Harmonização: Manteiga e vinho

Fotografia: Ricardo Garrido
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Uma manteiga verdadeira é muito mais do que uma emulsão de água em gordura. Conta a história de um meio-ambiente que alimenta as vacas e está estampado no leite. Depois, temos o papel determinante do homem na sua feitura, quão habilidoso e sensível é, e em que nível irá recorrer às novas tecnologias. Lembra com o vinho? E, tal como o vinho, faz uma bela ligação à mesa, como gordura sólida ou líquida.

 

 

Por algum trauma alimentar, passei uma boa parte da minha vida sem gostar de manteiga. Lá pelos meus 20 anos aprendi a aceitá-la, após ler um livro de um ‘foodie’ e crítico norte-americano que ensinava a técnica do “masoquismo benigno”, isto é, expor várias vezes aos sentidos um alimento que não se tolera e assim convencer o cérebro e os orgãos sensoriais que aquilo sabe bem. E, às vezes, o resultado deste exercício é transformar a resistência inicial num dos ingredientes ou pratos preferidos. Atualmente sou apaixonado por manteigas, artesanais ou industriais, desde que de grande qualidade e que exprimam de preferência o seu terroir, estilo e elaboração, tal como no vinho. Nada de barras amarelas sem “somewhereness” que apenas aportam uma gordura qualquer à nossa vida. 


Tal como o vinho é apenas o mosto da uva fermentado, e dessa descomplicada origem nasce uma miríade de cores, aromas, texturas e estilos, dos mais simples “funcionais” de supermercados aos néctares mais sublimes e raros, a manteiga é um laticínio com matizes. Acompanha o homem desde que este começou a domesticar os primeiros rebanhos de cabra e ovelha, milénios antes de Cristo, na Mesopotâmia. Como a bacia do Mediterrâneo era relativamente quente para mantê-la no seu estado sólido e evitar a rancificação, prejudicial ao sabor e à manutenção dos nutrientes do leite - ao contrário dos queijos -, ligou-se aos países nórdicos europeus. Os gregos e romanos, por exemplo, referiam-se à manteiga como um dos poucos alimentos finos dos “bárbaros do norte”. 
Embora haja diversas técnicas, mais tradicionais ou modernas, para inverter a emulsão de glóbulos de gordura na água do creme de leite em emulsão de água em gordura da manteiga, basicamente o que deve acontecer é uma batedura do creme. Assim rompe-se a membrana que envolve os glóbulos de gordura, possibilitando a sua aglomeração e consequente formação da manteiga, com eliminação de grande parte dos componentes não gordurosos através do leitelho. Em França, onde a manteiga é um dos principais esteios da sua prestigiada gastronomia pelo menos desde o séc. XVII, faz-se uma grande distinção neste ponto da batedura: nas manteigas mais artesanais, denominadas “beurre de baratte”, o processo é realizado em cilindros giratórios tradicionais, alguns ainda de madeira, que separam a massa sólida da líquida. Após a separação do leitelho, adiciona-se água gelada para uma segunda “barattage” dos grãos de manteiga. As manteigas mais industriais são elaboradas em máquinas agitadoras contínuas de inox, ou “butyrateurs”, os quais não preservam tanto os glóbulos de gordura, compromentendo assim a textura ultra cremosa que encontramos com maior frequência nas manteigas “de baratte”. 


Mais ainda, no paraíso das manteigas - embora existam excelentes exemplares em Inglaterra, Irlanda, Dinamarca, Espanha e Itália -, a origem é levada muito a sério. Há três denominações controladas em França: “beurre d'Isigny” da Normandia, aveludada e com notas de avelã, “beurre Charentes-Poitou” - a famosa manteiga Échiré do homónimo laticínio provém dessa região - da Aquitânia, de características mais frutadas e, finalmente, a “beurre de Bresse”, entre a Borgonha, a Sabóia e o Jura, fundante na textura, com notas herbáceas, florais e de nozes e avelãs. Curiosamente, a manteiga preferida dos grandes chefes e profissionais pelo mundo fora, do “artisan beurrier” Jean-Yves Bordier, provém da Bretanha e não goza de nenhuma destas denominações. 
Assim como a uva transporta o meio ambiente ao vinho, o leite cru das vacas reflete as condições naturais onde pastou a relva e as ervas autóctones, com o sabor singular da região. E também as culturas de micro-organismos que se desenvolvem no leite e no seu creme. Bordier celebrizou a frase “a manteiga é um mata-borrão da natureza”. De facto, mesmo que o creme seja pasteurizado na esmagadora maioria das manteigas comercializadas do mundo, o perfil da estação do ano e da cultura lática que atuarão sobre o creme depois da pasteurização - esta última espontânea nas manteigas mais artesanais -, far-se-ão sentir na cor, perfil aromático e sabor. Aromas mais herbais e florais na primavera; cor mais amarela devido aos carotenóides no pasto e aromas mais ricos, caramelados e confitados no verão; mais tostados e de castanhas no outono; e uma cor clara e sabores mais doces no inverno, quando a alimentação é feita, sobretudo, de feno seco. Microrganismos indígenas, tal como no vinho, são menos controláveis, mas podem gerar sabores mais complexos, picantes e típicos da região.

