Questões sobre ‘brett’

Depois de aprender a reconhecer a Brettanomyces, é um daqueles defeitos do vinho surpreendentemente comum. Existirá um ponto aceitável de ‘brett’?

 

Como muitos profissionais do vinho, estou constantemente a tentar familiarizar-me com a Brettanomyces. Não é fácil. Esta é a levedura de alteração, ou deterioração, que mais comumente afeta o vinho tinto, conferindo aromas animais, de esterco, fenólicos (pense em pensos rápidos) e couro velho. Depois de aprender a reconhecê-la, é surpreendentemente comum e é um daqueles defeitos do vinho que, até certo ponto, depende do contexto. Para alguns produtores é fácil. Se eles têm a certeza da sua presença – ou mesmo que suspeitem – rejeitam o vinho imediatamente.
Partilho, até certo ponto, desta visão, no sentido de que, se fosse produtor de vinho, estaria vigilante. Faria todo o possível evitar ‘brett’, exceto naqueles passos que podem custar a qualidade do vinho. Desde logo, tal como um enólogo ‘techno’ e usar muitos sulfitos mesmo no esmagamento e adicionar ácido tartárico para reduzir o pH até ao nível especificado (o tartárico adicionado destaca-se geralmente se for usado mais do que em apenas uma percentagem mínima: os vinhos têm poder tampão (‘buffer capacity’) razoável e modificar significativamente o pH é difícil).


E a ‘brett’ tem o hábito de fazer com que todos os vinhos tenham um sabor um pouco semelhante. Pelo que tentaria evitá-la. Mas tenho que reconhecer que alguns vinhos suportam-na muito bem. Lembro-me de conversar com Matt Donaldson, da Pegasus Bay, afamado produtor de Waipara (Nova Zelândia), que me disse que não se importar com a sua presença no tinto de lote ao estilo Bordéus que elabora. Muitos tintos famosos tiveram ‘brett’ no passado.
Ser polícia da ‘brett’ pode roubar-nos a alegria de apreciar alguns vinhos muito bons, que podem apresentar alguns destes aromas. Mas, tal como um engenheiro de estúdio, quando se trata de avaliar vinhos, algumas pessoas estão à caça e, quando a encontram, é como se tivessem ganho a lotaria. É tudo o que conseguem ver. Isso seria bom se estivermos a falar do que cada qual gosta de beber. No entanto, essa atitude é um pouco problemática se se estiver a avaliar vinhos numa competição internacional e descartar metade das amostras porque têm um problema que simplesmente não incomodaria a maioria dos consumidores.

Há uma outra questão neste diagnóstico. É problemático quando se é crítico de vinhos e descarta um vinho como sendo ‘bretty’ e, afinal… estava errado. Pode ter sido um pouco grosseiro e redutor. Às vezes, o diagnóstico é claro; outras vezes, menos. Isso deixa-me nervoso: quero sinalizar vinhos que desconfio serem ‘bretty’, não porque vou descartá-los como defeituosos, mas porque quero alertar as pessoas que gostam de vinhos limpos que aquele em concreto pode não ser do seu gosto.

A fábula do engenheiro de som

Recentemente provei em casa um vinho que gosto muito. Mas admito que, ao abri-lo, tive que provar duas vezes. Tinha aquele leve aroma animal, especiado e fenólico que inicialmente parecia familiar e reconfortante – bastante europeu no estilo – mas que de imediato interpretei como ‘brett’.

Era de um produtor muito conceituado do Priorat, Espanha. Já o havia provado antes, há pouco menos de um ano, e gostei dele na época, assim como gosto dele agora. Mostra equilíbrio, com aromas doces de frutas pretas e algumas notas de alcatrão, cascalho e estábulo (mas não muito), apresentando, na prova de boca, fruta suave, complexidade picante - e muito bebível. Acho que onde a ‘brett’ se mostra mais claramente é no fim: a fruta termina abruptamente, com um final granulado, quase metálico. Sendo de uma colheita recente (2018), irá evoluir? Sim, tem algum caminho a percorrer. Há um lado rústico que irá, creio, suavizar. Há alguma redução, também? Isso pode afetar o paladar e o fim de boca. Essa é a parte onde tudo se complica. Sim, pode haver alguma redução, mas a forma como a Brettanomyces e a redução se expressam depende – até certo ponto – do contexto do vinho. No geral, acho que é ‘brett’ que estou a provar, mas combina bem com o carácter selvagem e rústico do vinho.

No geral, a presença de ‘brett’ diminui o carácter do terroir? Esta é uma crítica frequente aos vinhos ‘bretty’: que perdem o senso de lugar. Lembro-me de um colega chamado Alex Hunt dizer uma vez que a ‘brett’ é como um ator que interpreta os seus papéis da mesma maneira em todos os filmes. Nesse caso, acredito que há uma correspondência entre as notas de ‘brett’ e a conceção que tenho do terroir do Priorat. É uma paisagem insana, ligeiramente selvagem e dramática, e este vinho comunica-o. Afinal, não quero um Priorat macio e polido, todo fruta doce e sorrisos.

Por isso, fico em conflito. Não gostaria de fazer um vinho ‘bretty’ se fosse enólogo. Mas alguns vinhos ‘bretty’ são amplamente apreciados e amados. A minha capacidade para detetar defeitos retira um pouco do prazer no vinho? Existe uma percentagem apropriada para a ‘brett’ em alguns vinhos tintos, até certo nível? Como profissional do vinho, estarei a proceder como o engenheiro de som que está tão focado nos detalhes da mistura em cada faixa que já nem ouve a música?

Partilhar
Voltar