A busca pela excelência

Quando se quer produzir vinhos de topo, será o terroir o mais importante? Lotes de vinhos multirregionais ou, até, de diferentes hemisférios, inscrevem-se na busca pela excelência? A Wine Detective investiga.

 

O Barca-Velha 2011 é lançado este mês. Surpreendentemente, o ícone dos ícones de Portugal tem muito em comum com o ícone dos ícones da Austrália – o Penfolds Grange Bin 95. Formados na escola dos vinhos fortificados, os seus criadores - Fernando Nicolau de Almeida e Max Schubert – visitaram, estudaram e inspiraram-se na ‘crème de la crème’ de Bordéus.

Ambos tintos poderosos, lançados oficialmente com a colheita de 1952. Nicolau de Almeida e Schubert podem ter tomado emprestadas técnicas de vinificação de Bordéus, mas ambos, Barca-Velha e Grange, partilham um importante ponto de partida. Os ícones de Bordéus saem de uma única propriedade ou ‘château’. Já o Barca-Velha e o Grange sempre foram lotes de várias localizações. De regiões mais quentes e secas, pode dizer-se que a busca pela excelência a isso obriga. Reforçar a estrutura e o equilíbrio dos vinhos certamente reforça a sua longevidade.


Cerzido a partir de locais com altitudes baixas e elevadas do Douro Superior, o Barca-Velha é, no entanto, de uma única sub-região. Assim como a encarnação original do Grange, a partir de duas vinhas de Adelaide. No entanto, a Penfolds tem ultrapassado progressivamente os limites, adquirindo Shiraz de várias regiões da Austrália do Sul, que distam 500 kms. uma da outra. Isso (e incluindo uma pequena percentagem de Cabernet Sauvignon na maioria dos anos) talvez explique por que razão o Grange é altamente consistente e sempre excelente. Lançado quase todos os anos desde 1952, contrasta fortemente com o Barca-Velha; a edição de 2011 é apenas o 20º lançamento.


O lote plurirregional subverte completamente a abordagem da Europa para vinhos de topo, centrada no terroir. Fundada em demarcações de origem cada vez mais estreitamente circunscritas, a hierarquia da Borgonha de denominações regionais, comunais e ‘climat’ (com base na parcela) representa o expoente máximo do conceito. Poderíamos dizer que, sendo um lote do sul da Austrália, Grange é o oposto dos Grand Cru da Borgonha.


Após o lançamento da The California Collection da Penfolds, surge um novo pólo oposto na elaboração de vinhos – o lote de hemisférios. E uma nova gama de vinhos pan-globais, “Wines of the World”. A Penfolds apresentou-o em dois lotes inovadores. O Penfolds Bin 149 de 2018 compreende 85,1% de Cabernet Sauvignon californiano e Cabernet da Austrália do Sul. Já o Penfolds Quantum Bin 98 de 2018 é um lote de 87% de Cabernet Sauvignon californiano e Shiraz da Austrália do Sul. Com um toque da fruta australiana das parcelas dos Grange e Bin 707, fico com jet lag só de pensar neste par provocante. Ao desafiar as noções tradicionais de vinhos de excelência, estes desvelam preconceitos e preferências.

Grandes vinhos começam no cérebro

Atrelar o vagão californiano à estrela australiana resulta num óbvio capital de marketing. A 545£ por garrafa, o PVP recomendado do primeiro lançamento do Quantum supera o do 66º lançamento de Grange (415£). Confesso sentir-me desconfortável, um pouco cínica até, quanto ao desenraizamento de uma marca de prestígio da Austrália para a Califórnia. Mas, e quanto aos vinhos? Serão dignos dos preços vertiginosos (já agora, o Penfolds Bin 149 é vendido por 145£)?


Naturalmente, são diferentes. Do sul da Austrália, os Grange e Bin 707 são de estrutura forte, com grande densidade, extrato e peso. Os Wines of the World são comparativamente esbeltos, com fruta suave e delicada. Mas em linha com o estilo da casa, são vinhos rigorosamente cinzelados, de grande estatura. Os Quantum e Bin 149 parecem mais completos do que os dois (substancialmente mais baratos) tintos totalmente americanos da The Penfolds California Collection que, devo acrescentar, levou 21 anos para ser produzida. A Penfolds adquiriu a sua primeira vinha na Califórnia em 1997.


Aparentemente, a decisão de lotar os vinhos californianos com os componentes de Grange e de Bin 707 surgiu de forma orgânica. O enólogo chefe da Penfolds, Peter Gago, tinha-os à disposição para ‘benchmarking’. Metaforicamente falando, serviam de molho ou tempero, elevando o prato, juntando todos os elementos. Então, por que não fazer Wines of the World em busca da excelência? Certamente a excelência, e não o terroir, será o árbitro final do bom vinho? Até Bordéus foi lotado com vinhos de outros locais.


No início do século XVIII, os comerciantes de vinho ingleses praticavam a ‘coupage’, lotando Medoc com ‘Hermitage’ (Syrah do Rhône) ou Benicarló (Garnacha Tinta). Posteriormente, os próprios châteaux de Bordéus adotaram esta prática a pedido tanto de ‘brokers’ como de ‘négociants’. Alegadamente, os registos de 1er Crú Laffite (sic) e Latour mostram que recorreram à prática nos anos magros. Na segunda metade do século XIX, a eliminação gradual da coupage coincidiu com a chegada do Merlot (maturações mais precoces, mais encorpado), capaz de adicionar alguma carne ao osso de Cabernet.


Em seguida, o Châteaux Palmer, de Margaux, prestou homenagem à coupage em 2004, criando o Palmer Historical XIX Century Wine, lote com cerca de 80-85% de Bordéus do Château Palmer e Syrah do vale do Rhône. Um retalhista de Londres lista este Vin de France a 375£ cada garrafa. A mesma colheita (2017) do Grand Vin - Château Palmer Margaux - custa 333£. Por isso, o que é um vinho de excelência? Tal como a beleza, está nos olhos de quem a vê?


O meu coração bate um pouco mais forte sabendo que em breve provarei duas novas colheitas de Shiraz de Barossa da Henschke, cada uma de vinhas icónicos de Eden Valley. Os Shiraz de Hill of Grace e Mount Edelstone envelhecem lindamente, mas parecem menos “construídos para envelhecer” e menos imponentes do que o Grange. Embora a poucos passos de distância, cada local e cada Shiraz é único. No copo, as diferenças seduzem. E que dizer do Barca-Velha versus o Quinta da Leda, o excelente tinto de vinha único da Casa Ferreirinha? Por outro lado, o meu pulso acelera para o lote de várias localizações de vinhas em altitudes mais elevadas e algumas parcelas da Leda que recebem tratamento ‘Rolls Royce’.


O veterano enólogo australiano Brian Walsh diz: “Os grandes vinhos não começam na vinha”. Em vez disso, “começam no cérebro”. Certamente terá razão. Alguém - geralmente mais do que uma pessoa - deve identificar o potencial da terra (seja uma parcela ou um rendilhado de parcelas) e combiná-lo com uvas capazes de produzir vinhos de excelência. Em seguida, devem executar essa visão, tomando inúmeras decisões ao longo do caminho. Com muitas opções, a busca pela excelência assume várias formas.
 

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