Jorge Moreira está a celebrar 20 anos de carreira. O enólogo é um dos expoentes máximos da geração que revolucionou a enologia do Douro, mas mantém um perfil de sinceridade, simplicidade e discrição difíceis de igualar. Aos vinhos Poeira, o projeto pessoal, junta responsabilidades na Real Companhia Velha e na Quinta de la Rosa, algo só possível depois de ter abdicado do negócio das lareiras…
Apesar de repetirmos com orgulho indisfarçável que o Douro é a denominação de origem mais antiga do mundo ou que o Douro é a denominação mais internacional de Portugal, a mais conhecida e respeitada dentro e fora de fronteiras, a verdade é que o Douro viveu até há poucos anos quase sobre o domínio exclusivo do Vinho do Porto. Falamos com frequência do Douro e do Vinho do Porto como se os vinhos tranquilos e o generoso Vinho do Porto fossem uma realidade única e homogénea, como se o Douro tivesse mantido uma associação direta aos vinhos tranquilos que hoje não nos cansamos de elogiar.
A realidade é que a história dos vinhos tranquilos do Douro, nunca é demais repeti-lo, representa um acontecimento relativamente recente no percurso histórico da denominação, uma crónica que remata, com algumas interessantes e documentadas exceções, pouco mais de duas décadas de vinhos. Uma história muito recente, que ainda procura consolidação, que foi levada a cabo por uma nova geração de enólogos e proprietários, uma revolução suave que ajudou a transfigurar a face do Douro para uma nova e distinta realidade.
Durante séculos, o Douro foi única e exclusivamente sinónimo de Vinho do Porto, condição indissociável do grande vale do Douro, razão de ser para a construção de uma paisagem épica que emociona e comove pela amplitude e monumentalidade, pela rudeza e pelo carácter indomável. Na verdade, a região nasceu, foi demarcada e regulamentada para o Vinho do Porto. Durante os primeiros séculos de vida, o vinho do Douro foi encarado como um subproduto, o vinho transformado que sobrava das uvas não passíveis de ser transformadas em Vinho do Porto. Proprietários, viticultores, agricultores, produtores e enólogos, as gentes do Douro e de Gaia, habituaram-se a olhar para os vinhos do Douro como simples matriz de escoamento de sobras e como alimento para uma legião de trabalhadores que povoavam as quintas e as aldeias do Douro.
Claro que sabemos que a partir da segunda metade do século passado nasceram alguns dos mitos do Douro, alguns dos pesos pesados de Portugal, muitos dos quais já não existem e alguns dos quais continuam a esconder histórias fantásticas, que deveriam ser passadas ao papel. Por essa época foram nascendo nomes que se tornaram míticos, tais como Barca Velha, Ferreirinha Reserva Especial, Quinta do Côtto, Duas Quintas, Quinta do Confradeiro, Solar das Francesas, Reserva de San Marcos... Mas estes vinhos sempre foram privilégio de um grupo fechado de casos raros e quase exóticos, exceções que confirmavam a regra de privilegiar o Vinho do Porto em detrimento dos vinhos do Douro.
Foi então que se deu a grande revolução dos vinhos do Douro, a carta de alforria de pequenos produtores que deixaram de estar presos à ditadura suave mas presente do Vinho do Porto. Tudo começou no final da década de 90, quando o Douro mudou de filosofia e atitude dando azo a uma transmutação radical que revolucionou aquela que era, e continua a ser, a denominação regulamentada mais antiga do mundo. Uma revolução que por ter sido tão tranquila ainda hoje continua a ser mal compreendida e pouco valorizada. Poucas regiões no mundo, e ainda menos na velha Europa, sofreram uma transformação tão súbita, radical e surpreendente como o Douro. Uma revolução sem solavancos, sem grandes discórdias, sem convulsões e com muito poucos efeitos secundários para o futuro da região.