Em Portugal


No nosso pequeno país abençoado gastronomicamente, ainda tão modesto em vangloriar os produtos ímpares que tem nos seus campos, rios e oceano, e talvez por isso ainda não reconhecidos mundialmente como deveriam, dispomos de algumas das melhores barrinhas cremosas do mundo. 


Quando cheguei a Portugal e fui apresentado aos queijos e manteigas dos Açores, rendi-me absolutamente ao seu caráter e qualidade. Para um profissional do vinho, e mesmo sem ter ainda visitado esse fabuloso arquipélago, ficou claríssimo que ali imperavam condições de clima, de solo, ventos e outros fatores naturais muito particulares, determinantes para a diversidade e sabor das suas pastagens, prados e forragens. Já apresentei a alguns amigos profissionais estrangeiros um queijo da Ilha de São Jorge bem curado, e todos se admiraram de não figurar no rol dos melhores e mais peculiares do mundo, com a sua riqueza de sabor e textura, a “tanginess” herbácea e sápida que fala de pasto, mar e vulcão. Da mesma forma, podemos lambuzar-nos com manteigas fabulosas que sabem ao clima subtropical húmido e oceânico e aos solos vulcânicos açorianos, e aqui cito as minhas preferidas: a potente e complexa Uniflores da Ilha das Flores, a mais elegante e texturizada Rainha do Pico e a não menos rica e deliciosa Ilha Azul do Faial.


No wine-bar em Lisboa de fui o diretor de vinhos, trabalhávamos com uma manteiga do norte de Portugal continental, para sermos diferentes daqueles poucos que ainda investem em excelência em todos os ingredientes e acabam por optar pelas amarelinhas dos Açores. Procurávamos semanalmente na fábrica de lacticínios situada na freguesia das Marinhas, concelho de Esposende, distrito de Braga, a incrível manteiga das Marinhas. Elaborada desde 1954 por métodos artesanais, reflete um outro terroir e maneiras diferentes das gerações de trabalho, resultando numa coloração palha, textura fundente de grande qualidade e um sabor extrememante requintado, adocicado e persistente. Entre Açores e Marinhas? É como se comparássemos a explosão salgada e fumada de um Verdelho dos Açores com a elegância e persistência da fruta de um Alvarinho de Melgaço - não há melhores, apenas expressões emocionantes de terroirs distintos.

Para harmonização, há gorduras e gorduras…


A manteiga é um produto perfeito para percebermos bem um dos maiores equívocos em que muitos amadores e até alguns profissionais da enogastronomia incorrem ao propor um casamento vinho-alimento. Asserções generalistas do tipo “acidez corta gordura” são omnipresentes e assaz perigosas. Como discutimos por vezes neste espaço da revista, a acidez dos vinhos, ao lado da sapidez (e do gás carbónico dos espumantes), são armas poderosas para, através de um forte estímulo à salivação, ajudar à dispersão e diluição e consequente emulsionar das gorduras sólidas. O efeito destas gorduras, como é o caso da manteiga na temperatura de frigorífico, ou de um sashimi de atum toro ou ainda um enchido de porco, é uma sensação tátil de emplastramento ou pastosidade. Vinhos vibrantes e com muita frescura cortam essa sensação de riqueza quase enjoativa, trazem vida ao casamento o qual, por sua vez acalma o ímpeto demasiado festeiro.


Se a gordura é líquida, conforme discutido no nosso artigo sobre o azeite, temos que procurar no vinho elementos que enxuguem ou minimizem os efeitos dessa untuosidade na boca - no caso, taninos ou, nos vinhos brancos, o álcool - e não um elemento como a acidez, que induz a uma salivação intensa, ou seja, estaríamos a aumentar a quantidade de líquidos na cavidade bucal, em vez de diminuí-la.


