A tipicidade morreu?

Os elementos que definem a identidade dos vinhos tendem a diluir-se. Será que a tipicidade está em desaparecimento?

 

Atualmente, os traços de identidade de uma zona ou território desapareceram. Embora os vinhos de hoje sejam globalmente superiores aos do passado, por outro lado, a personalidade de cada território, zona vitícola ou até regiões e países é mais difícil de detectar em prova cega. Três razões impõem essa constatação: a primeira é que, devido ao maior número e aos melhores enólogos que utilizam as ferramentas de trabalho do mais recente modelo disponível com o objetivo comum de elaborar o melhor e mais original vinho, geram forte competição entre si, sem ter em conta o perfil de identidade da região. A segunda razão prende-se com a globalização da troca de conhecimentos entre enólogos e estudantes de enologia e as práticas vitivinícolas, cujos conhecimentos transferem para os seus países de origem através da troca de experiências. A terceira deve-se a maturações mais prolongadas das uvas na vinha, mascarando parcialmente os traços identificativos da casta, originando que em todo o mundo se imponha os 14º graus num grande número de vinhos, incluindo Bordéus. Neste caso, as maturações mais prolongadas na vinha não se devem a uma tendência, mas sim às alterações climáticas, com as temperaturas de verão em época de vindima a produzirem a maturação fisiológica (mais açúcar e menos acidez) mais rápida que a fenólico, o que obriga a atrasar a vindima quando a uva ultrapassa os 13,5º em pleno declínio da maturação aromática.


Há alguns anos organizei uma prova cega em Madrid para determinar a origem de um Malbec de Mendoza, um Cabernet Sauvignon de Napa Valley, um Tempranillo de Ribera del Duero, um Monastrell de Jumilla, um Shiraz de Barossa australiano, um vinho de Toro e um lote de Touriga Nacional, Touriga Franca e Tinta Roriz do Douro. Não me recordo das marcas porque a intenção era simplesmente adivinhar a origem territorial. O resultado foi terrível. Eu próprio jurei que um dos vinhos era Ribera del Duero quando, na verdade, era Malbec argentino. Os fatores comuns eram os 14 a 15,5º de álcool, carnudos, maduros, de cores intensas e envelhecimento em barricas de carvalho francês, o que dificultou a identificação do perfil de origem.

A tipicidade no passado

Quando, no final dos anos setenta, cheio de entusiasmo e curiosidade, comecei a viajar por quase todas as vinhas do planeta, as diferenças entre um vinho e outro eram abismais devido às diferenças geográficas, de produção e de qualidade. Assim, um Cabernet californiano com notas balsâmicas de eucalipto era diferente dos congéneres franceses, mais secos e ácidos, ou dos mais amáveis e doces chilenos. As notas de violeta e vegetação rasteira húmida de um Barolo estavam distantes dos leves e frutados Chiantis. Lembro-me de ter provado os vinhos da Bairrada de Luís Pato no início dos anos noventa, com uma acidez e adstringência que definia uma região, face aos então tintos leves do Douro, aos frescos e elegantes do Dão e aos mais “ibéricos” e maduros do Alentejo. Todos estes vinhos mal ultrapassavam os 12º, com baixo pH, com mais acidez e com uma maturação aromática que melhor definia as castas. Quando, naqueles anos, organizava cursos de degustação, os meus alunos acertavam as origens territoriais dos vinhos.

Quando organizei cursos de degustação nos anos 1980, os territórios impunham uma marca única. Era fácil diferenciar a frescura ácida de um Ribeiro, a suavidade alcoólica de um Jumilla, a leveza de um Valdepeñas, a fluidez picante de um Rioja e a densidade de um Ribera. As identidades territoriais eram mais precisas porque os técnicos, ou “químicos”, nasceram praticamente na terra, fazendo o tradicional vinho que se bebia localmente.

Hoje, as castas que poderiam ser o elemento diferenciador são absorvidas pelas mesmas práticas de produção e, em grande número de vinhos, pelos mesmos tipos de leveduras. Se existem diferenças dentro de um mesmo nicho de qualidade, é devido à qualidade profissional do enólogo, devido ao tipo de solo e clima, mas não devido à geografia. Hoje, a tipicidade zonal deu lugar aos valores da marca ou produtor. As pontuações de guias de vinhos, críticos, bloggers e sommeliers não levam em conta a tipicidade da região. Afinal, a referência da Denominação de Origem nada mais é do que um dado geográfico. Hoje, o consumidor ainda escolhe (se puder) o vinho com Denominação de Origem mais por uma questão de “rótulo genérico famoso” do que pelos traços de identidade da região. São os últimos resquícios do costume herdado do passado, quando o vinho era pedido pelas características que a origem ou território imprimia.

Os vinhos da liberdade

A tipicidade de uma zona não significa a proibição de algumas modificações que melhorem os vinhos sem lhes fazer perder a identidade. No entanto, a rigidez de alguns regulamentos das Denominações de Origem impede-o. Um exemplo conhecido foram os “supertuscanos” italianos da década de 1990, que nasceram no território da Denominazione di Origine Controllata Chianti, cujos vinhos leves e sem alma eram vendidos nos Estados Unidos pelo baixo preço. Até que Michel Rolland iniciou a sua jornada como ‘flying winemaker’ na Califórnia, em 1986, com aquelas bombas de fruta madura e concentração, vinhos que chegaram a cativar o paladar americano, tanto que Robert Parker tornou-se o seu melhor divulgador. Esse estilo foi compreendido por Nicolo della Rocchetta, com o Sassicaia, e Ludovico Antinori, com o Ornelaia, que desde 1960 ‘flertavam’ com as variedades francesas. Mais tarde, Luca di Napoli juntou-se-lhes, com o Castello dei Rampolla tinto, que foi a heresia suprema de reduzir ao mínimo a participação das variedades italianas e afastar-se do “Chianti típico”. Em 1985, após o sucesso do Sassicaia numa prova da Decanter, varrendo os vinhos franceses e americanos, o mercado ianque voltou-se para esses vinhos que entendiam melhor o “sabor de Bordéus” com um toque mediterrâneo como o deles, batizando-os de “supertuscanos”, pois não podiam ser definidos pela Denominazione, já que não podiam aportar o selo DO do resto da região. Neste século, que arranca com maior protagonismo dos novos enólogos, estes voltam às castas autóctones, fugindo do modelo mais concentrado e maduro, com um olhar nostálgico para a tipicidade de antes, mas com a sabedoria e técnica de hoje.
 

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