Em cerca de duas décadas quase tudo mudou no Douro. Hoje, a região oferece um conjunto de novas oportunidades e desafios aos agentes económicos, condição que converteu o Douro na denominação mais cobiçada e reconhecida de Portugal. Uma renovação de costumes que, de tão profunda, constrangeu mesmo a maioria das casas mais tradicionais do Vinho do Porto a entrar no mundo dos vinhos do Douro. Por oportunismo ou por necessidade, poucos conseguiram manter-se afastados dos vinhos do Douro aportando novas estrelas à região. Depois de dois séculos de apreço pelos vinhos do Porto, enófilos, jornalistas e compradores começaram a elogiar os vinhos poderosos e irrequietos do Douro, vinhos jovens e entusiastas feitos à imagem de uma nova geração de enólogos que ajudou a desbravar os caminhos do Douro.
Uma revolução de costumes que foi protagonizada por uma nova levada de jovens enólogos que se estabeleceram na região. Poderia até parecer uma hipérbole, mas a palavra “estabelecer” é especialmente poderosa e elucidativa quando falamos desta primeira trupe de enólogos que assentou praça definitiva e permanente em terras durienses. Uma realidade que representou um corte definitivo com o passado, quando enólogos e proprietários viviam no Porto, deslocando-se ao Douro quase exclusivamente em período de vindimas.
Quando pela primeira vez um grupo de enólogos optou por viver no Douro lançou raízes no conhecimento das vinhas e dos talhões especiais. Por força da presença constante no terreno, esta nova geração começou a conhecer profundamente o perfil de cada talhão, a compreender as necessidades e personalidade de cada parcela, cada vale, cada encosta, cada exposição, cada solo. De repente tornou-se mais fácil entender as exigências, manias e potencial de cada casta, a entender o valor de cada canto do Douro, a ensaiar podas, reenxertias e demais ensaios. Pela primeira vez, alguém começou a entender o Douro diretamente sem necessitar de intermediários para descodificar o terreno.
Viver no Douro ainda hoje não é uma empreitada fácil. Apesar da internet, dos acessos facilitados e do desenvolvimento da região, a sensação de isolamento ainda é real. Mas há duas décadas a tarefa era muito mais arriscada e complexa. A sensação de isolamento e de pioneirismo era tão forte que esta fornada de enólogos acabou não só por desenvolver laços pessoais muito fortes como por se dedicar quase por inteiro ao trabalho. As distrações eram quase inexistentes e o trabalho acabou por ser a escapatória possível para quem estava longe de tudo e tinha de conseguir justificar para si próprio que uma decisão tão difícil como a de montar residência no Douro tinha sido fundamentada.
Por isso, a maioria entregou-se de forma total e sem limites aos projetos que tinha abraçado. A maioria passou a respirar e transpirar vinho, vivendo de forma apaixonada o dia a dia na vinha e na adega. Aceitaram manter uma dedicação total ao vinho que chega a ser quase doentia, repleta de sacrifícios pessoais, vivendo cada dia na adega como se fosse o último dia da vida. Recebendo jornalistas e visitantes de todo o mundo.
Foram os primeiros a dedicar-se maioritariamente aos vinhos do Douro em detrimento da primazia habitual que sempre tinha sido votada ao Vinho do Porto. Isso obrigou-os a serem diferentes, a ter de inovar e descobrir novos caminhos. Enquanto o Vinho do Porto tinha-se mantido como um universo conservador e avesso a mudanças, um mundo dominado por empresas fechadas, o mundo do vinho do Douro teve de desafiar regras para dar os primeiros sinais de vida. Por não ter o peso da história e das práticas do Vinho do Porto, os vinhos do Douro partiram para esta aventura sem os constrangimentos e vícios de forma a que o Vinho do Porto obrigava, espartilhado num universo mais clássico e tradicionalista.
Por estarem tão próximos, física e emocionalmente, os enólogos que se fixaram no Douro acabaram por passar muito tempo juntos e num regime de grande proximidade. Acabaram não só por partilhar as dúvidas e os sucessos como acabaram também por provar os vinhos que cada um fazia, discutindo de forma aberta e sem segredos o que acontecia em cada casa. Mas essas reuniões constantes serviram também para descobrir novas realidades provando vinhos de todas as regiões do mundo, vinhos de todas as proveniências num abrir de portas ao mundo que as anteriores gerações não tinham procurado.
Uma condição que foi especialmente implementada e ampliada pela presença de Dirk Niepoort, que é mais que sabido ter sido fundamental para a evolução e crescimento pessoal desta nova geração. De repente, o Douro passou a contar com um grupo alargado de enólogos que dispunham de uma visão mais global do mundo do vinho, enólogos que acabaram por ser alertados para uma profusão de estilos, filosofias e práticas que as gerações anteriores não valorizavam da mesma forma.
