A queda e ascensão da cortiça

Durante muito tempo, a cortiça era o único vedante para vinho. Porém, o desafio chegou sob a forma de cápsulas de rosca. A indústria corticeira respondeu com inovação e a sua quota de mercado é hoje estável. E pode crescer.

 

Portugal é o berço da cortiça. Com mais de 700 hectares de montado de sobreiro, o país gera pouco mais de metade da cortiça mundial. A Espanha surge em segundo lugar, com pouco mais de 30% da produção de cortiça, seguindo-se um conjunto de países do Mediterrâneo que compõem o restante. É uma substância natural notável que - quando de boa qualidade - é capaz de preservar um vinho em garrafa por mais tempo do que uma vida humana. Mas é natural e as suas falhas têm estado sob escrutínio em anos recentes.


Durante muito tempo, a cortiça era o único vedante para vinho. Trata-se de um casamento histórico notável. As garrafas de vinho eram originalmente usadas de forma reutilizável: o vinho era enviado em cascos de madeira e a garrafa seria apenas um intermediário entre a madeira e a mesa. Assim, e com a adoção mais generalizada da garrafa de vidro, alguém percebeu que a rolha de cortiça poderia ser uma boa maneira de vedar a garrafa. Os vinhos engarrafados, com potencial para armazenamento e valorização de colheitas anteriores, tornaram-se a norma.


A cortiça é um produto natural. É retirada a partir da casca do sobreiro, Quercus suber. Testemunhar a extração da cortiça e o subsequente trabalho de valorização daquele sistema de agricultura é uma experiência marcante. Este ecossistema florestal sustentável, que resulta num produto natural usado em milhões de unidades em todo o mundo para selar garrafas de vinho, de forma altamente sustentável, é único.
Os grandes problemas subjacentes a tudo isto são de consistência e contaminação. Provavelmente, a contaminação da cortiça existe desde que são usadas rolhas. Os micro-organismos crescem na cortiça e dentro dela. Vários fungos povoam até a cortiça saudável, uma vez que esta é atravessada por poros, designados lenticelas, onde se dão trocas gasosas. Se existirem haletos no ambiente - como cloro ou bromo - são desintoxicados pelos fungos para produzir haloanisóis, e um destes, o 2-4-6-tricloroanisol (TCA), tornou-se famoso como o principal culpado pelo chamado “cheiro a rolha”. Os seres humanos são extremamente sensíveis a este odor e são necessárias apenas pequenas quantidades - da ordem de alguns nanogramas por litro - para contaminar a rolha, o que faz com que os vinhos com os quais entrem em contacto apresentem um muito desagradável cheiro a mofo.
Sem alternativas para vedar garrafas de vinho, a indústria conviveu com o problema. O ritual no restaurante, onde à pessoa que pede o vinho é servida uma pequena quantidade para prova inicial, decorre em parte do número pequeno, mas não insignificante, de garrafas afetadas pelo cheiro a rolha.


No final dos anos 1990, a expansão da indústria do vinho gerou pressões na oferta de cortiça, visto que cada vez mais garrafas eram vedadas desta forma. Na Austrália e na Nova Zelândia, a insatisfação cresceu a tal ponto que rapidamente deu-se uma mudança para “screwcaps”, ou cápsulas de rosca. Os testes começaram em 1999, seguiu-se uma iniciativa com os produtores de Riesling de Clare Valley em 2000 e, em seguida, a adesão mais ampla, incluindo da Nova Zelândia, em 2001. Embora as rolhas de plástico tenham sido testadas, os primeiros modelos não eram ideais e deixavam muito oxigénio entrar na garrafa, difundindo-se pelo corpo da rolha. A cápsula de rosca, com o seu revestimento “tin saran”, assemelhava-se mais a uma rolha de cortiça, pois permitia apenas transmissões reduzidas de oxigénio. Era uma alternativa barata e sem contaminação, pelo que os consumidores de muitos países adotaram-na pela sua conveniência, enquanto alguns mercados eram mais resistentes e achavam difícil dissociar a tradição da cortiça da experiência do vinho.


