Félix Rocha: História e qualidade nas encostas de Alenquer

Fotografia: Fabrice Demoulin
Manuel Moreira

Manuel Moreira

A manhã é de nevoeiro, o centro de Alenquer já ficou para trás e começamos a subir paulatinamente pela EN9 em direção a Torres Vedras até à Quinta da Ribeira, em Meca. A subida não é íngreme, mas o declive é evidente. No trajeto, por entre as sucessivas curvas, passam paredes de vegetação nuns locais, somos ladeados por caniçais noutros, vislumbra-se nos vales, abaixo, a geometria variável dos terrenos de cultivo, mais acima vemos a vinha que foi conquistando espaço nas meias encostas, até à resistente floresta que cobre os topos. Também o nevoeiro já ficou para trás, lá em baixo, no centro de Alenquer. Ao chegar ao destino, domina quase por inteiro a paisagem revestida de vinha. Depois de entrar na propriedade, até ao edificado, sempre a subir, partes da vinha encontram-se ainda mais alto, não muito longe dos 200 metros de altitude. 


Estamos na Quinta da Ribeira, sede e uma das oito propriedades que constituem a Sociedade Agrícola Félix Rocha. Percebe-se uma certa azáfama, não somente nos trabalhos de campo, mas também de construção civil, com obras a decorrer num edifício para instalar oito quartos, que se juntarão, no âmbito do projeto de enoturismo, à loja e ao “wine bar”, estes já finalizados. Percebe-se a forte aposta estratégica da Félix Rocha no enoturismo, já com diversas agências interessadas, somente à espera da conclusão dos trabalhos. Afinal, esta é uma área de enormes potencialidades turísticas e de lazer, favorecidas pela diversidade da paisagem rural, a serra do Montejunto, o Rio Tejo, as quintas e solares e a proximidade a Lisboa.

Foi Félix Rocha, bisavô dos atuais proprietários, quem deu início à produção nesta propriedade, em meados do século XIX. Em 1991, a quarta geração procedeu à total reestruturação das vinhas e da adega, esta última, posteriormente, objeto de remodelação tecnológica em 2003, “tendo em vista o cumprimento das estritas regras de higiene, segurança e qualidade alimentar”. Atualizaram-se os materiais utilizados, inovou-se todo o equipamento de vinificação, modernizou-se o laboratório e concebeu-se uma sala própria para o envelhecimento em barricas de carvalho.  

Hoje, a Sociedade Agrícola Félix Rocha explora quase 90 ha. de vinha, distribuídos pelas oito propriedades: Quinta da Ribeira, Quinta do Casal do Mato, Quinta do Casal Novo, Quinta de São Cristóvão, Quinta do Baracho, Quinta das Sete Pedras, Quinta do Casal Morais e Quinta da Amoreira, nos Cadafais, pertencente a Arruda. Pretendem chegar aos 100 hectares de vinha já nos próximos dois anos. 


A gestão do quebra-cabeças


É a adega da Quinta da Ribeira que recebe a colheita de todas as propriedades. Guiam-nos Luís Maia, enólogo e Paulo Rocha, descendente do fundador, pelas encostas até um topo onde vislumbramos as várias vinhas ao redor, as diversas altitudes, nas quais as castas tintas ocupam na sua maioria as cotas mais elevadas e de melhor exposição. 

A única casta branca em encosta é a Viosinho. As restantes brancas estão nas cotas mais baixas: Arinto, Alvarinho, Chardonnay, Sauvignon Blanc e ainda Moscatel, em especial o Moscatel Graúdo, que está na base de um surpreendente e fresquíssimo vinho leve branco. Por solicitação do mercado externo, que representa 75% do total das vendas da Félix Rocha, parte da área que era de Fernão Pires foi reconvertida para Sauvignon Blanc. Restam ainda sete hectares de Fernão Pires, de 13 anos a vinha mais nova e a parcela mais velha com mais de 30 anos. 

As castas tintas estão, de longe, em maioria, pois representam mais de 80% do total do encepamento, distribuído pelas oito propriedades. Nas castas nacionais, possuem Touriga Franca já com 30 anos, a Touriga Nacional, plantada a partir de 1998 em locais onde estava até aí a Tinta Miúda, e mesmo alguma Touriga Nacional plantada anteriormente, em 1991, aquando da primeira reestruturação. Ainda nas castas nacionais, encontramos Aragonez e Castelão, esta última que, ao contrário da habitual cor mais aberta, “aqui dá muita cor, quase parece Alicante”, diz-nos Luís Maia. Têm também Alicante Bouschet, Merlot, Caladoc, Syrah e Petit Verdot, esta última variedade que “faz sentido na região, nas zonas quentes, pois tem produção média bastante boa, dá vinhos muito interessantes, pouco elegante e com muita cor”, refere o enólogo. Vão plantar também 1 ha. de Pinot Noir, “só porque é uma casta que adoro”, justifica em tom deliciado Paulo Rocha. 

