Cataplana, a arte do sabor

Fotografia: Fabrice Demoulin
Fátima Iken

Fátima Iken

A cataplana é um prato cuja história se perde nos tempos. Nome de caçoila e, ao mesmo tempo, de um prato nacional (tal como a chanfana ou a caldeirada) proporciona um método de cocção lento e hermeticamente fechado cujo resultado final é uma perfumada iguaria. Concentrando, deste modo, sapidez e aromas, ninguém lhe resiste. Se no Algarve ganhou fama, certo é que a chamada “prussiana” beirã parece ser o seu antepassado.

 

É sempre um momento de exaltação quando vem para a mesa, faiscante na sua aura de cobre. Expectantes pelo momento da abertura, quase numa pueril evocação, os olhos e o nariz mergulham numa nuvem atordoante quando se abre a “caixinha das surpresas”. Comparam-na com a tagine, dizem que tem raízes árabes e nasceu no Algarve, mas não será bem assim. Até porque a tagine possui um pequeno orifício na extremidade.
No fundo, trata-se de uma forma de cozinhar que otimiza sabor. Da “prussiana”, uma caçarola mais achatada e lisa, quase não existem já exemplares, mas seria uma forma que os caçadores tinham de preparar, em plena natureza e enterrada na terra, os troféus do dia. Um método muito usual de cozinhar noutros tempos em plena Natureza.


Hoje emblema algarvio, seria nos anos sessenta que os mestres caldeireiros, que usavam o cobre para fazer alambiques, se iniciaram no processo de reproduzir este recipiente, trabalho artesanal que a Câmara de Loulé aproveitou para recuperar atualmente, com uma oficina criativa onde se aprende a arte, em extinção. Estes mestres artesãos são cada vez mais raros e, assim, salvar este modus faciendi inibe perder a tradição manufaturada desta arte.
Tal como a caldeirada, outro prato popular onde se procede de forma similar, introduzindo os alimentos em camadas e deixando abeberar sabor, em lenta e amena cozedura, a cataplana é um petisco de truz. Tem a mais-valia de ser cozinhada num recipiente completamente fechado, cumprindo tradições que fechavam as panelas com pão, boroa, argila ou terra húmidos que selavam os cozinhados, poupando energia e adensando sabor.


O alimento é confecionado com uma cocção hermética a vapor, de forma lenta e a baixa temperatura, daí a grande sapidez obtida da forma mais simples, numa versão quase autónoma. Neste caso, sofisticou-se a caçarola e a caldeira é metálica e constituída por duas peças semi-côncavas em forma de concha que se entrelaçam numa dobradiça e fechos laterais que permitem manter o cozinhado de marisco, carne, moluscos ou caça – muitas vezes unindo mar e terra – a exsudar os seus sucos naturais, permitindo assim cozinhar de forma muito saudável, a par da utilização de pouca gordura na preparação. Uma forma também de sustentabilidade na cocção, pois a temperatura concentra-se de maneira especial neste tipo de preparação hermética. Se pensarmos bem, o seu formato é quase o anatómico de uma concha de um qualquer molusco.


Tal como na caldeirada, são colocados ainda em cru os ingredientes sobrepostos, a par também de batata, sobretudo doce, e o lume brando comanda uma orquestra de concentração de sabores, onde alguns temperos fazem o resto da magia. E o facto de se levar à mesa e abrir na altura apenas de a saborear adensa a celebração, até porque é um belo objeto de design. Quem já provou umas amêijoas na cataplana sabe que é a melhor forma de as comer. Porque ao contrário de outros recipientes que, apesar de fechados não são totalmente herméticos e se podem abrir várias vezes para controlar a confeção, este só se abre no final. E que grand final.


Os temperos e as matérias-primas variam, mas pode ser feita ainda com carne de porco, perdizes, polvo, mexilhões, amêijoas e vegetais ou batata. No princípio, eram feitas com zinco, depois passaram a ser produzidas em cobre e até alumínio. Mas o metal nobre do cobre, pela sua boa condutividade, é o melhor para a obtenção de um resultado final sápido, sendo que a cataplana é estanhada no interior.
Certo é que assim se atualiza a tradição culinária quase primitiva, quando se colocavam os recipientes com os alimentos em covas sobre brasas de carvão e depois se cobriam com areia ou com terra, consoante se tratasse de trabalhadores rurais, caçadores ou pescadores. No caso das prussianas, o material era de zinco e não cobre, sendo plana. O utensílio era fácil de trazer à cintura em incursões na Natureza ou durante a faina, fosse no interior ou no litoral. Sabendo que o étimo “cata” significa “para dentro”, não será diícil de compreender a semântica do recipiente.


Estamos agora em Castro Marim, local que elege a cataplana num festival específico, uma forma da localidade não deixar morrer a tradição gastronómica algarvia. Durante uma semana, os vários restaurantes da localidade são convocados para criar as suas cataplanas, permitindo aliar memória e criatividade, pois vários chefes dão largas à inspiração para criar até novas configurações. Se a receita mais famosa é a de “Amêijoas na cataplana” e “Cataplana de Marisco”, outros ingredientes como polvo, bacalhau, tamboril, cabrito e lombinho de porco ou caça podem ser usados.
Esta “Festa da Cataplana” pretende “promover e fomentar a cultura, a economia e a gastronomia locais, atraindo o público que procura a qualidade e o diferencial gastronómico e impulsionando assim a dinâmica económica, particularmente fragilizada nos últimos dois anos”, segundo a autarquia.


