Haverá vinhos do outro mundo?

Júpiter

Fotografia: Ricardo Garrido

O que separa um vinho de dez e de mil euros? Qualidade, status, perceção de gosto ou perspetiva de valorização? A pretexto do lançamento do Júpiter, vinho de talha alentejano lançado a mil euros na estreia da coleção “Wines From Another World”, refletimos acerca do mercado dos vinhos de luxo, ensaiamos ângulos de análise sobre vinhos que valorizam ou que o mercado trata de especular. Investimento, luxúria, novo-riquismo... As ilações serão do leitor.

 

Vincent van Gogh pintou dezenas de quadros que hoje são considerados obras-primas do pós-Impressionismo. Alguns estão entre os mais apreciados da história. Porém, o holandês viveu toda a vida no anonimato, convivendo com fragilidades de índole pessoal e até alguma demência, tendo-se suicidado aos 37 anos. Em vida não saiu da obscuridão artística, não alcançou reconhecimento, vendeu pouco mais que nada.


Quantos outros artistas, de tantas outras artes, confrontaram-se com uma vida de desencanto que, anos volvidos, acabou recontada de outra forma?
A valorização de peças artísticas ou da esfera do gosto individual é sempre ingrata. Nas artes plásticas, na música, no teatro, no cinema, na generalidade das expressões culturais, por vezes até nos ofícios.
Pagar 150,00€ por um menu de degustação da autoria de um criativo chefe de cozinha pode ser tão descabido para alguns como adquirir um automóvel de 150.000,00€ para outros. Ora bolas, comida é comida e há bem mais barato, de boa qualidade e em doses mais substanciais; e um carro é um carro, basta ter bom motor e ser fiável.
Usa-se e abusa-se da expressão “mercado do luxo”. A verdade é que ele existe, incluindo nos países menos desenvolvidos, onde chega a ser mais ostensivo. Há ricos, milionários e bilionários, há novos ricos, há excêntricos e há bons vivants, tal como há simplesmente quem goste de cometer alguns pecados, de longe a longe, à medida das ocasiões e das possibilidades da carteira. O vinho não é exceção.


Os mais conhecedores e curiosos da causa entenderão aceitável pagar 100,00€ por um vinho ao qual reconhecem qualidades muito particulares. Aqueles que entendem o vinho à luz da importância de um refrigerante certamente acharão esse valor absurdo, na medida em que os mesmos 100,00€ permitiriam adquirir algumas caixas de vinhos de preço inferior. Branco é branco, tinto é tinto, o resto são balelas – pensarão certamente. Mas, nem todos somos iguais ou pensamos da mesma maneira.


Quem conhece o mundo do vinho sabe que a diversidade é inesgotável – em cores, paisagens, geografias, vinhas, castas, adegas, entendimentos de fazer, garrafas, rótulos, canais de distribuição, mercados, preços. 
Em Portugal habituámo-nos a beber bem e a bom preço, pelo que nos escandalizamos com facilidade quando confrontados com os valores de alguns vinhos. Pior, nos inícios deste milénio, para dar um “boost” às exportações, os portugueses andaram a propalar fora de portas que os vinhos nacionais são “best value”, bons e a ótimo preço, imagem que colou em vários mercados externos e que levará muitos mais anos a descolar da mente de milhares de consumidores e críticos internacionais. Por muito que eles gostem de um vinho português e o considerem de alto nível, se o preço proposto for significativo logo contrapõem com grandes vinhos franceses ou italianos, argumentando ausência de histórico que justifique o valor.


Portugal está a perceber o erro de palmatória. Não tem condições para concorrer em preço baixo com vinhos elaborados em autênticas pradarias de vinhas, como acontece com os vinhos australianos, neo-zelandeses, argentinos ou chilenos. Como país, temos a dimensão que temos, mas possuímos uma invejável diversidade de regiões e de castas, somos a mais antiga nação europeia, ostentamos um passado incrível na cultura de vinho. Estará na hora de se assumir à luz destas dimensões – não da dimensão em volume mas da dimensão em valores.


A questão da ausência de histórico foi desmontada, honra lhe seja feita, pelo setor do Vinho do Porto. 
A partir de inícios da segunda década deste nosso século, as principais casas e alguns produtores de menor dimensão decidiram apresentar edições raras e exclusivas de tawnies muito velhos (Scion, Ne Oublie, Niepoort VV, Wine & Soul 5G, Andresen 1910, Tributa…) colocando-os em garrafas especiais (algumas de cristal), em caixas com materiais nobres, imagens propositadamente desenhadas e trabalhadas em detalhe. Os milhares de euros dessas edições raras agitaram o mercado, alertando-o para o significado de vinhos que, nalguns casos, possuem mais de um século, têm produções limitadíssimas e, no circuito dos colecionadores, valorizarão. Desde então, assistimos a lançamentos mais frequentes deste tipo de vinhos, com o consequente impacto mediático.