Nessa época, as taxas de contaminação da cortiça eram superiores a 5%. Além disso, a inconsistência da oferta estava a causar problemas nos vinhos que se destinavam a guarda. Posta perante uma alternativa viável, a indústria da cortiça teve que atuar. O uso de screwcaps e rolhas sintéticas estava a aumentar rapidamente. Que fatia de mercado ficaria para a cortiça? O que aconteceria se os produtores de vinho das regiões mais prestigiadas mudassem para o screwcap? Com um mercado anual de 18 a 19 mil milhões de garrafas, muita coisa estava em jogo.

A resposta da ciência

A indústria da cortiça respondeu de duas formas. A primeira foi uma abordagem preventiva. De que forma poderiam ser reduzidas as taxas de contaminação antes que a cortiça fosse perfurada? O primeiro passo foi mudar a forma como a cortiça colhida era armazenada antes do processamento. Em vez de deixá-la na terra nua, era agora armazenada em cimento, para reduzir a contaminação. Em seguida, a etapa de cozedura/fervura foi alterada. A casca de cortiça deve ser fervida e lavada para torná-la suficientemente flexível para processamento, algo que costumava ser feito em condições relativamente pouco higiénicas. Foram introduzidos novos processos, mais limpos, onde a água empregue era trocada, para evitar contaminação cruzada. E um processo de inspeção manual eliminava todas as placas descoloridas ou que parecessem contaminadas.


Depois, os principais fabricantes de cortiça começaram a procurar técnicas para eliminar ou remover rolhas contaminadas da linha de produção. A primeira técnica foi introduzida pela Amorim, maior produtor mundial de cortiça - responsável por cerca de 40% do mercado de cortiça natural premium. Chamado de ROSA (“rate of optimal steam application”, ou rácio ideal de aplicação de vapor), visava remover o TCA aplicando um tratamento de vapor. Inicialmente era adequado apenas a grânulos para rolhas técnicas.
As rolhas técnicas - constituídas por pequenos pedaços de cortiça que depois são colados com um aglutinador alimentar - constituem uma grande parte do mercado da cortiça. Se forem feitos de grânulos contaminados, podem acabar por espalhar o cheiro a rolha de maneira uniforme por todo o vedante. Felizmente, é mais fácil limpar grânulos do que rolhas inteiras e, portanto, técnicas como o dióxido de carbono supercrítico (numa certa combinação de pressão e temperatura, o dióxido de carbono não é nem líquido nem gasoso, mas tem propriedades de ambos), tem sido usado pela DIAM, resultando em rolhas técnicas sem mácula que podem desempenhar muito bem a sua função.


A Amorim adaptou a sua técnica ROSA para uso em rolhas inteiras em 2005, mas este vapor não é 100% eficaz, pelo que, ainda assim, algumas rolhas contaminadas passavam. Lançaram então o NDTech, um processo que envolve a avaliação individual de rolhas por GC-MS (cromatografia gasosa-espectrometria de massa) e rejeitar qualquer uma que tenha TCA. Pela primeira vez, os produtores dispostos a pagar o custo extra podem garantir que os seus vinhos não terão rolhas contaminadas. Mas isso era caro e demorado.
No último ano, tanto a Amorim como a Cork Supply começaram a usar novas tecnologias que, segundo afirmam, vão fazer com que o cheiro a rolha - pelo menos com os seus produtos – sejam coisa do passado. A Amorim chamou-lhe Naturity, enquanto a da Cork Supply é designada InnoCork Circuit. Ambos usam várias combinações de pressão e temperatura (dessorção térmica) para libertar qualquer TCA ligado à cortiça e assim removê-lo. Embora já seja possível limpar grânulos para rolhas técnicas há algum tempo, estas soluções são eficazes em rolhas naturais, mantendo as suas propriedades físicas desejáveis.


A quota de mercado da cortiça, assistida pela existência de rolhas técnicas livres de TCA, é agora estável e - pelo menos em alguns mercados - está a crescer. Isso teria parecido impensável 20 anos atrás, sendo certo que quaisquer reduções adicionais das taxas de contaminação fortalecerão esta posição.

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