Memória do Foie Gras

O politicamente correto está a entrar, paulatinamente, no mundo da gastronomia. Nova Iorque publicou uma lei que proíbe o foi gras. Estaremos condenados a guardar a sua memória, em vez de desfrutá-lo?

 

Estava a almoçar há algumas semanas num restaurante em Avilés, no norte de Espanha. Um local que me agrada especialmente. Não é um espaço de topo, nem particularmente famoso, mas o seu cozinheiro faz tudo muito bem. Pontos perfeitos e fundos impecáveis. Dentro do notável nível geral, uma das coisas que mais gostei foi um foie gras curado com milho em texturas. O toque adocicado do cereal e o ponto cítrico do creme base vão muito bem com o fígado. Gosto que os cozinheiros, seja qual a liga em que jogam, trabalhem o foie gras. Enquanto saboreava este prato, pensei que posso ter poucas oportunidades de comer um produto que adoro e que está num perigo preocupante.


Não restam dúvidas que o foie gras, fresco ou em patés, é uma das maiores iguarias que a gastronomia oferece, mas está a passar por momentos difíceis. O politicamente correto também chegou ao mundo da culinária e os movimentos de defesa dos animais incrementaram a cruzada contra esse fígado gordo que vem dos gansos ou dos patos e que há séculos delicia os mais refinados gastrónomos. Uma das últimas medidas, por enquanto, foi tomada pela Câmara Municipal de Nova Iorque, quando proibiu a comercialização de foie gras em toda a cidade. A medida, a ser aplicada a partir de 2022, veio reabrir uma polémica amarga que começou nos Estados Unidos em 2004, quando o estado da Califórnia aprovou a primeira lei que proibia a presença desses fígados em lojas e restaurantes. Os avicultores americanos e canadenses e alguns restaurantes travaram uma batalha legal em sua defesa, batalha que terminou quando o Supremo Tribunal dos Estados Unidos manteve a lei da Califórnia. No caso de Nova Iorque, a partir deste ano, qualquer estabelecimento que comercialize ou mesmo armazene este produto estará exposto a pesadas multas, entre 500 e 2.000 dólares, que podem ser renovadas a cada 24 horas. Em outras cidades como Chicago, a proibição também foi aprovada em 2006, mas a pressão popular obrigou a revogá-la dois anos depois. Curiosamente, o estado de Nova Iorque é o lar de alguns dos mais importantes produtores de foie gras dos Estados Unidos, como Hudson Valley e La Belle Farms, que já entraram com uma ação legal para recorrer de uma lei que irá prejudicá-los significativamente.

A guerra do foie gras

A guerra do foie gras responde à acusação de associações de defesa dos animais de que existe crueldade para com os animais no modo de obtê-lo. É verdade que, em alguns casos, nem todos, para que os fígados se desenvolvam, gansos e patos são alimentados à força com milho durante alguns dias [N.D.E. Num processo conhecido como ‘gavage’]. Em duas ou três semanas, o fígado, que pesa inicialmente pouco mais de 60 gramas, vai pesar mais de meio quilo. Estas aves têm a capacidade natural de acumular gordura no fígado, o que lhes permite realizar longas migrações. Foi no antigo Egipto que se colocou em prática este sistema de engorda artificial de animais, sistema que foi posteriormente adotado pelos gregos e, sobretudo, pelos romanos, grandes consumidores. Mas, sem dúvida, França foi o país que mais soube aproveitar o foie gras. Foi lá que, ainda no século XVIII, começou a ser produzido o atual paté de fígado. Ali, a trufa foi incorporada ao paté, numa combinação gloriosa. E, numa invejável defesa de um dos seus produtos mais emblemáticos, já em 2006 as autoridades francesas proclamaram-no como património gastronómico e cultural protegido. Em França, cerca de 27.000 toneladas de fígados gordos são produzidas por ano, nada menos que 75% do total mundial. Dessa quantidade, dois terços são exportados para todo o mundo. Para mim, os melhores provêm das Landes e da Alsácia.


Alguns países europeus, como a Grã-Bretanha, têm leis restritivas que proíbem a produção no seu território, mas não o consumo. No entanto, a Europa produz 95% do foie gras feito no mundo. Depois de França, Hungria e Bulgária são os maiores produtores. Em Espanha, quarto lugar da lista, também se produz bom foie gras, sobretudo em Navarra e na Catalunha, embora em menor quantidade do que nos três primeiros da lista. No entanto, é o segundo país do mundo com os maiores índices de consumo, principalmente fresco. Mas a ameaça está latente. Nas últimas semanas, alguns grupos políticos e de defesa dos direitos já abriram o debate, solicitando ao Senado a proibição da produção. De momento, o Governo espanhol afirmou que não propõe esta proibição por “razões socioeconómicas”. Segundo o executivo, “a produção de foie gras ajuda a garantir o tecido social em áreas despovoadas da geografia espanhola”. Portanto, parece que por enquanto essa proibição não vai acontecer, mas o debate já está levantado, pelo que talvez tenhamos pouco tempo para desfrutar deste nobre produto primoroso.


Por sorte estou mais velho, porque não gostaria de viver o momento em que o foie gras, em vez de no prato, que é onde deveria estar, quede-se apenas na nossa memória. A memória do académico e impecável foie gras ao sal do grande Santi Santamaría, infelizmente desaparecido; dos tratamentos subtis que Josean Alija lhe dá no Nerúa, em Bilbao; da elegância e classicismo daquele que Hilario Arbelaitz prepara em caldo de grão de bico no Zuberoa, em Oyarzun (Guipúzcoa) ou, simplesmente, a memória do foie gras mi-cuit e um contraponto doce num copo de um bom Sauternes, em qualquer bistrot francês. Em Portugal também comi excelentes foie gras. Por exemplo, no Belcanto de José Avillez, no Eleven do mestre Joachim Koerper, que o tem sempre nos seus menus, ou no The Yeatman de Ricardo Costa, no Porto, onde há pouco tempo experimentei um excelente, com atum, iogurte e romã. Mas o melhor de que me recordo de quantos provei em terras lusas foi o magnífico foie gras schnitzel com puré de pêra, beterraba e frutos secos, preparado por Henrique Sá Pessoa no Alma. E, se são amantes, procurem o delicioso livro “Foie Gras”, editado pelo restaurante Mugaritz de Andoni Luis Adúriz, que faz um tour pela sua história e traz receitas clássicas atualizadas. Podem encontrá-lo no site do restaurante.

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