A Wine Detective investiga a enologia do século XXI

Se alguém me pedir para descrever em três palavras o panorama atual do setor do vinho em Portugal, a minha resposta é “dinâmica e diversa”. A faceta mais óbvia desta diversidade são as 250 (e a contar…) castas autóctones de Portugal. É magnético - um íman - para ‘Portu-geeks’ (uma palavra que acabei de inventar para rotular os entusiastas como eu). No entanto, ultimamente, o absoluto dinamismo da cena do vinho em Portugal voltou à casa de partida. Em parte por causa de um antigo livro sobre vinhos publicado em 1964.
Permitam-me partilhar algumas passagens de “The World of Wines”, de Creighton Churchill (filho do outro Winston Churchill, o romancista americano). Segundo o autor, “talvez o mais intrigante sobre a produção de vinho em Portugal e Espanha no nosso tempo é que a modernidade quase não chegou”. Churchill menciona uvas que viajam da vinha às cubas em carroças de boi, “com rodas de madeira maciça e eixos que rangem, de desenho inalterado desde os tempos romanos”.
Sobre o processo de vinificação, o autor observa que as uvas costumam ser pisadas a pé. O vinho jovem é “rude e geralmente desagradável - sobrecarregado de tanino e ácidos”, escreve, porque apenas um pequeno grupo de produtores portugueses utiliza “aquela geringonça nova usada hoje em toda a maior parte do mundo vitivinícola - o ‘éggrapoir’ [desengaçador]”.


Quando Churchill fala do produto final, comenta que, “ao contrário dos vinhos franceses ou alemães, os melhores de Portugal quase nunca estão associados a uma vinha (quinta), mas carregam uma designação regional ou marca”. As suas recomendações refletem-no. No Douro, enumera apenas um vinho tinto (Imperial Evel) e, para minha surpresa, cinco vinhos brancos (Granjdó, Planalto, Campo Grande, Grão Vasco Branco e Ermida).
Claro que, desde a década de 1960, Portugal deu grandes passos. Os vinhos das marcas que negoceiam em volume - blends multi-quinta / multi-produtores - melhorias na viticultura e tecnologia (especialmente a chegada do desengaçador e os tanques de temperatura controlada) têm taninos e acidez moderados, elevando a qualidade e acessibilidade dos vinhos jovens. A pequena produção e os preços mais elevados dos vinhos de quinta permitiram ao crescente número de produtores (vignerons) de Portugal ‘esbanjar’ cuidados e atenção às vinhas individuais de maior carácter e mérito. À procura de uma fatia do mercado, os ‘Port shippers’ também se tornaram produtores. No momento em que escrevo esta coluna, a Niepoort anunciou o lançamento de uma nova série de referências oriundas de parcelas únicas desenhadas para ombrearem com os grandes ‘single vineyard’ do mundo.


A grande mudança

Hoje, é justo dizer que a tese de Churchill pode ser contrariada, porque o melhor de Portugal é muitas vezes associado a uma quinta. Essa foi a grande mudança em 60 anos, levada a cabo pelos progressistas do século XXI. E, se nos ativermos à evolução deste século, é impressionante ver quantas marcas e rótulos dinâmicos do milénio figuram entre os melhores de Portugal. A Wine & Soul e a marca homónima de Filipa Pato cumprem 20 anos este ano; a marca Mirabilis, ícone da Quinta Nova de Nossa Senhora do Carmo, acaba de comemorar o seu 10º aniversário.
Apoiados por talentos precoces, estas jovens marcas do século XXI crescem em força. Quando entrevistei Sandra Tavares da Silva e Jorge Serôdio Borges para um artigo da revista Decanter sobre os ‘casais poderosos’ de Portugal, reganhei um respeito ainda mais profundo por eles. Os enólogos encontraram-se pela primeira vez no Douro em 1999, quando os vinhos DOC Douro começavam a chamar a atenção. Sandra e Jorge fundaram a Wine & Soul em 2001, casando-se no mesmo ano. Borges brincou: "Tudo aconteceu muito rápido, foi por isso que tivemos gémeos!"


Formado recentemente, o casal começou sem dinheiro e sem vinhas. Ou seja, eram livres de criar uma ideia para cada vinho que pretendiam fazer antes de procurarem as vinhas, disse Sandra. Compraram a vinha do Pintas em 2001 com a ajuda de um empréstimo bancário e, segundo Serôdio Borges, nunca pensaram desistir do emprego a tempo inteiro na produção de vinho para terceiros. Precisavam dessa receita para reinvestir na Wine & Soul, que cresceu organicamente. “Não fizemos um plano”, disse Serôdio Borges mas, tal como os outros casais poderosos que entrevistei - Filipa Pato e William Wouters e Catarina Vieira e Pedro Ribeiro, da Herdade do Rocim - o compromisso com a excelência e a mentalidade de crescimento é inabalável. Resumindo, Sandra Tavares da Silva explicou que, “a cada ano, queremos ser melhores, com mais requinte, com mais riqueza. Fazer vinho é um processo tão longo. Vinte anos depois, estamos muito mais confiantes em algumas decisões porque conhecemos melhor cada vinha e a forma como trabalhamos hoje é muito diferente de quando éramos mais jovens. O que procuramos agora é diferente”.


Embora também tenha evoluído, sente-se que o dinheiro não era problema para a Quinta Nova e que havia definitivamente um masterplan para o Mirabilis. Falando no decurso da vertical do 10º aniversário [ver reportagem nestas páginas], o objetivo original de Luísa Amorim era fazer “um vinho do Douro para o mundo” ou, como o seu enólogo-mor, Jorge Alves, disse, “um estilo mais internacional”. “Além da vontade, precisávamos de conhecimento”, pelo que Luísa e a sua equipa viajaram pela Borgonha, Bordéus, Argentina, Chile, Itália e Espanha. Determinados a evitar sabores e aromas excessivos de carvalho para o branco Mirabilis e conseguir melhor expressar o terroir, passaram muito tempo na Borgonha a aprender sobre técnicas de barril, terroir e micro-terroirs. Nos tintos, os pequenos lotes de ensaios no ‘atelier de vinho’ da Quinta Nova permitiram “afinar, com os melhores barris e processos enológicos”, disse Alves. Mas se Luísa Amorim não via originalmente o Mirabilis tinto como um vinho de terroir, “o terroir tornou-se a chave”, disse (agora o vinho é proveniente de parcelas monovarietais mais pequenas, com Tinta Amarela a emprestar “uma nota icónica séria”, disse Alves). Esta mudança, que assume o património genético - a biologia do Douro… - é, diz Luísa Amorim, a herança do Mirabilis. “Temos que ser diferentes. Temos que sonhar para ir mais longe. Temos que criar algo extraordinário e único”, afirmou.


Fechando o círculo, não creio que Max Graham seja parente de Creighton Churchill, embora a sua mãe seja a Churchill que deu nome ao negócio de família - a Churchill’s. Com sede em Londres, Graham é o fundador do Bar Douro, que tem dois restaurantes com mais de 100 vinhos portugueses e presença crescente no retalho online. Refletindo sobre a exploração intensiva de parcelas, castas e terroir específicas do Douro nestes últimos 20 anos, afirma que “estamos a começar a vê-lo noutras regiões. Em 10 anos, estes simplesmente vão desdobrar-se perante os nossos olhos”. Com todos os motivos para ficar atenta ao cenário dinâmico do vinho em Portugal, estou ansiosa para retomar a minha viagem de descoberta ao redor de Portugal assim que a pandemia ceder.

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