Nos vinhos tranquilos, é certo que Portugal não tem o lastro de séculos de produção de alguns châteaux, embora haja outras narrativas possíveis de contrapor ao “histórico”. Basta pensar no património de vinhas velhas ou nas dificuldades de algumas viticulturas – tantas vezes manuais e sob condições agrestes. Ou elencar os múltiplos enredos geracionais de ligações à terra de uma família produtora ou focar o “terroir” singular de um determinado vinho, explicando-o conveniente e convictamente. 
Não é preciso sobranceria mas talvez chegue de timidez, da postura de ombros encolhidos e olhar cabisbaixo. Numa sala com importadores e crítica internacional não haja receio de mostrar os grandes vinhos portugueses, de reclamar por eles o preço merecido e justificar o porquê desse valor. Na dúvida, faça-se o que o produtor chileno Eduardo Chadwick fez por múltiplas ocasiões com compradores e imprensa internacional, colocando em prova cega os seus vinhos, de Aconcagua Valley, em confronto com alguns dos mais sonantes rótulos franceses. Foi assim que criou o agora icónico Seña.

Clássicos e recém-chegados. 
Valorização normal ou especulação?

Embora não sejam muitos, Portugal tem alguns vinhos tranquilos que se tornaram topos de gama icónicos ao longo das décadas, no mercado interno e em destinos externos como o Brasil ou Angola. Desde logo o Barca Velha, mas também outros, como o Mouchão ou o Pera Manca.


A partir da década de ’90 do século anterior até aos nossos dias outros vinhos atingiram um patamar de notoriedade similar, boa parte com reconhecimento extra na crítica norte-americana (Pintas, Quinta do Vale Meão, Quinta do Crasto, Poeira…).
Os exemplos mencionados são apenas isso, exemplos. Poderíamos referir outros, na medida em que todos os anos surgem vinhos de fasquia qualitativa excelente, em muitos casos de produções limitadas, que não ultrapassam o milhar de garrafas. Pois bem, residente neste ponto outra pertinente possibilidade de análise – deverá haver um limite mínimo de garrafas de um vinho tranquilo para que possa ser considerado verdadeiramente icónico? Agora, os preços. Lançado em 2008, o Barca Velha 2000 (16ª edição) chegou ao Sogrape Clube Reserva 1500 a um preço de 75,00€/garrafa (produção de 26.000 garrafas). O Barca Velha 2011 (20ª edição) chegou em 2020, ao mesmo clube de vinhos, a 250,00€ a garrafa (produzidas 33.766 garrafas). Num qualquer restaurante, dificilmente encontramos um e outro a preços inferiores a 400,00€.


O Pintas 2003 tinha um PVP recomendado de 40,00 € em 2006. O Pintas 2017 (cerca de 6.000 garrafas), único vinho português listado no “TOP 100” da Wine Spectator de 2020, tem um PVP de 80,00€. Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2005 apresentou-se ao mercado, em 2008, a um PVP de 88,50€. O Quinta do Crasto Vinha Maria Teresa 2017 (6.555 garrafas) tem um PVP de 220,00€.


Cientes da necessidade de valorização de preços e convictos da abertura de nichos de mercado – boa parte segmentada na tal expressão de “mercado do luxo” – , novos protagonistas têm lançado vinhos a preços elevados. Embora muitos não possuam o tal histórico, que permitirá percecionar o fator consistência, o valor de venda proposto assenta em pressupostos como a excelência de uma determinada vindima, a exclusividade de uma determinada vinha, a genialidade de um determinado método de vinificação.


As produções ficam circunscritas a algumas centenas de garrafas e o circuito de comercialização passa quase exclusivamente por restaurantes de segmento elevado, garrafeiras de nomeada e clientes privados. 
Estará a abrir-se um novo mercado para o vinho português?

Júpiter e uma coleção “do outro mundo”

Cláudio Martins, Pedro Ribeiro e Pedro Antunes juntaram-se para lançar o primeiro vinho da coleção “Wines From Another World”. A ideia é apresentar, ao ritmo de um a dois rótulos por ano, um total de nove vinhos, que possuam nove códigos distintos, que representem nove regiões diferentes do mundo, que sejam da autoria de nove produtores e que, individualmente, fiquem associados a um dos nove planetas do sistema solar. A estreia recaiu num vinho português, o Júpiter.


É da autoria da alentejana Herdade do Rocim e tem por base uma vinha velha – a vinha da Micaela, nome da anterior proprietária – que Catarina Vieira e Pedro Ribeiro, produtores do Rocim, adquiriram em 2015. Solos graníticos, como habitual na zona da Vidigueira, cerca de 20 castas misturadas (Moreto, Tinta Grossa, Trincadeira, Alicante Bouschet, pequenas quantidades de outras castas e até variedades brancas), cepas de uma idade estimada em 70 anos.
Na vindima, Pedro Ribeiro pediu para que as uvas dessa vinha fossem colocadas em três talhas centenárias, com capacidades na ordem dos 600 litros. À medida que as ia provando, reparou que uma delas mostrava um vinho distinto de todos os outros, que ia com a permanência na talha. Protelou o engarrafamento até janeiro de 2020, ou seja, o vinho esteve 48 meses na talha, em contacto com as películas até 11 de novembro de 2015 (o dia de São Martinho, data em que a tradição recomenda abrir a talha e beber o vinho).


