Precisará o vinho de se modernizar?

Estamos a assistir à oscilação do pêndulo no sentido anterior. Não é tão simples dividir os produtores em dois grupos: modernos vs. tradicionais. 

 

Uma das discussões frequentes no mundo do vinho é o conflito entre tradição e modernidade. O vinho está enraizado na tradição, especialmente em países onde é feito há centenas ou mesmo milhares de anos.
Mas a popularidade recente do vinho em países onde este não era a bebida tradicional mudou bastante o cenário. Por causa da procura dos mercados de exportação, a ligação entre o lugar e o vinho foi enfraquecida, pelo menos em alguns segmentos de mercado.


Em muitas regiões, tornou-se possível separar os produtores de vinho em diferentes grupos: aqueles mais tradicionais, que fazem vinhos da forma que se faz há muito tempo, e aqueles que se afirmam modernos, que procuram implementar a ciência e a tecnologia para produzir vinhos novos, mais internacionais, com sabores bastante diferentes dos vinhos antigos.
Isso fez emergir uma narrativa simples: quem é moderno ou tradicional? Criou igualmente muitos conflitos. E muito disso foi desnecessário.


Tomemos Portugal como exemplo. Quando vim pela primeira vez a Portugal, em meados da década de 1990, o panorama do vinho era bastante diferente do atual. Tínhamos o Vinho do Porto, que era visto como uma bebida muito tradicional, assim como o Vinho Madeira. Embora a fortificação não seja tão antiga como muitas pessoas pensam, o Vinho do Porto como o conhecemos hoje tem algumas centenas de anos de história. Não tem havido muito debate sobre a modernização do Porto ou do Madeira, porque estes têm tido um relativo sucesso e a sua imagem tradicional tem feito parte da sua força. A única mudança foi o aumento na qualidade do Porto Ruby mais barato, que foi bastante impressionante. Mas o Porto e o Madeira permanecem fiéis à sua tradição.


Os vinhos tranquilos portugueses, no entanto, mudaram dramaticamente. Quase todos eram baratos - e vendiam-se porque eram baratos. Eram rústicos e não muito bem feitos, e apresentavam, frequentemente, sinais de oxidação e acidez volátil. Em meados da década de 1990, alguns dos vinhos de maior sucesso comercial eram feitos por enólogos consultores estrangeiros. Os vinhos mais modernos, bem feitos e limpos, destacaram-se.


Depois veio a revolução do Douro. Aqui a modernização era necessária, mas talvez em alguns casos tenha ido longe demais. A tecnologia moderna de vinificação e o conjunto de ‘truques’ disponibilizados por empresas de produtos enológicos e leveduras significava que, embora os vinhos mais rústicos fossem limpos, muitas vezes eram também ‘maquilhados’.
As uvas que talvez fossem colhidas muito cedo e com maturação variável passaram subitamente a ser colhidas tarde demais. Isso significava um perfil de fruta muito doce, mas também a necessidade de correção na adega porque a acidez era muito baixa e as leveduras – perante teores muito elevados de açúcar no mosto - precisavam de assistência química para completar a fermentação. Em seguida, as barricas de carvalho de pequena dimensão tornaram-se moda, em parte para compensar a estrutura perdida pela vindima tardia.


O resultado desta modernização foram vinhos que, em alguns sentidos, eram ‘melhores’, na medida em que não eram rústicos, diluídos e vegetais. Mas eram anónimos: a fruta doce e o carvalho encobriam qualquer senso de lugar. Os enólogos eliminaram o terroir.
Algo similar sucedeu no Alentejo, no Tejo e até em Lisboa e na Península de Setúbal. Surgiu um novo perfil de vinhos tintos bem feitos, elegantes e deliciosos, que encantariam os clientes dos supermercados tanto no mercado interno como nos mercados de exportação, mas que trocaram a identidade do local pela capacidade de serem bebidos. Sim, a maioria dos vinhos produzidos anteriormente precisava de modernização, mas o pêndulo talvez tenha balançado em demasia.
É preciso dizer que não há nada de mal com vinhos frutados e atraentes. No segmento inferior de mercado, é isso que as pessoas desejam. Só que estes consumidores não estão preparados para pagar muito por esses vinhos; e se uma região abastece esse segmento do mercado, pode ser difícil ter lucro, embora possa vender muita quantidade. E os vinhos densos, ricos e maduros de alta qualidade? Sim, há mercado para estes, mas de repente tivemos uma erupção de tintos do Douro de 50 euros com o mesmo sabor, e nenhum sabia ao Douro. O mercado para este tipo de vinhos é limitado.


Estamos a assistir agora a uma oscilação do pêndulo no sentido anterior. Já não é assim tão simples dividir os produtores em dois grupos: modernos vs. tradicionais. Alguns enquadram-se bem numa dessas categorias, mas muitos não.
Vejamos a Niepoort, por exemplo. Tradicional ou modernista? Enquanto uma das empresas líder na revolução dos vinhos do Douro, a Niepoort foi modernista, mas agora os vinhos são feitos com uma forte referência à tradição, com vinificação em recipientes antigos, como foudres e betão, bem como algumas pequenas barricas de carvalho. Os vinhos mostram uma sensibilidade clássica do Velho Mundo, mas não são nada rústicos. E os vinhos da Niepoort que saem da Quinta de Baixo, na Bairrada, são ultra-tradicionais, mas também bastante modernos, da melhor maneira.


 No Alentejo, existem herdades tradicionais, como o Mouchão, e outras mais modernas, como o Esporão. Mas ambos recentraram-se nos últimos anos. Cortes de Cima costumava ser um exemplo acabado de vinhos modernos de clima quente e estilo internacional mas, nos últimos dois anos, com Anna Jorgensen ao comando, começaram a fazer uma mudança de perfil, regressando da vinificação intervencionista para um trabalho na vinha mais em sintonia com a natureza.
Na Bairrada, Luís Pato foi o principal modernista mas, ao provar os seus vinhos, vemos que ainda são clássicos e mostram sentido de lugar. A filha, Filipa Pato, juntamente com o marido, William Wouters, utilizam vinificações ancestrais (como ânforas de argila) para fazer vinhos que são tudo menos antiquados em estilo. Por falar em argila, tem havido um renascimento dos vinhos de talha no sul do Alentejo, mas a maioria destes são feitos com uma sensibilidade algo moderna, sem sinais de oxidação ou rusticidade e com bela expressão de fruta.


Assim, precisará o vinho de se modernizar? Creio que se modernizou muito, mas essa distinção entre tradicionalistas e modernistas já não é assim tão útil. Ou seja, tudo anda em torno da intenção: quem quiser fazer vinhos que sejam autênticos e que tenham sentido de lugar, pode encontrar um bom caminho apoiando-se nas modernas ferramentas de vinificação, usadas de forma adequada. Quem queira fazer vinhos modernos super-extraídos e maduros, sem qualquer noção de terroir, as mesmas ferramentas ajudá-lo-ão igualmente nesse objetivo.

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