Czar: a recuperação do nobre lustro do passado  

Fotografia: Rita Chantre
Guilherme Corrêa

Guilherme Corrêa

José Duarte Garcia, o pai de Fortunato, foi um destes obstinados que ajudou a salvar um património cultural e enológico com quase 600 anos de vida.

 

Visitar Fortunato Garcia na sua minúscula adega carregada de emoção em São Roque do Pico é daquelas experiências que entram certamente no rol das inesquecíveis da vida. Mas não esperem nenhum luxo à altura da fama do “vinho passado” do Pico, um néctar explosivo que sabe a mar e vulcão, e que a partir de meados do séc. XVII e até início do séc. XX, foi cobiçado pelos homens mais poderosos do mundo. 

Após a chegada do míldio e oídio, e depois da filoxera, a partir dos meados do séc. XIX, os 12 mil hectares de vinha da ilha foram devastados, e a viticultura quase desapareceu, praticamente restaram algumas plantas com as castas tradicionais no lajido da Criação Velha. A recuperação das vinhas e destas variedades há muito adaptadas ao Pico deu-se principalmente a partir da década de 60 do século anterior. José Duarte Garcia, o pai de Fortunato, foi um destes obstinados que ajudou a salvar um património cultural e enológico com quase 600 anos de vida. Comprou por um preço simbólico de um colega professor uma pequena vinha da Criação e incorporou o saber dos vinhos licorosos, ambos iriam se perder por falta de interesse dos herdeiros do amigo José Rodrigues. 

Um dos maiores legados de Duarte Garcia foi não ter ido pelo caminho “mais fácil” de fortificar os seus vinhos ao estilo dos outros famosos vinhos de Portugal, mas de ater-se às antigas tradições de vindimar as uvas no ápice do seu amadurecimento, logrando altíssimos teores alcoólicos por via direta de uma lenta e fatigante fermentação. 
O filho Fortunato Garcia, um polivalente professor, pescador e caçador, mergulhador, e ainda baterista de uma banda de rock, começou a andar pelas vinhas do Pico aos seis anos e herdou a paixão e os rigores do pai ao assumir o papel de curador de uma tradição plurissecular. Os vinhos, em relação à geração anterior, ganharam em refinamento, ainda que nem uma vírgula fosse alterada nos métodos de cultivo dos 3,5 hectares na Criação Velha, e depois na prensagem tradicional, fermentação espontânea, não aguardentação, e cada vez mais longo estágio nas barricas usadas, as tradicionais da família. Como gosta de frisar, “um vinho totalmente natural, sem adição de leveduras, açúcares ou álcool”. Mas como estes licorosos não-fortificados atingem por vezes mais de 20ºGL, caso único no mundo? Uma benção da natureza selvagem do Pico. 

Nestas vinhas únicas, subdivididas em jarões, depois em canadas e finalmente currais, cria-se um efeito estufa com as rochas negras retiradas do solo, já que absorvem a luz solar e refletem calor, além de protegerem as plantas do ventos e do spray contínuo de água do mar, o rocio. As leveduras que sobreviveram a estas intempéries são guerreiras, e estas cepas de Saccharomyces, principalmente as atuantes na casta Verdelho, conseguem sobreviver ao altíssimo teor alcoólico oriundo da fermentação de uvas que são sobreamadurecidas na planta. Na recuperação das vinhas do Pico nos anos 60, muita gente passou do Verdelho ao Arinto dos Açores pela maior resistência e produtividade desta, mas infelizmente ela não consegue atingir o grau alcoólico nem potencial e nem muito menos o efetivo da Verdelho na fermentação, ou seja, acima dos 18ºGL. Por isso os novos licorosos do Pico passaram a ser ligeiramente fortificados. Menos os dos irredutíveis Garcia. 
As uvas eram, e ainda são para o vinho Czar dos Garcia, apanhadas com quase 75% a menos de rendimento, muitas já passificadas, mas sem Botrytis, com um álcool potencial de aproximadamente 19,80ºGL. A cada década, a praxe é não haver condições naturais para produzir o Czar em no mínimo três anos. “Após oito a dez meses em fermentação em barricas com capacidade de 225 litros, o vinho é passado a limpo e as barricas atestadas, ficando assim até totalizar os oito anos após colheita. Dos 225 litros iniciais, somente se retiram 150, sendo que o resto é bebido pelos anjos. Somando estas percentagens, para produzir este tipo de vinho, tem-se uma produção de menos 85% do que é necessário para produzir um vinho de mesa”.

O segundo lote de 863 garrafas do ano de 2013 chega ao mercado agora, complexado com o aporte de uma barrica de Czar 1999. O primeiro lote de 2013 foi lançado em 2019 e esgotou rapidamente. Merecerá este novo lançamento uma fabulosa garrafa de cristal com gravações em ouro, à altura da qualidade e singularidade do vinho, e da sua história indissociável às melhores mesas do mundo.