Adega José de Sousa

Fotografia: Fabrice Demoulin
Célia Lourenço

Célia Lourenço

A Adega José de Sousa, em Reguengos de Monsaraz, representa um Alentejo vitivinícola diferente do que estamos habituados nos nossos dias. O Alentejo das grandes casas agrícolas que, além das adegas cooperativas que começaram a existir a partir das décadas de 1940-50, eram os únicos produtores com marcas comerciais. Paralelamente, havia o vinho de produção doméstica para autoconsumo, normalmente a partir de uma pequena vinha própria. O Alentejo foi durante um período longo demais o “celeiro de Portugal” e a vinha foi desaparecendo. A Casa Agrícola José de Sousa Rosado Fernandes era, assim, uma propriedade histórica do Alentejo, com produção de vinho desde 1878, inserida numa das zonas da região que perpetuou a cultura da talha, Reguengos. Era famoso o seu Tinto Velho que ficou na memória coletiva até hoje.


A José Maria da Fonseca nasceu em Azeitão, em 1834, e a expansão para outras regiões sempre esteve na sua matriz. Decide fazer vinhos no Alentejo na década de 1980 - a região começava a dar sinais de um renascimento e, além disso, havia ligações familiares fortes. A avó Soares Franco era de Évora, o avô de Fronteira. A ideia inicial era Portalegre e, nesse sentido, ainda foi comprada uma propriedade que, depois, esteve na origem dos vinhos D’Avillez (de Jorge Avillez, primo da família Soares Franco). Mas os planos foram alterados quando o herdeiro de José de Sousa Rosado Fernandes propõe à família Soares Franco a compra da Adega. É Domingos Soares Franco, vice-presidente da José Maria da Fonseca e enólogo, para quem estes vinhos são particularmente caros, que nos acompanha e nos conta esta história. O médico Almeida e Sá era cunhado de José de Sousa, irmão da mulher, e por morte do casal, ficou com a propriedade. Sem qualquer interesse por vinho, mas consciente do seu valor, procurou quem poderia continuar o legado, escolhendo a José Maria da Fonseca.

Um desafio pessoal

A compra dá-se em 1986 e Domingos Soares Franco vê-se em Reguengos de Monsaraz, com uma adega em estado de semi-abandono e vinhas, na Herdade do Monte da Ribeira, muito maltratadas com a ocupação pós 25 de Abril. Até aqui poderíamos pensar “bastava arregaçar as mangas”. Mas não. Se havia coisa que o enólogo super-moderno Domingos, primeiro português a formar-se em Davis, na Califórnia, não sabia fazer era vinho de talha. E a adega apenas tinha… talhas. Mas a decisão de salvar um legado único prevaleceu. “Para mim era uma novidade, apesar de não ser nada de novo. Passou a ser um desafio pessoal!”, diz-nos Domingos, lembrando também as palavras do pai, Fernando Soares Franco, que defendia que se devia inovar sem renegar as raízes. E o desafio foi assumido, com conhecimento e total cumplicidade do pai e do irmão António, atual presidente da empresa.


Estava, então, decidido que manteriam a forma tradicional de fazer vinho em talha. A adega tinha 10 talhas e num impulso com alguma dose de loucura, Domingos Soares Franco decide comprar mais 100. Terá deixado muita gente a pensar para que queria tantas talhas já que, na altura, ninguém as procurava ou comprava. “Chamaram-me maluco, mas parece que não sou o único. Hoje somos muitos!”. Depois, aprendeu o método de vinificação com o antigo adegueiro que, vendo o seu interesse genuíno, chamou o antecessor (na altura com mais de 80 anos). Estes foram os dois mestres de Domingos Soares Franco na prática da vinificação em talha. Quanto à teoria, encontrou-a em António Augusto Aguiar (1876).


