam o azeite de dendê. Radel diz ser o ingrediente que confere às comidas “aquele colorido encantador, o aroma penetrante e o sabor especial”. Há quem acredite que o fruto do dendê imigrou para o Brasil a bordo dos navios negreiros, porque serviria de alimento para os escravos. A cultura do dendezeiro iniciou-se quando plantaram as sementes que sobravam das travessias.

O facto é que os portugueses conheceram a planta na África Ocidental, ao longo do Golfo da Guiné, do qual é originária. Encantaram-se com o óleo e não o empregaram inicialmente na cozinha, mas na iluminação. Segundo Radel, esse foi o primeiro emprego do azeite de dendê na Bahia. Mais tarde, as mucamas, que já o conheciam da África, utilizaram-no como substituto do azeite português.

 

E ainda os doces

A influência lusitana estendeu-se à doçaria. Uma receita ilustrativa é a do quindim, feito com gema de ovos, açúcar e coco ralado. Seria doce afro-brasileiro, como sustentam alguns? Não, é de ascendência portuguesa, com família numerosa na terra natal. Um dos irmãos chama-se brisas do lis (antes grafado com “z”), também conhecido por brisas de Santa Ana. É característico do distrito de Leiria, entre a Beira Litoral e a Estremadura. Lis é o nome do rio que atravessa a cidade.

Há doces semelhantes em Beja e Évora, no Alentejo, Azeitão, Cascais e na Costa de Lisboa, que também poderiam ter inspirado o quindim. Todos foram criados em conventos e mosteiros. Brisas do lis difere do quindim por levar amêndoas picadas, em vez do coco ralado. Não havia no Brasil o fruto seco europeu prescrito na receita original. Daí se usar coco ralado. Mais uma adaptação.

Como as mucamas geralmente eram filhas dos orixás - divinizações das forças da natureza ou de um ancestral que em vida obteve controlo sobre elas – levaram a comida para os terreiros de candomblé, a religião. “A cozinha baiana transformou-se em cozinha dos deuses”, sublinha Radel.

Entretanto, isso não aconteceu com a vinda dos primeiros escravos. Hoje, pensa-se que as receitas da comida típica de Salvador e arredores sejam do século XVII e não anteriores, como se acreditava, e que os orixás só começaram a saborear abarás e acarajés nos terreiros da cidade a partir de 1850.

Restam algumas interrogações. Por que nos Estados brasileiros de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Maranhão, que também receberam milhares de escravos negros, não se desenvolveu uma cozinha de cunho africano?

Alguns autores atribuem isso ao facto de não terem uma população homogénea do ponto de vista étnico, de não praticarem a mesma religião, como na Bahia. E quanto a Cuba? Qual a razão de não se desenvolver naquele país, que recebeu os mesmos iorubanos, de idêntica fé, uma cozinha afro-cubana? Radel procura explicar o enigma. Cuba não teve azeite de dendê.

O mesmo aconteceu nos Estados de Minas Gerais, Rio de Janeiro e Maranhão. No caso de Cuba houve outra lacuna – e das grandes. Faltou a influência cultural portuguesa.

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