Andamos a brincar com o fogo?

Dados internacionais indicam que a vinha não chega a representar 3% da área de cultivo mundial mas recebe 20% de todos os tratamentos antifúngicos. Os dois caminhos possíveis aparentam estar identificados: apostar nas castas indígenas, procurando selecionar os clones mais resistentes face às condicionantes climáticas atuais e às doenças da vinha; ou avançar no cruzamento com híbridos americanos, incomparavelmente mais resistentes a problemas fitossanitários.

 


A Comissão Europeia (CE) anunciou nas últimas semanas que pretende banir a venda de veículos com motor de combustão a partir de 2035. A ideia, que será ainda debatida pelos países-membros, e que até ser posta em prática merecerá certamente muita discussão, é reduzir as emissões de CO2 em 55% até 2030, ou seja, os carros com motores a gasolina, diesel e mesmo os híbridos plug-in ficarão numa espécie de lista negra a abater.
A CE quer ver a União Europeia (UE) a liderar o mundo nesta área, mas os construtores automóveis já fizeram saber que a coisa não será possível de se fazer de um dia para o outro, ameaçando estudar os mercados, individualmente, para adaptar a oferta de produtos ao perfil do consumidor. Pois bem, o consumidor queixa-se de questões práticas e perfeitamente compreensíveis como sejam o custo muito mais elevado de compra de veículos elétricos, a escassez de postos de recarregamento nas principais cidades, o aumento da fatura energética caseira ou a autonomia ainda escassa que a generalidade desses modelos oferece.


Entre o papel e a prática há frequentemente uma grande distância, mas seria tapar o sol com a peneira ignorar que esse dia chegará, seja em 2035 ou um pouco mais à frente. Os próprios construtores automóveis reconhecem que o mercado dos veículos mais amigos do ambiente está em crescimento, muitos já não fabricam modelos novos movidos a gasóleo, uns quantos esgrimem argumentos publicitários sobre as vantagens competitivas do que produzem, outros sujeitam-se a coimas significativas pelo não cumprimento das fichas técnicas de emissões poluentes estipuladas.


A tecnologia tenta colar-se a um estilo de vida ambientalmente mais responsável e palavras como sustentabilidade ou expressões como pegada de carbono são hoje tão pertinentes quanto chavões. No entanto, parece-me evidente que o futuro trará questões de ética ambiental como nunca outro tempo levantara.
A exemplo de qualquer outra indústria, o vinho também obriga a reflexões ambientais.
Independentemente da dimensão dos projetos questionam-se práticas de viticultura, de vinificação, de engarrafamento, de transporte, de expedição. Uma viticultura dita “convencional” mas consciente é ou não mais poluente do que aquela que apenas reclama usar cobre e enxofre? As garrafas de vidro mais pesadas devem ou não ser banidas?


Debruço-me sobre a viticultura, até porque as alterações climáticas mexeram bastante com o xadrez habitual. Regiões historicamente muito frias, com problemas sistemáticos de maturação plena de uvas e ausência de teores prováveis de álcool aceitáveis, são hoje berço de alguns dos mais excitantes e aclamados vinhos da atualidade – veja-se o sul de Inglaterra. Pelo contrário, as regiões de clima habitualmente mais quente debatem-se com sérios problemas de recursos hídricos e de sobrevivência das plantas – atentemos às preocupações das zonas mais continentais de Espanha. Pelo meio, as dores de cabeça provocadas por episódios frequentes de intempéries ou fenómenos recorrentes – na Borgonha e no Vale do Loire alguns produtores terão, em 2021, metade da produção do ano anterior em consequências das severas geadas; a Alemanha e a Áustria debateram-se com intensas cheias que inundaram adegas; a Alemanha enfrenta problemas que a têm impedido de atingir as quantidades habituais de ice wine devido aos verões anormalmente escaldantes e aos outonos mais brandos; a Califórnia tem visto manchas de vinhas e dezenas de edifícios reduzidos a cinzas na sequência de incêndios de proporções impensáveis. 

Híbridos ou novos clones?

Dados internacionais indicam que a vinha não chega a representar 3% da área de cultivo mundial mas recebe 20% de todos os tratamentos antifúngicos. E na Europa?
“A viticultura ocupa apenas 4% da superfície agrícola da UE mas utiliza mais de 50% dos pesticidas. Isso não é mais aceite, precisamos de técnicas e genótipos mais resistentes ao míldio e ao oídio”, advoga Jörg Böhm.
Alemão radicado em Portugal há vários anos, Jörg Böhm, cujo percurso de vida detalhamos adiante nesta edição, na reportagem realizada na Quinta da Plansel, é dos mais respeitados viveiristas a nível internacional. Tem encetado diferentes estudos de apuro de clones de castas, mas é a visão abrangente e inteligente que partilha que me parece exigir reflexão profunda.


“O Alentejo e o Algarve são as zonas mais meridionais para produção de vinho de qualidade. Mais a sul de nós não existem regiões com vinhos de qualidade. Ou fazemos alguma coisa ou dentro de 30 anos teremos uma catástrofe, com zonas sem acesso a água. É necessário fazer a zonagem e perceber quais os clones de cada casta que conseguirão reagir melhor a essas mudanças de clima”, alerta.
O debate tem que ser feito, não apenas em Portugal ou em Espanha mas a nível europeu. Os dois caminhos possíveis aparentam estar identificados: continuar a aposta nas castas indígenas, procurando selecionar os clones mais resistentes face às condicionantes climáticas atuais e às doenças da vinha; ou avançar no cruzamento com híbridos americanos, incomparavelmente mais resistentes a problemas fitossanitários.


“Os híbridos são ainda um tabu total”, considera Böhm. “Mas acredito que vamos ter novos porta-enxertos, que resistam aos fungos, à falta de água e a temperaturas mais elevadas”, antevê.
Os resultados dos ensaios das instituições de investigação e de ensino nestas áreas terão que ser difundidos de modo mais eficaz e abrangente. Os viticultores e produtores que também têm ensaiado novos clones e formas de fazer têm a obrigação moral de partilhar esse conhecimento à escala regional ou nacional, na medida em que é a sustentabilidade de toda uma indústria que poderá estar em causa.


Ao longo da história, o setor tem dados mostras de uma resiliência bem acima da média, a que se junta uma flexibilidade apreciável face às necessidades de mudança, incluindo as mais bruscas. Por isso mesmo não há motivos para prorrogar este debate que tem que ser verdadeiramente feito porque amanhã poderá ser tarde demais. E não um debate estéril ou só para a Comunicação Social assistir; um debate que tenha aplicabilidade prática, que mostre o que as universidades e os institutos estão a fazer, quais as conclusões que já alcançaram; um debate que exponha, sem medos, o que as empresas mais atentas à investigação estão a realizar. 

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