Elemento: Cozinhar e bem no fogo

Fotografia: Fotos D.R.
Miguel Pires

Miguel Pires

Se a confeção no fogo é o gancho que nos atrai ao lugar, passado o fascínio inicial o que realmente importa é se esse elemento distintivo faz mesmo a diferença, se a comida é boa e interessante, se o ambiente é cativante e o preço justo. 


Ricardo Dias Ferreira, 32 anos, faz parte de um grupo mais ou menos recente de cozinheiros que uma vez finalizado o curso de cozinha, os estágios curriculares e uma ou outra curta experiência profissional, foram para fora com a ideia de adquirir novos conhecimentos ou simplesmente motivados pela aventura. No percurso de Ricardo ambas as hipóteses são válidas e se a passagem pelo três estrelas Michelin de Martin Berasategui, em San Sebastian, cumpriu o primeiro desígnio, a ida para a Austrália em 2012 teve mais a ver com a aventura, mesmo tendo ido trabalhar num restaurante super-respeitado como o Quay, de Peter Gilmore. Do outro lado do mundo, Ricardo Dias Ferreira sofreu o que muitos emigrantes sofrem, sobretudo numa primeira fase sem documentos. Trabalhou arduamente horas a fio, foi roubado, ficou sem casa. Porém, superou os obstáculos com que se foi cruzando, aproveitou as oportunidades e foi subindo, ao ponto de, no início de 2017, chefiar os 8 restaurantes do hotel Shangri-La de Sydney e uma equipa de 75 cozinheiros de diversas nacionalidades.

Porém, a Austrália fica longe e Ricardo Dias Ferreira queria regressar à terra, abrir o seu próprio restaurante e explorar um novo (velho) conceito de cozinha “no fogo” que começou a surgir um pouco por várias grandes cidades do mundo e que ele acabou por ser pioneiro em Portugal. Com ele veio Patrícia Lourenço a sua companheira e agora sócia, que conheceu no outro lado do mundo. Tendo ambos nascido e sido criados a Sul, o mais natural era encontrarem pouso em Lisboa. Todavia, acabaram por achar um espaço no centro do Porto, uma cidade que não era estranha a Ricardo, uma vez que já tinha trabalhado no Yeatman, em Gaia. 

O restaurante abriu em 8 de Fevereiro de 2019 e quando lá estive pela primeira vez, um mês após a inauguração, gostei da proposta. Regressei passado um ano e é sobre esta experiência que escrevo abaixo.

Era uma quarta-feira de fevereiro numa noite de temperaturas amenas, como pouco habitual nesta altura, no Porto. O Centro estava calmo, com pouco turistas, revelando uma cidade de época baixa – mas ainda longe dos receios do vírus que tanto nos veio a assustar. Ainda assim, alguns restaurantes pelos quais passei estavam bem compostos, entre eles esta casa da Rua do Almada. 

A configuração do espaço deste lugar não é fantástica, mas está bem resolvida. Há uma primeira zona de espera, seguindo-se a cozinha aberta com um balcão e meia dúzia de lugares pelos quais se passa até chegar à sala. Ao todo, o Elemento alberga um pouco mais de meia centena de pessoas, uma dimensão comum em Portugal. 

 

Nada de fazer cara feia


Havia um menu de degustação (9 momentos, 70€), uma fórmula a que recorro com frequência, por me dar a possibilidade de experimentar mais pratos e poder ter mais matéria para me pronunciar. Porém, percebi que dava para pedir várias propostas da carta, sem sair a rebolar e até para negociar a vinda de um dos pratos do menu que me despertara a curiosidade, o pepino do mar. Calma, nada de fazer cara feia, já lá vamos.

Lírio curado em sal, raspa de citrinos, molho de salsa e escabeche foi a primeira entrada a chegar. O lírio dos Açores é um peixe incrível dos nossos mares, sobretudo quando comido cru - por isso é tão apreciado nos restaurantes japoneses. Porém, a cura em sal e o toque ligeiramente fumado levam-no para outro lado. Ganha uma textura mais resistente, perde alguma subtileza e, neste caso, tinha um sabor mais intenso. É uma opção válida, mas não creio que seja a melhor forma de valorizar a espécie.  

O pepino do mar é um produto muito apreciado na China e também aqui ao lado, em certas zonas de Espanha (como a Catalunha), onde dá pelo nome de espardeñas. Possui uma textura e um gosto que lembram a lula, mas supera-a neste último campo do sabor. Foi apresentado muito bem com várias ervas, puré de urtigas e umas interessantes raspas de ova curada de robalo. 

Muito bom, também, o lingueirão, num ponto algo resistente ao dente, acompanhado de outros bivalves de grande qualidade e um guloso puré de Cebola caramelizada, tutano e água dos próprios bivalves. Um portento de sabor.

Por fim, antes das sobremesas veio um rodovalho assombroso, a revelar toda a sua qualidade e frescura. Este peixe achatado que se alimenta de outras espécies do fundo do mar (pequenos peixes, crustáceos e bivalves) dá-se bem com a grelha e no Elemento trabalham-no bem. É cozinhado com pouco sal e acompanhado de espinafres, salicórnia - que lhe dá o toque salgado - e crosnes, um pequeno tubérculo com uma textura crocante. A porção do peixe é servida sem que seja retirada a pele ou a barbatana dorsal, o que até se entende porque uma boa fracção do sabor está nessas partes mais gelatinosas ricas em colagénio. Acontece que a opção de empratamento, com todos os acompanhantes sobrepostos no topo, faz com que não se descortine bem o que está por baixo. Isso leva-nos a pressupor que o peixe vem limpo, o que não aconteceu e em várias garfadas lá apanhamos um ou outro raio da barbatana dorsal. É mais uma textura tipo cartilagem do que uma espinha pontiaguda, porém ou o cliente é avisado que o peixe vem assim, ou o empratamento deveria ser diferente, com o peixe bem visível. 

Finalizámos a refeição da melhor maneira, com um tofee de gengibre, chocolate 70%, “crumble” de chocolate branco e raspa de citrinos, preparada por uma jovem pasteleira brasileira. Era uma sobremesa pouco impressionante à vista, mas interessante e muito equilibrada, quer nos sabores, quer na doçura. Valeu, Gabrielle!

Em termos de proposta de vinho a carta do Elemento contém cerca de noventa referências - umas mais óbvias, outras menos – provenientes de produtores, de pequena, média e grande dimensão, de Norte a Sul, passando pelas ilhas. Um terço dos vinhos são generosos, espumantes e rosés; um terço são brancos; e outro terço são tintos, com estes dois últimos blocos divididos em duas famílias, “mais ligeiros” e “mais encorpados” -  uma divisão interessante que pode ajudar o cliente mas que também pode gerar equívocos (como o de arrumar nos “mais encorpados” dois vinhos “gluglu” como o Nat Cool tinto da Niepoort ou o Humus Tosco). A refeição foi acompanhada Phaunus Pet Nat Bruto 2017, provavelmente um dos melhores e mais versáteis espumantes de método ancestral existentes em Portugal. 

Por fim, uma última palavra para o serviço apenas para mencionar que o atendimento foi atencioso e prestado com correção. Bem vistas as coisas, e em jeito de conclusão, o  Elemento é um restaurante que vem valorizar o cada vez mais interessante panorama do sector, no Porto. A proposta traz algo de novo, é estimulante, criativa e, sobretudo, boa.