“Temo não conseguir repetir mais uma vez este vinho”, confessa-nos Pedro Ribeiro. “Os astros estiveram do nosso lado”, comenta, a sorrir.
Quando o consultor de vinhos Cláudio Martins partilhou a ideia de algo muito especial para inaugurar a coleção “Wines From Another World”, Pedro Ribeiro identificou de imediato essa talha. O resultado são 800 garrafas disponíveis, 600 das quais já vendidas e/ou alocadas. Pretendem guardar as últimas 200 para as relançar com os restantes vinhos, num estojo especial para colecionadores.


Pedro Antunes, designer responsável pela imagem da coleção, acentua a curiosidade de este ter sido um projeto “nascido em plena pandemia” e contextualiza o conceito “Wines From Another World” “não só como uma marca de vinhos, mas uma marca de experiências”.
O preço elevado e redondo deste primeiro vinho, 1.000,00€, suscitou um novelo de reações, embora Cláudio Martins recuse tratar-se de especulação ou ser, ele próprio, um especulador. “Não me intitulo especulador”, reage.


Tem em carteira alguns dos mais interessantes projetos nacionais de vinho, que os promove num circuito internacional de clientes privados e investidores. Beirão, viveu alguns anos em Londres, onde cedo contactou com o mundo dos vinhos. Trabalhou, entre outros, no icónico Coq D’Argent e foi responsável pela New Street Wine Shop, localizada na city. Em 2014 criou a Martins Wine Advisor, consultora que apoia sobretudo privados e empresas de vinho e bebidas ou aquisição de ativos, como vinhos e propriedades. É ainda colaborador regular do grupo Oeno.


“Portugal tem bons vinhos a preço justo mas também temos capacidade de criar esta categoria de preços mais elevados porque há vinhos para isso. Este é um vinho super fresco, super elegante, que as pessoas gostam hoje em dia. Portugal tem capacidade para fazer vinhos de outro mundo. Quis fazer isto em Portugal porque acredito no que Portugal tem”, garante.
A sessão oficial de lançamento, que reuniu um grupo restrito de convidados nacionais e internacionais, contou a presença de consultores da Oeno, grupo que “liga os investidores de vinho, sejam principiantes ou experientes, ao setor do comércio privado”. Cláudio Martins colabora com eles e assegura que “gostaram do vinho e do projeto; vão mostrar aos clientes que este vinho pode crescer em valor, ano após ano”.


Haverá outros vinhos associados a mais planetas, de denominações de origem reconhecidas internacionalmente. Alguns desses vinhos e respetivos produtores já estão identificados, mas o segredo é a alma do negócio, pelo que recusa adiantar detalhes. Apenas que o próximo lançamento acontecerá em março de 2022.
Cláudio Martins, Pedro Antunes e Pedro Ribeiro protagonizam a capa desta edição da Revista de Vinhos, fotografia inspirada na imagem que ilustra o célebre álbum “Abbey Road” dos Beatles. 


Ouvir o álbum, lançado em 26 de setembro de 1969, é reencontrar acordes, melodias e letras marcantes da história do universo pop/rock, que teimam manter-se sonoramente atuais. O mundo valorizará todos estes vinhos como ainda hoje aplaude os quatro de Liverpool?

 

 

18,5
Júpiter Code 01 2015

Regional Alentejano / Tinto / Rocim
Rubi. Luxuriante no desdobramento aromático: mirtilo, cereja escura, pimento, azeitona, folha de tabaco, urze, mato e especiaria delicada. Tanino fresco, estrutura que alia potência e delicadeza, muita frescura e excelente acidez. Final elegante e detalhista, novamente em camadas, com nuances que lembram engaço, e bastante profundidade. Saberá evoluir.
Consumo: 2021-2028
1.000,00 € / 16ºC

 

Um universo à parte

O mercado internacional do vinho alterou-se significativamente na última década. Um estudo da consultora Cult Wines, que se focou na valorização de diferentes vinhos ao longo dos anos, começa por observar que os grandes investidores e colecionadores deixaram de estar apenas focados nos clássicos de Bordéus (Pétrus, Lafite…), que chegaram a atingir preços demenciais, para se focarem noutras regiões, como a Borgonha. Obviamente, os produtores da Borgonha agradeceram, na medida em que os vinhos por eles produzidos passaram a ter maior reconhecimento, mais procura e valorização acrescida, ou seja, a Borgonha foi além do Domaine de la Romanée-Conti.


No entanto, observa a consultora, à medida que os preços da Borgonha subiram em flecha, os investidores passaram entretanto a olhar para outras denominações, como Champagne, Vale do Ródano, Toscana ou Piemonte. Sobe e desce que lembra a Bolsa e que mexe, efetivamente, com as bolsas. Portugal já estará identificado para entrar neste circuito?
A seguir apresentamos a tabela do TOP 10 de vinhos que representaram as melhores performances de valorização na última década, de acordo com a Cult Wines.
 

TEXTO E NOTAS DE PROVA José João Santos, Nuno Guedes Vaz Pires