Dê-lhes uma oportunidade. Eles merecem.

Todo o português que consome vinho tem uma espécie de dever moral de não só beber com regularidade os fortificados nacionais mas também de os saber minimamente traduzir a quem entra lá em casa. Isso não se aprende numa sessão de formação ou numa prova de vinhos; isso é cultural, uma mensagem a transmitir de geração em geração, sem gaps geracionais que possam perigar um património invejável – de vinhos, de territórios, de formas de fazer, de antepassados.

 

Se o consumidor português soubesse tanto sobre Vinho do Porto quanto o consumidor dinamarquês estaríamos bem melhor. Pode parecer heresia ou provocação mas não o é. Caro leitor, acredite, é tão-somente uma constatação.
É uma delícia conversar com dinamarqueses acerca de Vinho do Porto. O conhecimento que apresentam e, sobretudo, a curiosidade que manifestam sobre o tema, entusiasmam qualquer português que goste do que está a falar.
Na Dinamarca, a exemplo de alguns outros países nórdicos e centro-europeus e outros estados norte-americanos menos óbvios, por exemplo, é comum existirem os wine clubs, clubes de vinho que reúnem conjuntos mais ou menos alargados de entusiastas. Reúnem-se a pretexto de uma paixão comum, em grupo procuram vivenciar novas experiências, a título pessoal constituem garrafeiras que impressionam. Admitamos, este colecionismo até que é um bom vício.


Dos maiores desafios que hoje se coloca a um representante comercial de uma casa de Vinho do Porto é, precisamente, enfrentar uma plateia desses entusiastas. O blá, blá comercial de um certo quanto basta pode até funcionar nalguns mercados mas não no dinamarquês, em particular se o assunto for Vinho do Porto. Os enólogos estão, por isso, a ser cada vez mais solicitados para darem a cara e enfrentarem autênticos road-shows pela fria Dinamarca, mas o calor humano com que são recebidos em cada sessão rapidamente os anima e faz compensar a viagem.


Quando estão entre nós, a mera visita turística por uma das muitas caves não chega. Quase sempre necessitam de um programa feito à medida, que frequentemente integra uma incursão à origem – o Douro Vinhateiro – e/ou uma prova mais especial de vinhos. Sim, porque estas senhoras e senhores já provaram e conhecem muito, estão num patamar de exigência significativo, querem ser surpreendidos com raridades e ter acesso a novidades que ainda não conseguiram conhecer.
Esta é outra vantagem deste tipo de consumidor. Valoriza as chamadas categorias especiais e percebe que um determinado vinho, por todo o trabalho e tempo a que obrigou, terá que ter um preço mais elevado (sendo que, para muitos deles, continuam a ser uma pechincha de vinhos).
Tenho dado por mim a pensar várias vezes acerca do que temos ou não aprendido com estes consumidores. Lembro-me, ao escrever esta crónica, de uma conversa mantida com um ex-juiz do Texas, nos Estados Unidos, que em visita a Portugal a pretexto do Vinho do Porto desfiava as incontáveis e preciosas garrafas de Vintage e de Colheitas que possuía na garrafeira pessoal. Mais curioso ainda, apesar da idade já avançada não se mostrava minimamente preocupado pelo facto de os filhos e netos mostrarem pouco ou mesmo nenhum interesse sobre a matéria. Trata-se de um gozo pessoal, de uma motivação extra para encarar um dia de cada vez. Quem vier a seguir que beba ou coloque em leilão a coleção que restar…

Não só no Natal…

O português gosta de bater no peito e propalar aos quatro ventos que o Vinho do Porto é de Portugal. Faz muitíssimo bem, aliás, nunca é demais sublinhá-lo. Mas, convenhamos, quantos portugueses distinguem um Vintage de um Colheita, um Vintage de um Porto 20 Anos, um Vintage de um LBV?
Como português também bato no peito e digo fora do meu país que Portugal é o líder incontestado dos vinhos fortificados à escala planetária. Exagero? Nem um pouco.
Temos o Vinho do Porto, o Vinho Madeira, o Carcavelos, os Moscatéis fortificados de Setúbal e do Douro. Temos até, por muito que nos esqueçamos, a aguardente da Lourinhã, uma das únicas três DOC europeias de aguardente, ao lado das francesas Armagnac e Cognac.


Voltamos ao mesmo. Quantos estão a par do que é um Frasqueira da Madeira? Quantos portugueses já provaram um Carcavelos? Quantos portugueses conseguem explicar as diferenças entre um Moscatel de Setúbal e um Moscatel do Douro? Bom, e é bem provável que por muitas passagens que tenha feito pela Lourinhã o consumidor médio não faça ideia que por lá se faz a tal aguardente.
Durante anos insistimos que faltava comunicação e informação. E faltava. O cenário entretanto alterou-se, a quantidade de informação disponível e o acesso multiplataforma a essa informação democratizou aquilo que ao longo de demasiado tempo pareceu somente um feudo informativo de especialistas ou pseudo-intelectuais do vinho.
Continua a ser necessário educar, formar e sensibilizar os consumidores portugueses acerca do vinho, mas é igualmente importante que haja uma clara demonstração de interesse ou, no mínimo, uma predisposição para aprender mais acerca do que é tão nosso e que tantos outros tão bem valorizam.


Os vinhos fortificados não são bombas de álcool e de açúcar nem se resumem às opções das prateleiras de um supermercado. Muito menos podem ser reduzidos à imagem de um copo na mão de uma qualquer rainha de Inglaterra ou da avozinha da família. Os fortificados são vinhos tão válidos quanto todos os outros, de inúmeros perfis e categorias, com um historial incrível que merece ser descoberto. 
De algum modo, todo o português que consome vinho tem uma espécie de dever moral de não só beber com regularidade os fortificados nacionais mas também de os saber minimamente traduzir a quem entra lá em casa. Isso não se aprende numa sessão de formação ou numa prova de vinhos; isso é cultural, uma mensagem a transmitir de geração em geração, sem gaps geracionais que possam perigar um património invejável – de vinhos, de territórios, de formas de fazer, de antepassados.
Na vizinha Espanha, depois de anos mais sombrios, Jerez percebeu que tem de voltar a gritar pelo mundo que ali, no Sul, se fazem alguns dos melhores fortificados do mundo. Pensaram e agiram, desdobrando-se em múltiplas ações junto do público consumidor e dos sommeliers, demonstrando que um Jerez é uma opção a ter em conta em diferentes contextos gastronómicos. É um caminho possível e, nos fortificados, seguir um caminho é sempre importante.


Na mesa de Natal não se esqueça de um bom Porto, um Madeira, um Carcavelos ou um Moscatel. E uma Lourinhã pode ajudar no final. Mas, compete-lhe também muito a si, caro leitor, ter a lucidez de perceber que estes vinhos não merecem apenas determinadas datas, podem/devem ser uma opção recorrente. Dê-lhes uma oportunidade. Eles merecem.

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