Areias Gordas: vinhos que desafiam o tempo 

Fotografia: Fabrice Demoulin
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

Mais Tejo impossível, com as vinhas mesmo às margens do grande rio. Vinhos totalmente únicos no seu perfil. Certamente dos mais emocionantes na região, ainda que completamente desconhecidos da maioria. Por enquanto…

 

Conheci o António Vieira da Cruz a conduzir uma fantástica aula magna com prova de chás no evento Encontro com Vinhos e Sabores de Lisboa, anos atrás. A sua formação em Relações Internacionais levou-o diversas vezes à Ásia em trabalho e, nestas viagens, a sua sensibilidade foi tocada pelo fascinante universo da segunda bebida mais consumida no mundo, após a água. Os presentes ficaram estupefatos não somente com a qualidade e singularidade de cada chá, mas também com o imenso conhecimento do dono da Chás Andorinha e, por fim, do modo através do qual a Camellia sinensis retrata o terroir e pode sofrer processos fermentativos e de estágio, à semelhança das uvas viníferas.


Ao falar de terroir, António mencionou que a sua família também elaborava vinhos únicos no Tejo e, dada a sua sofisticação e sensibilidade, apenas poderíamos supor que tratava-se de algo muito especial.
Estamos a falar de uma pequena propriedade familiar em Salvaterra de Magos, a Terra Larga, onde nascem os vinhos Areias Gordas. Assenta no epicentro do macroterroir do Campo, nos solos férteis das inundações do rio e aluviais pelos depósitos nas suas margens ao longo dos milénios, positivamente influenciada pela frescura das suas brumas matinais. O Campo é terra de brancos vibrantes do Tejo, sobretudo à base de Fernão Pires, mas mormente trabalhados com altos rendimentos ocasionados pelo vigor vegetativo generoso em terras de fertilidade e, por isso, com vinhos de estrutura mais ligeira e carácter menos complexo. Exatamente o oposto do que nasce na casa dos Vieira da Cruz.


O avô de António já produzia e vendia muito vinho daquelas vinhas, que estão na família há mais de 70 anos. A “enosofia” era outra, as quantidades também. Após o seu falecimento nos anos 80, a produção passou a ser de “vinho da casa”, até que um dos seis irmãos da nova geração, o talentoso Thomaz, economista de profissão, veio a conduzir o resgate desta recôndita propriedade ribatejana, após um trabalho de reconversão da vinha, e lançar o primeiro rótulo com a insígnia Areias Gordas em 1996. Ele tornou-se o “vigneron” da casa, apoiado pela família, e António, que está sempre a viajar a trabalho e também pelos chás, o melhor embaixador da marca.

Como uma sinfonia de Mahler

Ao caminhar por aquelas vinhas, o segredo da diferença dos vinhos Areias Gordas em relação ao que normalmente nasce no macroterroir do Campo, em termos de concentração e complexidade dos vinhos, descortina-se com a pujança e singularidade de uma sinfonia de Mahler, a 5ª delas inclusive a nomear um dos icónicos Fernão Pires que a casa produziu, nos anos 2000. Os 15 hectares de vinhas na Terra Larga em forma de um retângulo perpendicular ao rio, o qual ilustra lindamente um vinho homónimo estilo “garrafeira” da Areias Gordas, parece mesmo um jardim “afluente” do Tejo, desembocando nas suas águas.


As vinhas, entre 30 e 70 anos, com castas brancas como a Fernão Pires, Arinto, Alvarinho, Sémillon e Trincadeira das Pratas, e tintas como a Tinta Roriz, Tinto Cão, Alicante Bouschet, Castelão, Trincadeira Preta, etc., com troncos grossos e raízes profundas, a atingirem até seis metros, sofrem uma poda muito curta para conter os excessos de vigor.


Neste terroir tão versátil, que origina desde espumantes e brancos ligeiros em volume, Thomaz e António impressionam, pelo contrário, com brancos de carácter fabuloso, que desafiam a prova do tempo, melífluos vinhos de sobremesa e até vinhos dramáticos com “flor” de leveduras, “à la Jura” ou Jerez! Numa outra vinha de três hectares, em Almourol, Praia do Ribatejo, sobre solos do macroterroir do Bairro, são plantadas Tinta Roriz, Tinto Cão, Touriga Nacional, Cabernet Sauvignon e um pouco de Alfrocheiro Preto, para compor a complexidade sinfónica dos tintos profundos e igualmente duradouros da casa.   
A adega da Terra Larga está mesmo dentro da vinha, é bem estruturada, ainda que, segundo António, “tentamos levar à práctica a frase por vezes demasiado gasta: o vinho faz-se na vinha”. Por isso, tentam ser “muito australianos quando chegam as uvas”, para evitar qualquer ação indesejada de microorganismos nocivos, oxidação, excessos de temperaturas, e “depois do início da fermentação, somos muito franceses”, preconizando leveduras indígenas sempre que possível, e mínimas intervenções, como fazem os melhores “vignerons” da Borgonha, por exemplo.


O apanágio mais distintivo dos vinhos Areias Gordas, para os que já descobriram esse segredo de terras templárias, é a capacidade de guarda dos seus brancos. Os tintos evoluem muito bem e ganham uma complexidade terrosa fascinante, mas numa região em que os brancos são, por regra, consumidos nos seus primeiros anos de vida, um Fernão Pires, um Arinto, ou um lote das brancas plantadas na Terra Larga ficam melhores depois de uma década na garrafa; mesmo a primeira vindima de 1996 ainda está numa forma fantástica. Alguns conhecedores ousam comparar os brancos da casa, pelo estilo complexo e pela oxidação sem jamais ultrapassar os limites, num registo meio “old school”, com o bastião sagrado dos brancos tradicionais da Rioja, a Viña Tondonia. Mas sem jamais deixarem de ser Tejo, ou mais especificamente, Campo de Salvaterra de Magos. Já passou da hora dos amantes do vinho descobrirem e baterem palmas para a qualidade plena de “factor drama” e tão “sui generis” dos vinhos Areias Gordas. Da nossa parte estamos a trabalhar para que isso aconteça.


Areias Gordas 
Terra Larga, Salvaterra de Magos
Rua dos Cegos, nº 38
1100-137 Lisboa
M. 912 299 226
E. terralarga@hotmail.com