Carlo Petrini

Os queijos portugueses são dos melhores do mundo

 
Fátima Iken

Fátima Iken

Realçar os territórios é uma forma de a gastronomia nacional exprimir as características ímpares, valorizando a biodiversidade. A criação de um catálogo mundial de produtos considerados especiais é uma missão do ecogastrónomo e mentor do movimento internacional Slow Food, Carlo Petrini, que apela para a dimensão política do que comemos. 


Piemontês dos quatro costados, o também criador da rede Terra Madre esteve em Portugal para um “boost” que visou incitar a descoberta dos produtos de pequenos produtores, como é o caso dos queijos portugueses que afirma serem dos melhores do mundo. 


Autor dos livros “Bom, Limpo e Justo. Princípio de uma Nova Gastronomia” e “As razões do Gosto”, foi o único italiano a aparecer na Iista “50 People Who Could Save the World” do “The Guardian” e criou ainda a primeira Universidade de Ciências Gastronómicas, em Pollenzo e Colorno. Esteve à conversa com a Revista de Vinhos no âmbito do primeiro congresso de “Food Futures”, organizado em Portugal, por iniciativa do IPAM – Instituto Português de Administração de Marketing, cujos estudantes criaram há dois anos o núcleo Slow Food no Porto.


Aquilo que comemos tem uma dimensão política e ética. A política passa pela comida. A defesa das tradições agrícolas e gastronómicas é essencial para não perdermos a nossa história?


O sistema global alimentar é criminal. Mas o valor dos pequenos produtores começa agora a ser reconhecido e promovido. Os cidadãos começam a dar atenção às matérias-primas, a querer saber de onde vêm, o processo de produção, e como são feitas. Isto é importante porque mostra mudança. As pessoas não gostam de comer químicos hoje em dia. Isto é novo, não existia há dez anos. Finalmente, acho que se entendeu isso. As escolhas dos alimentos são fundamentais para determinar a agricultura, as culturas e a política.

Comer é também um ato cultural, mas poucos o valorizam nessa vertente. Há anos que combate este estado de coisas e foi um dos pioneiros na defesa da biodiversidade com a criação do Slow Food que hoje está já presente em 170 países. Acha que tem havido algum progresso nas atitudes?

Nos últimos anos, muita coisa mudou. Atravessamos um momento particular, em que a camada mais jovem começa a ter outra sensibilidade para esse aspeto e plena consciência de que as suas escolhas podem ser um ato político. Isso antes não existia.

 

Crê que o futuro da alimentação se encontra na ecogastronomia?

Sim, claro. É necessário combater a contínua perda de biodiversidade genética agrícola, por meio da recolha, cultivo e catalogação das variedades tradicionais ainda existentes e incentivar os agricultores para a recolha anual das suas próprias sementes, assim como estimular a sua troca, assegurando-lhes uma independência e autonomia em termos de sementeiras. Um gastrónomo que não é ambientalista é estúpido. E um ambientalista que não é gastrónomo é triste. Fortalecer a biodiversidade, o respeito pelo território e a identidade são essenciais. Porque, um dia, a guerra será pela água e não pelo petróleo. E 80% da água é para a agricultura. Os químicos usados na terra estão a destruir a fertilidade dos solos, tornando a terra toxicodependente.

 

Em Portugal, pensa que estamos a trilhar o caminho certo?

Há características particulares de uma identidade muito própria em Portugal que têm de ser valorizadas. Esta manhã, falei com o secretário de Estado da Agricultura que tem consciência disto e explicou como o Governo quer implementar as pequenas produções, onde está a biodiversidade. Não é a na produção massiva e nas monoculturas que se valoriza obviamente a diversidade dos produtos. Ver esses produtos como parte do património português tem de ser o caminho a trilhar.

 

Acha que a Europa está consciente disso? E Portugal?

A Europa finalmente entendeu isso. E este é um momento muito favorável para Portugal. Existe um fascínio muito grande pelo perfil da realidade deste país. Lá fora, é visto como um país com um modelo de vida que se quer seguir. Existe um “boom” de turismo e Portugal tem um rol de produtos fantásticos, altura ótima para os dar a conhecer. Na Europa, a Política Agrícola Comum também está a mudar e a realçar o valor dos pequenos produtores.  

 

Quer dar exemplos desses produtos portugueses?

Por exemplo, os queijos. Portugal tem dos melhores queijos da Europa e mesmo do mundo. E isto está a ser dito por um italiano, veja bem o que significa. Os vossos queijos são um tesouro, um património histórico, de artesanato de pequenos produtores, um património antropológico, de uma incrível diversidade. É necessário valorizar mais o produto e Portugal está a começar a reconhecer esse valor. 

De uma forma paulatina, está a notar-se o regresso à agricultura tradicional, às origens e ao território. Afastamo-nos muito tempo da dieta mediterrânica, da tríade pão vinho e azeite, mas lentamente estamos a regressar a essa essência.