E 21 vindimas passaram…
Entre estes enólogos durienses destaca-se o nome de Jorge Moreira, rosto conhecido do Douro que celebra este ano a 21ª vindima. Para efeitos práticos, o mesmo refere-se a si próprio como tendo 20 vindimas às costas, mas se contabilizarmos a vindima em que nos encontramos o número surge já mais gordo e menos redondo. E, no entanto, pouco ou nada fazia prever que Jorge Moreira viesse a transformar-se num dos rostos mais emblemáticos da nova geração… que entretanto já não é assim tão nova.
Jorge Moreira é um desses casos raros, em que os azares e sortes da vida acabam por moldar os factos. Muitos dos projetos nasceram quase do acaso, por vezes sem um planeamento aturado. Na verdade, a história de Jorge Moreira é quase como uma espécie de anti-história. Ainda hoje, quando se pergunta a Jorge Moreira porque quis ser enólogo a resposta reside num desconcertante “não sei bem”! De forma franca e direta, como só ele sabe ser, Jorge Moreira assume que escolheu enologia por um simples acaso, quase um devaneio quando se sentiu, como quase todos os adolescentes, um pouco perdido na juventude. A ideia de ir para Vila Real e sair do Porto parecia-lhe um plano suficientemente bom para se inscrever na UTAD – Universidade de Trás-os-Montes e Alto Douro, no curso de enologia.
Com um começo assim seria difícil imaginar que Jorge Moreira se iria transformar num dos enólogos mais meticulosos e perfecionistas do Douro. À época acabou por fazer o curso sem grande esforço, mas também sem demonstrar um grande interesse pela vida de enólogo. Hoje, a afirmação pode até parecer quase irreal, mas a verdade é que Jorge Moreira nunca colocou sequer a hipótese de ser enólogo como forma de ganhar a vida.
Acabou o curso de enologia sem ter sequer a noção do que seria ser enólogo, das obrigações e responsabilidades, do prazer criativo que a profissão poderia ter. Acabou o curso quase sem ter visitado o Douro para além de um pequeno estágio obrigatório, que aceitou sem que a experiência despertasse uma vocação. Terminado o curso regressou ao Porto para enfrentar o estranho desafio comercial de vender lareiras e recuperadores de calor. A carreira comercial foi correndo bem ao mesmo tempo que a empresa prosperava, acrescentando uma experiência de gestão comercial e gestão de pessoal que acabariam por ser úteis mais tarde. A vida de enólogo é que continuava encostada a um canto da memória, que parecia votada ao abandono.
Quem nunca compreendeu a situação foram os progenitores de Jorge Moreira. Um dia decidiram conversar com um amigo com responsabilidades sérias na Real Companhia Velha, insinuando que a empresa faria bem em sugerir um estágio de vindima para o filho. Uma sugestão que foi bem aceite por Jorge Moreira, já que os meses de vindima e preparação, agosto, setembro e outubro, são pouco ou nada relevantes no negócio das lareiras.
Teve pela primeira vez contacto direto com a profissão para a qual tinha estudado e que nunca tinha realmente praticado. Ao contrário do que seria previsível gostou tanto da experiência que nem pensou voltar atrás. Não por coincidência, as vindimas correram tão bem que a Real Companhia Velha apostou de imediato em contratá-lo, acabando por integrar a nova divisão que a empresa tinha acabado de desenvolver, a Fine Wine Division. Uma divisão especial dentro da Real Companhia Velha que passou a ser chefiada por Jerry Luper, o famoso enólogo consultor norte-americano que foi coadjuvado por Jorge Moreira, que assumiu o papel de enólogo residente. Começou por assumir logo no primeiro ano, em 1996, responsabilidade direta pelos vinhos da Quinta do Cidrô, elaborados com castas estrangeiras, os Cidrô Chardonnay e Cabernet Sauvignon. Sete anos depois, quando decidiu sair da Real Companhia Velha, Jorge Moreira era responsável por todos os vinhos da casa, com exceção dos conhecidos Porca de Murça.
