Um salto no tempo

Vinhos que evoluem no espaço ou cujo envelhecimento é atrasado no fundo do oceano. A Wine Detective investiga os vinhos que atravessam o túnel do tempo, cuja origem é, claro, portuguesa...

 

Como guardar uma caixa de Pétrus Pomerol 2000? A sabedoria convencional dita que seja numa cave ou sala com temperatura e humidade controlados. Para os colecionadores que pretendem revender o Merlot mais caro do mundo, isso seria essencial. Mas, e se quiser bebê-lo? Os mais impacientes podem receber com um sorriso as novidades sobre alterações comportamentais e… um salto no tempo. Isto porque o dono de uma caixa de Château Pétrus 2000 acaba de expor os vinhos a um salto no tempo. Testando o impacto da microgravidade (gravidade zero) e da radiação, a Space Cargo Unlimited lançou-o para o espaço. Durante uma órbita de 438 dias ao redor da Terra a 450 km de altitude, o Pétrus viajou 300.000.000 de quilómetros a bordo da Estação Espacial Internacional.


Em janeiro de 2021, uma nave de carga SpaceX Dragon devolveu o Pétrus à Terra, aterrando no Golfo do México. De seguida, foi transportado para Bordéus para uma análise detalhada (em curso) pelo Institut des Sciences de la Vigne et du Vin da Universidade de Bordéus. Enquanto isso, em 24 de março, 12 especialistas muito sortudos desfrutaram de uma prova cega de ‘Pétrus 2000 do espaço’ e ‘Pétrus 2000 da Terra’ (a amostra de controlo). Jane Anson (autora de Inside Bordeaux) atribuiu a ambos 98 pontos, mas não foi a única a encontrar diferenças na cor, estrutura dos taninos e no perfil de aroma e sabor. A impressão geral foi a de que a garrafa enviada para o espaço era dois ou três anos mais velha. Anson reconheceu o possível impacto de outros fatores além da microgravidade e da radiação, como, por exemplo, a variação nas garrafas utilizadas. Ou, menos convencionalmente, o passeio de ida e volta pelo espaço. Enquanto os vinhos foram armazenados em recipientes feitos à medida, construídos para resistir às condições extremas, a temperatura controlada, o que dizer da vibração?


Diz-se que a paciência é uma virtude. Mas, e se o envelhecimento do vinho no espaço ou as condições espaciais simuladas oferecem realmente aos mais impacientes o benefício do ‘salto do tempo’? Que amante do vinho não gostaria de poder acelerar o tempo e experimentar camadas extras de complexidade e suavidade? Agora certificado pela NASA para enviar pessoas para orbitar a Terra, quem sabe, o SpaceX Dragon de Elon Musk poderá em breve levar conhecedores de vinhos ultra-ricos ao espaço para provar vinhos que sejam lá envelhecidos.

Portugal, origem do ‘salto no tempo’

Os vinhos de Portugal não são de todo estranhos a este fenómeno dos vinhos de ‘salto no tempo’, envelhecidos em longas viagens. Séculos atrás, os vinhos Madeira e Moscatel de Setúbal - os originais do túnel do tempo - cruzavam e voltavam a cruzar o Equador a bordo de navios. Em 2000, a José Maria da Fonseca reviveu o método ‘Torna Viagem’ para o Moscatel de Setúbal. Este projeto de legado permitiu a Domingos Soares Franco comparar e contrastar vinhos de controlo das caves da empresa com os vinhos Torna Viagem de oito viagens.


Os vinhos Torna Viagem “ficam mais escuros, mais suaves, mais complexos, menos frutados no início mas com maior evolução; a sensação de álcool no aroma desaparece e encontramos muito mais equilíbrio no paladar”, afirma o enólogo. Analiticamente falando, os açúcares aumentam e o álcool diminui com a evaporação, mas, embora a acidez total esteja inalterada, Soares Franco relata que a acidez “parece mais alta” (o que atribui a um sal diferente que não cloreto de sódio). Fornecendo uma visão fascinante do impacto deste túnel do tempo, Soares Franco calcula que uma viagem de seis meses que atravessa o Equador por duas vezes envelhece o vinho no equivalente a 15 a 20 anos. Dar a volta ao mundo e cruzar o Equador por quatro vezes envelhece-o pelo equivalente a 30 anos.