Diz-nos que seguiu sempre essa fórmula, que nos explicou em detalhe. Primeiro, as talhas, ou potes como gosta de chamar. Prefere os da região, de S. Pedro do Corval a poucos quilómetros de Reguengos. Com a experiência, começou a sentir que nestes conseguia os melhores vinhos. Depois, percebeu que não devia pesgar (pez é a resina de pinheiro que reveste interiormente as talhas) com a regularidade que via outros fazer. O pez novo marca demasiado o vinho. Em segundo lugar, falou-nos das castas que usa nos vinhos de talha. Apenas tradicionais da região, com expressão particular nos solos de granito da Herdade do Monte da Ribeira e no clima continental da sub-região de Reguengos. Grand Noir, Trincadeira, Aragonês, Moreto, Antão Vaz, Manteúdo e Diagalves. No período anterior, tinha havido a introdução na vinha de variedades diferentes, sem qualquer critério, pelo que foi necessário perceber como era originalmente e reestruturá-la. E, por fim, desvenda o que se passa na adega. Quando as uvas chegam, são pisadas a pé, em lagares, para partir a película. Na fermentação, é usado 30% do engaço. O restante é separado na mesa de ripanço e entra no chamado “vinho dos engaços”, uma espécie de tempero, “sal e pimenta”, que o enólogo usa mais tarde, se for necessário. A passagem dos lagares para as talhas é feita manualmente e a fermentação ocorre entre os 27 e os 28ºC. Como a adega é semi-enterrada, o ambiente é fresco, havendo sempre a solução de regar as talhas para obter temperaturas um pouco mais baixas no seu interior. Durante o processo de fermentação, há que submergir a manta com um rodo de madeira. Depois, é preciso esperar algumas semanas até que a manta fique no fundo, não se sabendo quanto tempo poderá demorar. Pela sua experiência, Domingos acredita que tem a ver com a temperatura exterior. Se houver muito calor, demora mais tempo a precipitar. Se estiver mais frio, é mais rápido. No fundo da talha, existe um furo que está tapado com um batoque de cortiça. Para retirar o vinho, basta retirar o batoque e o vinho é filtrado pela própria manta. Os primeiros 20 litros saem turvos, voltam a colocar-se na talha e começa a sair vinho limpo. Depois, há vários caminhos possíveis para este vinho de talha. Ou vai estagiar para carvalho francês (Domingos nunca usa carvalho americano nestes vinhos), se entrar nos lotes do José de Sousa Mayor e do J de José de Sousa, vinhos que não são 100% de talha. Ou vai para madeira de castanho, se for um Puro Talha. Neste caso, em vez de casco, o vinho pode fazer o estágio numa outra talha e aqui será tapado com azeite, a forma tradicional de prevenir possíveis oxidações.


Este é resumidamente o processo pelo qual passam todos os vinhos de talha da Adega José de Sousa. Paralelamente à lindíssima Adega dos Potes onde repousam 114 talhas, que pode ser visitada no âmbito das diversas atividades de enoturismo, existe uma adega com tecnologia moderna, para todos os outros vinhos alentejanos da José Maria da Fonseca e onde são feitos os lotes destes premium da casa. 

Talha pura

Hoje, falar de talha é natural. Mas há mais de 30 anos não era assim. Domingos Soares Franco faz o seu primeiro vinho de talha logo em 1986, antecipando um gosto que só viria a ser valorizado décadas depois. Gosto que continua a ser um nicho, motivo pelo qual só em 2015 sai o seu primeiro Puro Talha. Até então, diz-nos que o consumidor não estava preparado. Mesmo hoje, ainda assim, não é fácil fazer a ponte para estes vinhos tão diferentes. Ao mesmo tempo puros e complexos. E iguais a nenhum outro. Veja-se o Puro Talha branco 2017, para o qual é difícil encontrar adjetivos… A opinião do enólogo é que é preciso “adquirir paladar” para nos envolvermos com o vinho de talha, por isso os Puro Talha continuam num nicho muito, muito pequeno de mercado. Em termos de produção, o branco anda à volta dos 500 litros e o tinto não excede os 5.000. Uma verdadeira gota de água no universo José Maria da Fonseca com uma produção anual de 12 milhões de garrafas (dados de 2019).


O enólogo nunca parou a sua busca pela autenticidade destes vinhos, desde manter a vinha mais antiga da casa, de 1952, até às várias fases de replantação dos 72 ha, com predominância das variedades tintas Trincadeira, Aragonez e Grand Noir. Há uns anos, foi à Georgia com o jornalista Paul White, precisamente para aprender mais, para ver os “qvevri” (talhas locais). Diz-nos que se não estivesse já reformado, continuaria a investigar. Sempre. Há um mundo na talha que não acaba, uma história milenar que há 2.000 anos foi iniciada pelos romanos no território que hoje é o Alentejo e que o continua a fascinar. No final, quando lhe perguntamos se sente que a tendência actual pelos vinhos de talha se deve também a ele, responde primeiro com silêncio. Depois diz-nos, “o tempo o dirá”…

 

Vinhos do produtor disponíveis em VINHA.PT.

 

Adega José de Sousa 
Rua de Mourão nº 1
7200-291 Reguengos de Monsaraz
T. 266 502 729
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