A indústria do vinho no pós-pandemia. Um caso de psicologia?

O segundo semestre deste ano será desafiante. Ao mesmo tempo que se curam as feridas, ter-se-á de vitaminar, com muito ânimo e esperança, equipas internas, fornecedores e clientes. Terá que existir flexibilidade extra de processos e atualizações permanentes de planos de negócio. Se a China e os EUA demorarem a recuperar a confiança ou a tendência de crescimento de consumo, será imprescindível descobrir novas oportunidades noutros mercados ou um conjunto de pequenas oportunidades nos mercados tradicionais.

 


Escrevo esta crónica na última semana de março, sem qualquer certeza de calendário de um regresso paulatino à normalidade dos dias. À ténue luz europeia, estima-se que possa acontecer em maio (na melhor das hipóteses) ou apenas em junho (talvez uma previsão mais realista). Mas, neste burburinho permanente de informação e contrainformação, há também quem avance o terceiro trimestre do ano e mesmo quem já avise para um segundo “round” do vírus no próximo outono. Independentemente dos prognósticos, uma coisa é garantida: a indústria mundial do vinho acaba de levar um enorme soco do estômago por causa do Covid-19.


A pandemia é global. Espalhou-se a uma velocidade galopante, não tanto por incúria dos humanos – sinceramente não me parece ter sido essa a causa principal – mas muito mais pela incrível facilidade de cada um de nós viajar pelo mundo que hoje é, tal como a pandemia, global. A China deu o alerta, toda a Ásia estremeceu, a Europa logo a seguir parece ter tombado, os EUA dão sinais de perder o norte, a chegada à América do Sul, a África, à Austrália e à Nova Zelândia completam a universalidade do coronavírus. 
Tendo uma indústria robusta e disseminada pelos vários continentes, o vinho não é, todavia, nem um bem de primeira necessidade nem um produto urgente em situações de emergência. Acresce que os países produtores de maior reputação mundial estão angustiados, a tentar livrar-se do maldito vírus, enquadrados numa Europa (e numa União Europeia) demasiado frágil perante adversidades sérias. 


Em economias emergentes, onde consumir vinho (e rótulos) tem sofrido uma curva acentuada de crescimento na última década, o conhecimento efetivo e cultural sobre o que é o vinho continua parco. O que chega ao copo é demasiadas vezes decidido pelo status que irá gerar ou pelo preço. Estará agora um asiático particularmente entusiasmado em adquirir uma garrafa de vinho italiano, sabendo-se que Itália superou o número de vítimas mortais infetadas conhecidas na China?
É também importante olhar para os canais de escoamento de vinho em diferentes mercados. Nos países com cidades fervilhantes, onde coexistem milhares de restaurantes com uma diversidade de propostas, a venda de vinho passa muito pela restauração – precisamente dos setores mais afetados pela atual pandemia. Todos esses restaurantes irão reabrir no pós-vírus? E os clientes? Nos primeiros meses, regressão em força ou estarão contraídos no consumo?
A teia de implicações desdobra-se. Os países produtores do Hemisfério Sul, por exemplo, estão em vindima e começam a ficar confrontados com uma de duas opções: seguir o ritmo habitual e interromper os trabalhos quando o vírus levar as pessoas a ficar em casa ou acelerar a vindima, colhendo a uva fora do ponto correto de maturação, antes que a pandemia impeça que possa ser finalizada. 


Depois, o caso das grandes feiras internacionais de negócios. A mais impactante da atualidade, a Prowein, em Düsseldorf, Alemanha, foi cancelada. Outras seguiram os mesmos passos e outras ainda, como a Vinexpo Hong Kong, foram adiadas (8 a 10 de julho… até ver). Os departamentos de exportação das diferentes empresas estão sentados à secretária e por várias “Skype calls” que se façam, é sabido que o negócio do vinho é muito feito olhos nos olhos e selado com um aperto de mão.

E Portugal?

Portugal não consegue escapar a este cenário pela simples razão de ser parte dele. Depois da recessão económica de 2003 e da crise financeira de 2008, os produtores portugueses perceberam que a salvação eram (e foram) as exportações. No segundo semestre deste ano terão que navegar o mundo a uma velocidade supersónica, procurando recuperar das quebras que já se sentem, nalguns casos estimadas em 50%, tentando concretizar encomendas entretanto canceladas.
No mercado doméstico, quem está presente nas grandes superfícies terá sempre aí uma porta entreaberta, mas quem estiver bastante dependente do canal Horeca terá sérios rombos no casco.


A campanha da Páscoa, sempre um momento importante no primeiro semestre, está perdida e o verão fica demasiado dependente do que acontecer com o turismo. Sim, tem sido o turismo a grande alavanca da nossa economia, com naturais reflexos na hotelaria e na restauração, por consequência também no vinho. Basta recordar os números oficiais mais recentes: o turismo representa quase 14,6% do Produto Interno Bruto (PIB) português, 8% do Valor Acrescentado Bruto (VAB) e 9% do emprego nacional (dados da Conta Satélite do Turismo sobre 2018). Se quebrar bastante, como previsivelmente acontecerá este ano, toda a cadeia perderá. A indústria do vinho tem igualmente sabido explorar a intensa procura estrangeira, através de projetos de enoturismo e ofertas complementares em todas as regiões. No arranque, representam investimentos avultados, com amortizações e retornos planeados a médio e a longo prazos. Pois bem, nada do que está a acontecer estava nos planos…
E há a próxima vindima. Se as principais empresas que adquirem uva aos pequenos viticultores não conseguirem escoar parte dos stocks que mantêm nos armazéns por força das circunstâncias atuais até ao final do verão, inevitavelmente a procura diminuirá e o preço a pagar baixará.


Sim, estamos diante um cenário previsível de crise em diversas áreas de negócio ligadas à indústria do vinho, mas isso não deve derrotar à partida quem nela trabalha.
O segundo semestre deste ano será dos mais desafiantes da nossa história recente. Ao mesmo tempo que se procurarão curar as feridas, ter-se-á de vitaminar, com muito ânimo e esperança, equipas internas, fornecedores e clientes. Terá que existir flexibilidade extra de processos e atualizações permanentes de planos de negócio. Se a China e os EUA demorarem a recuperar a confiança ou a tendência de crescimento de consumo, será imprescindível voltar a olhar o mapa e descobrir novas oportunidades noutros mercados ou um conjunto de pequenas oportunidades nos mercados tradicionais.


Todo o setor, sempre dos mais ativos e rápidos a reagir às adversidades, deverá ainda investir forte na psicologia. Parece-me por demais evidente que dos primeiros desafios do pós-coronavírus passará por recuperar a confiança de todos os que integram a cadeia do negócio – de quem produz uva a quem vende vinho. 
Por fim, o consumidor. De acordo com o mais recente relatório “Wine Intelligence Portugal Wine Landscapes 2020”, os consumidores nacionais estão disponíveis a pagar mais por uma garrafa de vinho de melhor qualidade. Por isso, começar a baixar preço só para tentar atingir objetivos anuais, sem qualquer outra justificação que não seja a sobrevivência de empresas, seria deitar por terra um trabalho árduo de vários anos. Seria um erro colossal.
 

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