Como o ponto de fusão ou derretimento da manteiga é relativamente baixo e adquire uma consistência “espalhável” por volta dos 15ºC, torna-se uma gordura líquida, dependendo da quantidade de sólidos do leite e da composição de centenas de tipos de ácidos gordos, ao redor dos 35ºC, ou seja, próxima da temperatura interna da cavidade bucal. Essa fração de mais de 80% de gordura pura, composta principalmente de triglicerídeos, quando servida próxima da temperatura do frigorífico, pedirá um perfil de vinho dotado de acidez cortante, coadjuvada por outros elementos de dureza, como a sapidez mineral e a espuma carbónica. Há harmonização mais sedutora para um grande champagne rosé ou espumante rosado da Bairrada de Baga, do que uns canapés cobertos com discos de manteiga fria e uma generosa colher de ovas de salmão? O impacto ácido, de frescura e mineralidade destes vinhos, reforçados pelo gás carbónico natural, ajuda a emulsionar a gordura e tem o seu ataque de dureza amortecido pela manteiga, ou seja, uma perfeita situação de “win-win”.


Quando aquecemos a manteiga para diversas preparações culinárias, sabores maravilhosos e uma textura rica e untuosa pedirão outro perfil de vinho. Devemos contudo sempre evitar as frituras por imersão a temperaturas muito altas, pois o “ponto de fumo” da manteiga é baixo: por volta dos 150ºC já começa a degradar a sua estrutura de ácidos gordos livres, contra os 200ºC aproximadamente do azeite extra-virgem. No caso da manteiga derretida, por exemplo em vieiras ao forno na concha, ou em molhos de emulsão como no clássico francês para peixes à base de chalotas e vinho branco, o chamado “beurre blanc”, não falamos já em gordura sólida, mas em untuosidade. Nesta situação, o melhor é partirmos para um rico Borgonha branco na faixa dos 13,5º de álcool, ou um belo Encruzado do Dão já com 14º gr./lt., trabalhado judiciosamente em barricas “à la bourguignonne”.  

“Manteiga no vinho”


Para além dos mais de 80% de gordura e 15% de água e aproximadamente 3% de sal - quando é o caso -, a manteiga é ainda composta por vitaminas liposolúveis A e D e  uma centena de compostos diferentes que contribuem para o sabor único, como lactonas, ácidos gordos, diacetil, metil cetonas e dimetilsulfureto. Estes compostos ligam-se molecularmente muito bem com vinhos de caráter amanteigado, principalmente aqueles que sofreram fermentação malolática. Um dos corolários desta conversão, pelas bactérias láticas, do ácido mais forte e duro – málico -, num ácido mais redondo e dócil – lático -, é a formação do componente diacetil, cujo aroma é aquele que mais associamos à manteiga fresca (ou às pipocas de micro-ondas). O mesmo diacetil é gerado no creme de leite através da ação da cultura lática, sobretudo pelos Streptococcus cremoris, Leuconostoc citrovorum, Leuconostoc dextranicum e Streptococcus diacetylactis a partir do ácido cítrico e dos citratos. 
Nos vinhos, a concentração do dimetil determina a sua intensidade. O limiar de perceção num Chardonnay, por exemplo, é de apenas 0,2 mg./lt. e num Cabernet Sauvignon ou outros tintos estruturados é de 2,8 mg./lt.. A concentração de dimetil depende por sua vez das estirpes das bactérias envolvidas na malolática, da velocidade e disponibilidade de oxigénio na conversão, do pH do vinho, da sulfitagem e da concentração de ácido cítrico.


De mãos dadas com a química podemos tomar decisões mais informadas e promover maridagens mais harmoniosas e duradouras. Da próxima vez que sentir as típicas “buttery notes” ou notas amanteigadas nos brancos que passam por estágio em barricas de carvalho e que normalmente realizam a conversão malolática, traga o diacetil da manteiga para animar a festa de casamento. E não se esqueça do pormenor que faz toda a diferença: se o equilíbrio do vinho pender para a acidez e baixo álcool, normalmente resultante de climas mais frescos, a manteiga também deve ser gelada e sólida; se o equilíbrio pender para uma acidez menos cortante e maior riqueza alcoólica, registo de climas mais quentes, o melhor mesmo é que a manteiga esteja derretida pelo vinho.