O jornalismo de vinhos antes de Parker

Há um mundo do jornalismo e crítica especializada em vinhos antes e após o advento da era Parker, de cuja escola continuamos a beneficiar.

 

O vinho, tanto frágil e voluptuoso como amplamente consumido, tem historicamente necessitado de divulgadores, seja com a ênfase poética dos escritores, com o testemunho de viajantes antigos, com o rigor científico de enólogos e com a energia fenícia dos mercadores. No entanto, em 1977 interessava-me mais pelo jornalismo do vinho, tanto informativo como crítico, lendo jornais e revistas britânicos, americanos e, sobretudo, franceses.
Num artigo que escrevi em 1984, descrevi o panorama mundial dos escritores e jornalistas que mais se destacavam naquela época. Nesse artigo apontava Jancis Robinson como pertencendo à “nova leva” de escritores, num ano em que precisamente Robert Parker abandona a sua profissão de advogado para se dedicar inteiramente ao vinho com um boletim simples e anódino, com a capa a uma única coluna, a Wine Advocate, que havia criado em 1978. No entanto, era pouco conhecido além do setor da distribuição dos EUA.

A Wine Spectator, fundada em 1976, era então um tablóide a preto e branco de informações nacionais sobre vinhos para consumidores americanos. Curiosamente, nessas edições as pontuações dos vinhos obedeciam à escala 0/20, tal como esta revista, antes de adoptar o atual 50/100 académico. Naqueles anos, o interesse pelas pontuações dos vinhos era menos relevante do que hoje.

Franceses


A França, como berço da enologia contemporânea, instituiu uma linhagem de escritores mais próximos da ciência enológica, mas também daqueles que, por vezes – frívolos, como diriam os estudiosos intransigentes - os grandes gurus da enologia escreviam para o público comum. Naqueles anos, os técnicos franceses começaram a mudar o estilo para uma linguagem mais informativa. Pouco a pouco, livraram-se daquele formalismo que rodeava a ciência das Universidades de Bordéus e Dijon, porque reconheceram que o seus relatórios deveriam ter apoio no consumidor. Émile Peynaud foi um exemplo claro capaz de sanar as mais preocupantes dúvidas enológicas, educando o neófito e até entrando na gastronomia, com ousadia e muita seriedade. A mesma coisa aconteceu com Jacques Puissais que, do seu ponto de vista em Tours, apressou a agenda de conferências e debates sobre o gosto no vinho e na comida. Ninguém ficou surpreso que um escritor como Alexis Lichine também fosse dono de um castelo em Bordeaux; ou Max Leglise, cujo livrinho simples de introdução à prova era inigualável na época. Um engenheiro agrónomo como Louis Orizet, em colaboração com Max Gerard, ambos com excelente senso literário, escreveram o livro daliniano, os Vinhos de Gala. Quanto aos críticos e escritores Raymond Dumay, Philippe Couderc e Patrick Dussert, são os exemplos mais eloquentes de como viajar pelo país em busca do ‘château’ perdido. Alguns jornalistas, como o cáustico Pierre Marie Doutrelant, chegaram a ganhar a qualificação de ‘persona non grata’ em algumas ‘apellations’. Naqueles anos, Michel Bettane era apenas um editor desconhecido de La Revue du Vin de France, enquanto Odette Kahn era a editora, uma mulher rigorosa até o dia da sua morte, em 1982. Todos eles, técnicos e jornalistas, não puderam evitar o seu chauvinismo francês evidente; além dos vinhos franceses: o dilúvio. No entanto, aceitam que os livros de autores anglo-saxões que escrevem sobre vinhos franceses acabem sendo traduzidos para o seu idioma. Será que estes cativam mais o leitor francês com o estilo britânico mais direto?

Ingleses e americanos

Não é absurdo que os escritores mais interessantes e completos sempre tenham sido os ingleses. Dos viajantes impenitentes dos séculos XVIII e XIX, aos Masters of Wine do século XX, exploraram o mundo do vinho com a precisão exigida pela rica burguesia britânica que bebia vinhos. Excelentes escritores ‘off-road’ surgiram das grandes e históricas casas importadoras, focando sobretudo no capítulo mais atraente para os fãs: as referências de marcas, preços e países. Alguns como Hugh Johnson, que começou de uma forma um tanto pitoresca com a jardinagem, marcou um marco com a edição de 1971 do seu Atlas Mundial do Vinho. Durante essa década e início dos anos oitenta, foi a bíblia mundial do género.

Naqueles anos, começaram a aparecer escritores e jornalistas britânicos especializados em vinhos por países. Os vinhos espanhóis eram conhecidos graças à pena de Jan Read, enquanto para os vinhos franceses existia Pamela Vandyke Price. Uma senhora que, diz-se, ao entrar em Mouton Rothschild, fez as portas desabarem e os cães quedarem-se em silêncio. Com uma coluna semanal no Daily Telegraph - uma escola bem antiga – Pamela tinha o dom inglês para comunicar. Isso ficou bem claro no seu livro The Taste of Wine, um exemplo de como ainda existem tratamentos inéditos de vinhos. Edmund Penning Rowsell também foi um clássico de Bordéus. John Arlott, do jornal liberal londrino The Guardian, escreveu sobre vinho e, claro, críquete. Julien Jeff foi o autor do melhor livro sobre xerez. Steven Spurrier, recentemente falecido, projetou o vinho francês nos Estados Unidos com a fatalidade de organizar em 1976 um concurso entre vinhos californianos e franceses, vencendo inesperadamente os americanos. Este evento rendeu-lhe uma fama um tanto agridoce. Steven e Michael Broadbent representavam a imagem mais britânica do provador-escritor de vinhos.

Naqueles anos, surgia a nova geração de jovens Masters of Wine, como Jancis Robinson, que já tinha o seu próprio programa de televisão. Também Rosalind Cooper deixou sua marca todas as semanas no Sunday Times. Michael Broadbent tinha a síntese de um provador, longe de ser fátuo, com palavras fáceis, sensuais, sem retórica inútil, ajustado e com talento para fazer do vinho algo divertido e útil. Um carácter que cresceu na descrição dos grandes Vinhos do Porto.
Nos Estados Unidos não faltaram críticos e consultores de vinhos como Robert Finnigan e J.Thouren, com John Winroth que escreveu sobre França para os americanos e sobre a América para os franceses, ou um comerciante de vinhos, colaborador do American Gourmet: Gerald Ashe. Havia também guias para conhecedores, como o de Charles Olken, ou para snobes, como o de Leonard S. Bernstein (não o famoso compositor), um autor mordaz e espirituoso. Mesmo na África do Sul, Daves Hughes mostra o rosto barbudo e patriarcal nas melhores provas. Uma autoridade que escreveu o melhor livro sobre vinhos sul-africanos. Outra figura respeitada em Inglaterra, o enólogo e empresário australiano James Halliday, começou a emergir no início dos anos 80 como o principal escritor de vinhos da Austrália.

Um mundo que fez escola e doutrina, de cujos ensinamentos ainda beneficiamos.
 

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