Portugal é um país muito ligado à tradição, como o sul da Europa, aliás. Há dez anos diziam-me sempre que o Slow Food é uma coisa utópica, uma poesia, mas hoje é uma realidade já. Dez anos antes tinha dificuldade em fazer chegar a mensagem, mas agora é moderno. Antes diziam que era um movimento de nostalgia, mas era já modernidade. Os próprios jovens que se vêm a braços com o problema do desemprego regressam agora à agricultura, criando estruturas de comércio e pequenos produtos artesanais a bons preços. Mas não se pode vender ouro ao preço do chumbo. 

A gastronomia passou a ser espetáculo. Falta educação alimentar. De que forma a atitude dos chefes de cozinha podem ser importantes para mudar este caminho?

Esse é um grande problema, porque é quase uma pornografia alimentar o que se está a observar. Em qualquer parte do mundo se liga a televisão e aparece um chefe com uma colher na mão a falar, a falar. Mas falta alma. Esse protagonismo dos chefes pode ser contraproducente. Não podemos falar de técnica e receitas sem falar dos produtos. Gastronomia é também agricultura, biodiversidade, as raças animais. É antropologia, história, convívio. Só o espetáculo da cozinha e dos chefes é pura pornografia alimentar. Isso é a diferença entre porno e amor.

 

O modelo agroalimentar industrial tem tido um impacto devastador sobre o ambiente e uma perda global da diversidade, tanto biológica como cultural. A Arca do Gosto da Slow Food e o movimento Terra Madre são caminhos para mudar este trajeto?

A batalha do movimento Slow Food é feita através de uma presença assídua nos países com objetivo primário de fortalecer a Arca do Gosto com os produtos artesanais e identitários de cada país. Portugal é um dos países que tem uma tradição e uma cultura ímpares. A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles que querem agir para preservar, encorajar e promover métodos de produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza, a paisagem e a tradição. As escolhas dos alimentos são fundamentais para determinar a agricultura, as culturas e a política.

 

Portugal tem ainda muito poucos produtos na Arca do Gosto. Como explica isso?

Portugal tem apenas 23 produtos na Arca do Gosto. É pouco. Tem de ter vontade de fortalecer a sua presença e isso tem de partir do agricultor, do produtor, do pescador, do restaurador. Se na Itália temos 500 produtos e no Brasil 400, em Portugal temos de ter 200, no mínimo. Temos de aumentar o trabalho de investigação dos portugueses neste campo, dos jovens, da universidade. É a própria identidade portuguesa que tem de valorizar e reconhecer esses produtos. Não necessitam que venha aqui um italiano explicar o património português. 

 

A esfera sensorial do homem contemporâneo claramente empobreceu. Temos de treinar novamente os nossos sentidos?

Sou da confraria do Vinho do Porto e sou um discípulo. Viajo muito e em cada companhia aérea peço sempre um Porto no final da refeição e servem o vinho sempre quente. A partir de agora, a próxima campanha de Carlo Petrini é: “Por favor não sirvam o Porto sem olhar para a importância das temperaturas”. O Porto não é apenas um vinho. O Porto é um vinho especial, floral, subtil. Se o provas sem a temperatura certa não o sentes na sua plenitude. É uma pequena coisa, mas muito importante. E a exigência deste aspeto no serviço pode ajudar também a divulgar a própria bebida.

 

Como resolver a crise alimentar e voltar à essência do gosto? Um tomate já não sabe a tomate...

Eu estou aqui exatamente para isso. Tenho como missão incitar a que a Arca do Gosto seja mais preenchida em Portugal. A economia portuguesa tem um tesouro e não é devidamente valorizado. Acabou a cultura da monocultura e massiva, a destruição da diversidade. A biodiversidade é o nosso tesouro. Se não se valoriza isso, não há história. Uma cenoura de Évora pode ser diferente de tudo, devido ao território, à cultura. Voltar a cultivar esses tesouros e divulgá-los é também uma forma de conseguir mais sabor e desenvolvimento local.

 

Acha que está a recuperar-se a cultura do gosto, do tempo de convívio e prazer pela mesa?

A nível social, algo está hoje também em mudança. E a implementação da dimensão de convívio e partilha são hoje relevantes, pois trata-se de um momento particular este que vivemos. A comida e o convívio podem ser uma importante forma de coesão social. Hoje, muitos jovens podem não ter muito dinheiro, mas apreciam valorizar os produtos que provam e partilhá-los. Isto também não existia há dez anos.

 

Apesar da evolução, o sistema alimentar atual ainda é criminoso e destrói a biodiversidade. O que pode ser feito a nível individual para reverter a situação?

Para garantir alimentos bons, limpos e justos, cada um deve sentir-se coprodutor. O respeito pelo meio ambiente, os territórios, as variedades vegetais e raças animais estão na base do nosso futuro produtivo. A rede Terra Madre é constituída por todos aqueles que querem agir para preservar, e promover métodos de produção alimentar sustentáveis, em harmonia com a natureza e a tradição. E todos podem participar nela.