No restaurante Tasca Medieval, situado no centro da vila, Lígia Madeira é uma cozinheira de mão cheia que há décadas domina a mestria da cataplana. O facto de o Algarve ter fama no que aos bivalves diz respeito, sobretudo a Ria Formosa, tornou a cataplana de amêijoas na mais conhecida, mas são várias as possibilidades de usar a imaginação porque produtos com sabor não faltam.
Hoje, Lígia aproveita a emblemática junção de porco e amêijoas para confecionar uma cataplana, que aprendeu a fazer de forma tradicional com quem sabia da arte. “O segredo é o facto de ser uma vasilha tapada que assim concentra muito mais os sabores. E a cozedura lenta também ajuda a equilibrar o resultado final”, conta.


O facto de, neste caso, se unir mar e terra com os bivalves e o suíno, um casamento tradicional alentejano mas que funciona também neste caso em dose dupla, pela sapidez conseguida no modo de confeção, torna ainda mais interessante o prato. “Normalmente a cataplana que mais faço é a de marisco, com amêijoa, mexilhão, lagostim e bocas de caranguejo azul. A batata é servida à parte. E leva sempre coentros”, enfatiza.
De igual modo, a Tertúlia Algarvia, a Região de Turismo do Algarve e a Associação Turismo do Algarve têm unido esforços no sentido de desenvolver conteúdos e promover experiências que sublinhem a importância da cataplana. A criatividade de vários chefes de cozinha como Augusto Lima, Carlos Valente, Chakall, Frederico Lopes, Henrique Leandro, Justa Nobre, Lígia Santos e Nuno Diniz podem ser apreciadas no site da Tertúlia Algarvia e integraram igualmente o livro ‘Cataplana Algarvia: Tradições e Recriações’, que reúne mais de 40 confeções. O livro foi ainda reproduzido em várias línguas de forma a expandir internacionalmente o nome da cataplana e do Algarve.
O projeto prevê ainda outra forma de promoção da cataplana, ao permitir que qualquer pessoa possa participar em experiências que desafiam a colocar o avental e participar em aulas de culinária onde se aprende a confecionar o célebre petisco. Uma forma inteligente de conseguir, em casa, aventurar-se na tarefa. Só precisa mesmo de adquirir uma cataplana, talvez um desejo íntimo de longa data a que ainda não deu prossecução. 

A arte tradicional da “batida fina” recriada em Loulé

Se cozinhar uma cataplana é uma arte, criar artesanalmente o recipiente tem ainda mais que se lhe diga.
A técnica da “batida fina” é uma arte tradicional que apenas é efetuada numa oficina em Loulé no âmbito do “Projeto Loulé Criativo” e onde o mestre caldeireiro Analide Carmo representa o “saber fazer” antigo ensinado a novos aprendizes. 
O cobre é moldado com pequenas pancadinhas lentas e uma cataplana pode demorar um ou dois dias a produzir, consoante a mestria do artesão. Hoje são apenas quatro os artesãos que se dedicam a esta arte encantatória. Uma forma original de não deixar morrer este património artesanal português e de a autarquia manter a tradição, bem como de divulgar e ensinar.


O processo é moroso e delicado. Após o recorte da chapa, segundo molde, inicia-se a forma do recipiente. De seguida, enforma-se e molda-se, batendo com um maço de madeira contra um cepo com uma cavidade hemisférica. É tempo, depois, da peça sofrer um martelado suave contra uma bigorna e ser então moldada a fogo numa forja ou maçarico, o que exige perícia. Colocam-se depois as dobradiças e as asas e procede-se ao polimento, seguindo-se o processo de arear. Para isso, é limpa com ácido sulfúrico e água e colocada numa bacia com areia, vinagre e sal (dantes era com cinza), esfregando-se. Segue-se a estanhagem (um banho no interior) de forma a proteger os alimentos da ação  nociva do cobre. Depois de secar, a peça é queimada com o maçarico para libertar o ácido e de seguida limpa-se com um novelo de linho, finalizando com o polimento.


A “Oficina dos Caldeireiros” localiza-se na Rua da Barbacã, onde os artesãos criam e vendem as suas obras de arte, e onde trabalham três caldeireiros, no espaço que no passado albergou a “Caldeiraria Louletana”. 
Zona de efervescência mineira desde tempos ancestrais, a arte de trabalhar o cobre em Loulé é, assim, secular. Para além de cataplanas produziam-se tachos, caldeirões, alambiques, chocolateiras e cântaros com grande mestria, igualmente com este procedimento artesanal. Hoje em dia, existe uma diversidade de materiais com que a cataplana é já feita e de modo industrial. Mas a arte da caldeiraria louletana é ainda hoje preservada e as cataplanas são produzidas de forma totalmente artesanal, apesar de ser cada vez mais raro. Feitas originalmente a partir do cobre, hoje em dia existem no mercado cataplanas que podem ser utilizadas nas modernas placas de indução ou vitrocerâmica.


Também o projeto “Tertúlias algarvias” foi uma excelente maneira de fixar formas artísticas do património local e tradições da região, ao incentivar a criação de oficinas representativas dos costumes locais, conferindo-lhes novo fôlego. Criado em 2006, divulga não só a gastronomia regional como outras artes, nomeadamente a dos mestres caldeireiros e observá-los é um momento que se aconselha, pois na hora de apreciar uma cataplana o apreço será ainda maior.