A Wine Detective investiga a 'Cape Connection'

Não sou monárquica, mas quem não percebeu já que a realeza tem um gosto particular por vinhos doces? A rainha Isabel II aprecia um copo de vinho doce alemão ao jantar; Ricardo II da Inglaterra era considerado parcial para com o Moscatel de Setúbal. E, de acordo com o escritor britânico Hugh Johnson, no início do século XIX as cortes europeias preferiam o colheita tardia Moscatel sul-africano Vin de Constance ao Yquem, Tokay ou Madeira.

 


Quando pus a conversa em dia com Marc Kent, da Boekenhoutskloof, o enólogo lembrou-me que Portugal e África do Sul têm muito mais em comum do que o apoio real ao Moscatel doce. Indiscutivelmente, a Companhia de Vinhos Invencível - a sua ‘joint venture’ portuguesa com Rita Marques dos vinhos Conceito - não teria arrancado no século passado, quando a indústria de vinhos de cada um destes países era fortemente influenciada por organismos monopolistas.
Fundada em 1937, a JNV (Junta Nacional do Vinho) supervisionou um programa de cooperitivização que frustrou a ambição e o talento empreendedor no vinho em Portugal. Fundada em 1918, a KWV (Co-operative Wine Growers Association) fixou quotas de produção e os preços da indústria do vinho de Cape Town num efeito semelhante, favorecendo altos rendimentos e a produção a granel (versus produção focada na qualidade em terroirs particulares).
A democracia foi o catalisador da mudança. Permitiu a adesão de Portugal à União Europeia em 1986 e acabou com o estatuto de pária da África do Sul em 1994. À medida que a JNV e o KWV perdiam o seu domínio e os mercados de exportação acenavam, os vitivinicultores focados na qualidade tornaram-se produtores e novos investidores privados entraram no mercado, dando voz à expressão individual e ao terroir. Por outro lado, os negociantes adquiriram vinhas melhores para estudar e aproveitar todo o potencial do solo e da uva. As cooperativas subiram a fasquia ou faliram.


Mais ágeis do que os grandes operadores da indústria, os jovens produtores surgiram durante esta revolução da qualidade, incluindo a Boekenhoutskloof, na África do Sul. Quanto à quantidade, seja no Cabo ou em Portugal, “pouquíssimas marcas alcançaram escala significativa em volume e alcance global”, observa Kent. Quando a Wine Intelligence relatou as marcas de vinho mais poderosas do mundo em abril, Austrália, Chile, Califórnia, França e Espanha ficaram no top 15. As três primeiras - Yellow Tail e Jacob's Creek da Austrália e Casillero del Diablo do Chile - são marcas de commodities de grande volume.
Tendo ingressado na Boekenhoutskloof em 1994 após a formação, Kent conduziu a reviravolta da propriedade negligenciada (as uvas eram vendidas para a cooperativa local) para a produção de vinhos de classe mundial. Agora sócio-gerente e diretor técnico, é considerado um dos operadores mais experientes de Capte Town. “Não sei se sou vendedor, enólogo ou quê, mas adoro construir marcas e desenvolver negócios”, admite. No entanto, duvido que procure atingir os números da Yellow Tail. Como um prestigiado produtor boutique de Barossa disse recentemente, quanto mais se ganha, mais se trabalha para vender e mais margem é cedida. “O nosso conceito é fazer o melhor vinho que pudermos, cobrar um preço adequado e esperar que as pessoas nos acompanhem ao longo da jornada”, disse Allister Ashmead, da Elderton Estate.

Da mesma forma, hiperconsciente da jornada do consumidor e da afirmação da lealdade, a filosofia de Kent gira em torno de “propostas de valor em todos os níveis de preço”. “Não estou interessado em fazer um rótulo‘ Marc Kent ’ou vinhos de 100 pontos”, acrescenta. O rótulo de variedade única Porcupine Ridge da Boekenhoutskloof esbarra nas prateleiras dos supermercados com os Yellow Tail, Jacob’s Creek e Casillero del Diablo. A Wolftrap oferece aos comerciantes de vinho independentes combinações inovadoras de Rhône com um toque Cape. Por cerca de £35 e £20, respetivamente, o preço do icónico Syrah de Boekenhoutskloof e do tinto de culto The Chocolate Block quase não aumentou em relação aos pares australianos desde que os vendia na Oddbins há 17 anos.
Com marketing inteligente (o rótulo, caixas modeladas em pedaços de chocolate, produção limitada), a colheita inaugural de 2002 do The Chocolate Block voou porta fora. Embora a Oddbins tivesse o direito exclusivo de vender o primeiro lançamento, Kent fechou o melhor negócio, garantindo os direitos do nome The Chocolate Block (que havia sido sugerido por um comprador da Oddbins).


O Chocolate Block – o lote original do Rhône de Boekenhoutskloof com um toque Cape - capturou a imaginação como nenhum outro tinto premium Cape. Desde 2002, a produção disparou de 15 para 2.982 barricas em 2020, após investimentos em vinhas e adega. “Poderíamos duplicar as vendas, mas recusamo-nos a comprometer a qualidade”, diz Kent.
Justificadamente, o enólogo está imensamente orgulhoso de o The Chocolate Block ter-se tornado um fiel para o vinho sul-africano premium em todo o mundo. As pessoas já não compram África do Sul, compram The Chocolate Block e, em seguida, descobrem a África do Sul, afirma sobre a marca que traz celebridades ‘lista A’ à porta da Boekenhoutskloof, incluindo Bono e Hilary Swank. Como os vinhos de nicho necessariamente carecem do mesmo alcance, Kent acredita que “a África do Sul precisa de mais marcas com preços premium e com alguma escala”. O mesmo é verdade para Portugal.


Quase na mesma faixa de preço que o The Chocolate Block, Kent e Marques podem emular este sucesso com o tinto do Douro, o Invincible Número Dois da Companhia de Vinhos Invencível? Ambos os produtores desenvolveram rótulos e histórias de fundo marcantes por conta própria. Juntos, serão invencíveis? O tempo o dirá, mas os primeiros sinais são bons. A Companhia de Vinhos Invencível tem marca e comunicação fortes (nome, rótulos, portal) e já está bem representada nos principais retalhistas do Reino Unido. Com base na experiência de Boekenhoutskloof, os dois estão a renovar uma pequena adega antiga em Casais do Douro. “Precisávamos realmente de uma casa para a marca”, explica Kent.
Kent e Marques também lançaram um Vinho Verde seco, denominado ‘Natural Mystic’, em homenagem a uma canção de Bob Marley and the Wailers. Kent, um fã de Vinho Verde e Riesling, vê paralelos entre os dois, o que me leva a refletir se Natural Mystic é um substituto para o Riesling da rainha… O mundo precisa de acordar para estes vinhos, insiste. O Vinho Verde tem certamente vindo a impressionar. Como Marley canta, “[T]here's a natural mystic blowin' through the air, If you listen carefully now you will hear.”
 

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