Durante os primeiros anos assumiu aquilo que na altura eram as práticas tradicionais dos enólogos do Douro e também da Real Companhia Velha. Por outras palavras, Jorge Moreira residia no Porto e passava o dia nas instalações de Gaia, assumindo a obrigação de manter visitas semanais ao Douro. Para além, claro, dos dois meses da praxe que passava no Douro durante as vindimas, na adega da Granja. Como seria de esperar, no início acabou por ter muito tempo livre, condição que decidiu aproveitar para estudar e procurar alimentar a formação e informação que lhe tinha faltado na universidade.
Com o que aprendeu e que foi implementando na Real Companhia Velha foi ganhando espaço, desenvolvendo o gosto pessoal e formando personalidade crítica. Aprendeu muito com Jerry Luper, ganhando bases práticas e um saber técnico e a experiência que o ajudaram a crescer dentro da empresa. Até que chegou o célebre momento do grito do Ipiranga, em que sentiu necessidade de mostrar as ideias, de expressar ideias, de escolher caminho próprio. Sentiu também que precisava saber mais sobre a vinha, de conhecer melhor o Douro e a terra para evoluir como enólogo. O que talvez seja não só curioso como sobretudo revelador do carácter tenaz, manteve durante todo este tempo o negócio paralelo das lareiras, dedicando-lhe grande parte dos fins de tarde e parte substancial dos fins de semana.
Foi por essa altura que percebeu ser o momento certo para comprar a vinha que tanto ambicionava, para avançar com o vinho e o projeto autónomos. Quando decidiu dar o grande passo ainda nem tinha decidido que iria viver no Douro, plano que concluiu em 2001. Nessa altura da vida visitava duas vezes por semana a adega da Quinta da Granja, da Real Companhia Velha, passando pela vinha do projeto pessoal, a que chamou Poeira, já perto das cinco da manhã. Durante o final de semana voltava ao Douro e à quinta pessoal para trabalhar na vinha. Um ritmo frenético, que não poderia ser sustentável durante muito mais tempo.
Por isso percebeu que teria de se mudar de vez para o Douro. Sobretudo quando às obrigações anteriores juntou ainda a Quinta de la Rosa. Foram anos dramáticos, que se regiam pelo ritual quase sagrado de passar primeiro pela Quinta de La Rosa, ainda durante a madrugada, para seguir para o Pinhão, para ver os vinhos Poeira. Seguia depois para as vindimas na Real Companhia Velha, onde ficava quase todo o dia para regressar à Quinta de La Rosa, já ao final da tarde, de onde ainda tinha de avançar uns quilómetros até chegar a mais uma visita aos vinhos próprios, perto do Pinhão.
Um esforço tremendo, que o obrigou a repensar responsabilidades. Por momentos interrompeu o vínculo com a Real Companhia Velha, casamento reatado após um divórcio curto, que em nada beliscou a relação com a família Silva Reis. O esforço de uma vida passada a velocidade ciclónica tem sido recompensado pelos vinhos espantosos que Jorge Moreira tem capitaneado ao longo desta carreira rica de 20 anos.
Hoje, os Poeira e derivados afirmam-se como uma das referências obrigatórias do Douro. O projeto pessoal que lançou no Dão em conjunto com os amigos Jorge Serôdio e “Xito” Olazabal continua a conquistar adeptos, mostrando uma saúde risonha. Ao mesmo tempo, os vinhos da Quinta de La Rosa conquistaram um espaço e mercado que no passado não tinham. Mas talvez ainda mais surpreendente seja a reviravolta efetuada nos vinhos da Real Companhia Velha, empresa que tinha perdido muito do sex appeal e que, no espaço de poucos anos, voltou a estar na boca de enófilo, jornalistas e críticos de vinho. Muito mais importante, empresa que viu as vendas aumentarem de forma notável, condição que é sempre a mais importante e a que deve ser medida.
Têm sido 20 anos de grandes conquistas pessoais e coletivas. Jorge Moreira impôs-se como um dos enólogos mais rigorosos de Portugal, um enólogo certeiro e carregado de personalidade, que apesar da frontalidade lendária conseguiu conquistar a admiração dos pares, a confiança dos jornalistas e o coração dos enófilos. Nada mau para os primeiros 21 anos de vindima…