O método Torna Viagem custa uma pequena fração dos vinhos de envelhecimento espacial, mas existem meios substancialmente mais rápidos e económicos, o que explica por que caiu em desuso no século XIX. O surgimento das estufas da Madeira introduziu um método de envelhecimento mais controlável e preciso. De acordo com Richard Mayson, especialista em Vinho Madeira, “estima-se que três meses numa estufa equivalem aproximadamente a dois anos na madeira”. Tendo estudado a cinética de envelhecimento que dá origem ao perfil sensorial do Madeira, o enólogo chefe da Blandy's, Francisco Albuquerque, descobriu que, com os parâmetros de pH e temperatura adequados, ”em três a quatro anos, especialmente em vinhos mais doces, obtém-se o perfil de vinhos Madeira mais velhos [canteiros com mínimo de cinco anos] sem estufa”.

O fundo do oceano

Por outro lado, impressionados com exemplos extraordinariamente duradouros de vinhos naufragados, alguns produtores estão a desacelerar o processo de envelhecimento pela submersão dos vinhos. Em 2014, a Veuve Clicquot desceu champanhes a 40 metros abaixo da superfície do mar Báltico, perto do local onde 47 garrafas de Veuve Clicquot de excelente qualidade dos anos 1839 a 1841 foram resgatadas em 2010. A escuridão, as baixas temperaturas constantes de 4 graus centígrados (ambos fatores que atrasam as reações químicas) e a pressão mais elevada (significando baixos níveis de oxigénio pela compressão do gás) criaram as condições ideais para a guarda.


Em Portugal, o Vinho do Atlântico Branco 2016 da Quinta Brejinho da Costa – lote de Arinto, Alvarinho e Encruzado da Península de Setúbal - foi envelhecido ao largo de Sines, a uma profundidade de 10 metros. Aqui, disse o enólogo Luís Simões, não há luz e a temperatura (que, influenciada pela Corrente do Golfo, oscila entre os 17 e os 11 graus) é, em media, de 14 graus centígrados. Os vinhos espumantes podem ser armazenados ainda mais profundamente - a 30 a 40 metros - porque a garrafa, a rolha e o selo podem suportar uma pressão externa muito maior do oceano, onde a pressão aumenta numa relação de 1 bar por cada 10 metros de profundidade.


À semelhança dos dois vinhos envelhecidos de forma convencional que pude provar - Comendador Costa Encruzado 2017 e Orgânico Branco 2018, um lote envelhecido em ânfora de “castas nacionais” - o Vinho do Atlântico era intenso e saboroso, com distintivos aromas de resinas de pinho, erva seca e toques salgados. No entanto, tinha uma sensação na boca e uma estrutura diferentes - menos pesado, mais fresco, mais persistente. Claro que a composição varietal e o ano podem contribuir para isso, mas Luís Simões destaca que os consumidores podem experimentar os vinhos envelhecidos no oceano ao lado de uma garrafa envelhecida de forma convencional e atestar que “as diferenças são evidentes”.
Convencida das vantagens, a Quinta Brejinho da Costa envelhece atualmente entre 3.000 a 5.000 garrafas no leito do oceano e planeia um novo pacote turístico, onde os clientes podem mergulhar para trazer uma garrafa e levar para casa. Tal como os mergulhadores, as garrafas devem descomprimir a cada cinco metros na subida. Tomando emprestada outra referência da cultura popular sobre distorção do tempo, nestes tempos de flibusteiros, os amantes do vinho devem avançar intrepidamente.
 

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