Facilmente se percebe o quebra-cabeças que é a gestão de tudo isto, o quão trabalhosa é a época de vindima. Para além da dispersão das propriedades, adicione-se, por exemplo, a gestão dos diversos índices de maturação, ainda mais com alguma da uva a ser apanhada manualmente. Nada que tire o sono a Luís Maia, pois das vinhas com mais idade já têm histórico e sabe para onde estarão destinadas as uvas de determinadas parcelas, algo menos definido, por vezes, quando se trata de vinhas das plantações mais novas. 

De uma pequena parcela de vinha com 100 anos de idade, irão vinificar, no próximo ano, o fruto em separado, para testar o que dali sai. Já em 2018 fizeram um teste com as uvas brancas de uma vinha muito velha que deu 300 litros. Eram vinhas que tradicionalmente faziam abafado. Produção reduzida, para consumo interno e amigos que incentivaram a continuar, mas só sairá comercialmente quando a qualidade se destacar.


Alenquer, terra de vinhos… kosher


Alenquer é terra de bons tintos, de múltiplas encostas, muitas das quais voltadas a sul, que permite boa ventilação. Não há muita pressão de doenças, existindo assinalável amplitude térmica entre as zonas baixas e as mais altas e, “no verão, faz um calor porreiro!”, sublinha Paulo Rocha, ao que Luís Maia acrescenta: “Nestas encostas costuma haver alguma paragem de maturação, as plantas defendem-se, acabando as vindimas já bem dentro de outubro”. Ao provar os tintos da empresa, percebe-se a estrutura e potência, perfeitamente equilibrados na frescura. 

Os solos por aqui são argilo-calcários, oriundos de substratos de origem mezozóica e cenozóica. Por baixo dos pés damos conta de umas quantas conchinhas à superfície, tema que faz Paulo Rocha contar que esta é uma zona com muito xisto preto e que este ficava exposto aquando das surribas no tempo do seu avô, que as aproveitou para pau de cabeceira no aramar das linhas da vinha. 

A Sociedade Agrícola Félix Rocha comercializa, principalmente, duas marcas. A Quinta de São Cristovão, marca de maior volume, que ronda os 100 mil litros por ano, e a marca Félix Rocha, onde entram os vinhos de casta única e os vinhos especiais. Nas gamas de topo, a quantidade situa-se entre as cinco mil e as oito mil garrafas; já nas gamas médias, o número de garrafas anda nas dez mil a doze mil. Também o vinho leve é comercializado com a marca Félix Rocha, que, entretanto, se apresenta com nova imagem. 

Uma das especialidades da Félix Rocha é o vinho kosher que produzem desde 2010. “Somos atualmente o único produtor de vinho de mesa tranquilo kosher”, diz-nos Paulo Rocha. Na sua totalidade como vinho tinto, eventualmente produzirão também vinho branco. Pedimos a Luís Maia para nos explicar os requisitos na produção deste vinho. “Os alimentos e as bebidas permitidos para o consumo, de acordo com os preceitos da Tora, são chamados de Kosher, Kasher ou Casher, palavra hebraica que significa “bom”, “digno de confiança”. Quando industrializados, os produtos Kosher devem ser supervisionados por autoridades religiosas e podem ser identificados por símbolos impressos nas suas embalagens. Para o vinho ser consumido em ocasiões religiosas deve ser Kosher, ou seja, a sua elaboração necessita de supervisão rabínica”. Há algumas regras básicas para um vinho se tornar Kosher: não podem ser produzidos a partir de videiras com idade inferior a quatro anos; a vinha, se estiver localizada em terras bíblicas, deve deixar de produzir uma vez a cada sete anos; no local onde estão as vinhas, nenhum outro tipo de planta deve ser cultivada; todo o equipamento deve ser desinfetado por um judeu e qualquer produto utilizado na elaboração do vinho, deve ser igualmente kosher; o vinho e equipamentos só podem ser manuseados por judeus, para evitar a possível contaminação ao ser manipulado por pessoas desprovidas de fé. Nem todos os profissionais da adega, como enólogos e técnicos, precisam de ser judeus ortodoxos, bastando que não tenham contato físico direto com o vinho ou equipamento. Alguns sacerdotes mais rigorosos exigem ainda que o fermentado seja pasteurizado. Neste caso o vinho chama-se “mevushal”, que é o caso do vinho produzido pela Félix Rocha. Após a pasteurização a garrafa pode ser aberta por qualquer pessoa, crente ou não, sem perder a denominação kosher.

Os vinhos Félix Rocha, nomeadamente os tintos, caracterizam-se pela assinalável estrutura e potência, mas os dias de hoje deram-lhes uma camada de elegância e precisão que os torna muito interessantes e fiéis à sua origem. Os brancos estão muito requintados, fresquíssimos, sem exuberâncias ou excessos, com belíssimos apontamentos minerais. A conhecer e visitar!