Casa de Mouraz

Renascida das cinzas

Fotografia: Ricardo Garrido
Luís Costa

Luís Costa

Pioneiros da produção orgânica de vinho em Portugal desde os primórdios dos anos 90, na Casa de Mouraz, em Tondela (Dão), existe um antes e um depois de 2017, ano dos trágicos incêndios de outubro que devastaram o centro e norte de Portugal, provocando meia centena de mortes.

 

Naqueles dias fatídicos em que o fogo varreu o concelho de Tondela, o casal António Lopes Ribeiro e Sara Dionísio pensou ter perdido tudo o que andou a construir durante duas décadas. Felizmente, as perdas acabaram por ser menores do que temiam inicialmente. Mesmo assim desapareceram a casa onde António nasceu, uma boa parte das vinhas e algum stock de vinhos. Hoje, voltar a Mouraz permite-nos assistir a um literal renascimento das cinzas. Há homens e máquinas a plantar vinha nova e largas extensões de videiras a roubar teimosamente o lugar ao predador eucalipto. Mas percebe-se, sobretudo, a energia, o entusiasmo e a perseverança do casal nesta segunda vida da sua ilustre Casa de Mouraz.


Começámos a visita a Mouraz precisamente por uma das vinhas afetadas pelo fogo de 2017, não muito longe da casa ainda com as paredes em ruínas que simbolizam o ato final de resistência ao fogo devastador. É ali, no coração do projeto e da família, que vai ficar a nova adega desenhada por Didier Faustino, artista e arquiteto luso-francês que foi aluno de Jean Nouvel, o único português com obras na coleção Pompidou e que já representou França na Bienal de Veneza.


Depois das primeiras trocas de palavras com António Lopes Ribeiro percebemos que Mouraz é mais do que um produtor de vinho biológico com forte tendência para abraçar a biodinâmica. Há uma clara dimensão política no desafio. Para além de um projeto económico, a Casa de Mouraz é também um projeto ecológico e social, de valorização do território. Isso percebe-se exemplarmente noutro ponto da freguesia, no monte da Senhora da Esperança, onde está a surgir uma vinha em patamares com cerca de 15 hectares que está rodeada de eucaliptos por todos os lados. Como nos diz António Lopes Ribeiro, “mais do que uma vinha, isto é um ato de resistência. Este lugar é o Monte Mouraz, o monte que deu origem ao nome da freguesia. Plantámos Baga, Touriga Nacional, Alfrocheiro, Alvarelhão, Bastardo, Rufete. No fundo, procuramos ter aqui o máximo de variedades possível. Para fazer vinho no Dão existem 40 variedades de uva. Por isso, a minha ideia é termos na vinha nova o retrato do que existe nas vinhas velhas do Dão. Se temos 40 variedades, não podemos restringir o Dão à Touriga Nacional nos tintos e ao Encruzado nos brancos. Temos muito mais castas. É nesse património que temos de ir buscar o máximo possível de biodiversidade”.


Nesse sentido, no meio da vinha vão surgir também outras espécies, desde logo árvores de fruto: “Porque não queremos eucaliptos, mas também não queremos monocultura de vinha”.
“Ser viticultor desta forma é um ato de resistência”, sublinha António Lopes Ribeiro, na defesa acérrima de que “é possível fazer diferente, de forma respeitadora do ecossistema, das pessoas, de tudo o que nos rodeia, e que é possível viver condignamente desta forma. Temos de ter uma alternativa ao modelo que nos é apresentado, segundo o qual a única forma de rentabilizar um terreno é plantar eucaliptos! Esta vinha é a marca daquilo que nós queremos fazer. E é fundamental fazer coisas diferentes”.

Planet Mouraz, uma marca para vinhos “fora da caixa”

Também na definição do portefólio estão a ser feitas coisas diferentes. Depois do incêndio de 2017, o casal António Lopes Ribeiro e Sara Dionísio criou o Planet Mouraz, uma marca para vinhos mais “fora da caixa”, mais laboratoriais, muito virados para a exportação, na tentativa assumida de “criar um centro num lugar periférico” – ou seja, Mouraz no centro do mundo. “O vinho é um produto chamativo. O vinho permite alterar as coordenadas. No Planet Mouraz já temos três vinhos, um sem sulfitos e dois com flor de castanheiro como alternativa ao sulfito”, conta-nos o produtor de Mouraz que é também um pouco de tudo o resto que é preciso ser: viticultor, enólogo, comercial.


O pai de António Lopes Ribeiro foi fundador da cooperativa de Tondela e, durante muitos anos, fazia vinho para venda a granel, mas sempre dentro da produção orgânica desde 1990. Com marca própria desde os primórdios do novo milénio, a Casa de Mouraz é hoje um exemplo em Portugal das práticas orgânicas e biodinâmicas. E isso traduz-se em quê? O trabalho de solo passou a ser muito mais cuidado, com mobilizações muito superficiais; as podas passaram a ser feitas de acordo com o calendário biodinâmico, pelo menos nas parcelas mais importantes; as castas passaram a ser escolhidas e plantadas com mais critério (“por exemplo, a Tinta Roriz não nos interessa, é sempre a primeira a ser atingida pelo míldio”); utiliza-se menos sulfuroso na vinificação; procura aplicar-se os preparados de cobre e enxofre nas alturas devidas; aposta-se nas fermentações espontâneas; em suma, “faz-se um trabalho o mais natural possível”, observa António Lopes Ribeiro, que só não avançou mais cedo para a biodinâmica porque não tinha o saber e acompanhamento técnico necessário. Hoje já não é bem assim. Para além do apoio de João Castelo – uma referência da biodinâmica em Portugal –, a Casa de Mouraz contratou um técnico na Suíça com formação nessa área.


Quanto ao acompanhamento enológico, António Lopes Ribeiro conta com a colaboração de Carlos Silva, conceituado enólogo do Dão, “mas ele sabe que somos aquele tipo de produtor que tem a sua visão própria, e respeita isso. Aliás, alguns dos vinhos que tiveram mais sucesso na Casa de Mouraz foram vinhos que o enólogo nem queria engarrafar…” LC/RG

Casa de Mouraz
Quinta do Outeiro, Mouraz 
3460-330 Tondela Portugal
E. casademouraz@sapo.pt
T. 232 822 053