Legado, o vinho dos afetos

Fotografia: Arquivo
José João Santos

José João Santos

Há um novo Legado, nativo de um ano tórrido e de produção escassa, difícil no Douro e que expôs a mais-valia das vinha centenárias – capacidade de resistir. A nova edição do mais afetivo dos vinhos da Sogrape foi pretexto de uma singela vertical que emparelhou as edições de 2015, 2013, 2011 e a estreante, 2008. Apresentado num dos mais antigos clubes de ténis do país, por entre o escuro da noite e a chuva forte, parecera que Fernando Guedes sorrira no court – aquele sorriso aberto e franco, que para quem com ele privou ficará guardado na memória como o mais especial dos legados.

 

O vinho dos afetos da Sogrape tem nova edição, a décima. Legado 2017 resulta de um ano particularmente desafiante em termos de viticultura, por ter sido muito quente, de vindima precoce e breve, consequentes produções escassas.
O enólogo Luis Sottomayor encontra alguns paralelismos com 1991 e 1995, mas a verdade é que 2017 obrigou a um exercício permanente de controlo de maturações, na medida em que ao menor descuido poder-se-ia incorrer em situações de sobrematuração ou até perda de uvas.


Os oito hectares de vinhas velhas da Quinta do Caêdo, Ervedosa do Douro (Cima Corgo), onde nasce o Legado, resistiram heroicamente ao ano seco e de temperaturas extremadas, permitindo concretizar um vinho que hoje mostra florais secos e grão de café, cedro, cereja escura, mirtilo e mais fruto de bosque, de perfil austero e altivo, quente e assertivo, com previsível boa guarda pela próxima década. Estagiou 30 meses em tonéis novos de carvalho francês de 1.200 lts, foi engarrafado em maio de 2020 e resultou num total de 2.538 exemplares. O PVP unitário é de 290,00€.

A Quinta do Caêdo foi adquirida pela Sogrape em 1990, tendo uma área total de vinhas de 24ha. Os socalcos pré-filoxéricos de vinha velha entusiasmaram sobremaneira Fernando Guedes, a ponto de ir insistindo com o enólogo Luis Sottomayor na feitura de um vinho exclusivo que ilustrasse aquelas uvas – Fernando Guedes, recorde-se, era também enólogo.

A média de produção é inferior a 0,5kg por cepa e cerca de 25 castas conseguiram ser identificadas até ao momento, um mapeamento sempre demorado que, para ser bem feito, tem ainda que ser exaustivo.
A vindima nunca se resume a uma só assentada, obrigando entre duas a três passagens para colher os diferentes cachos no ponto de maturação desejado. Sim, pura (e necessária) ourivesaria…

O primeiro Legado é de 2008. No portefólio DOC Douro da Sogrape, tornou-se num topo de gama, ganhando estatuto próprio, tal como o Barca Velha. Tem sido também um pretexto acrescido de envolvência familiar e de reconhecimento pelo trabalho desenvolvido por Fernando Guedes. É por isso hoje um vinho de uma sentida homenagem dos filhos e da equipa Sogrape, onde cada lançamento é realizado num local com significado no longo percurso de vida do mentor.
O novo Legado 2017 foi apresentado durante um jantar no Lawn Tennis Club da Foz, no Porto, dos mais antigos clubes de ténis portugueses, criado em 1900, na juventude frequentado por Fernando Guedes que, em 2018, ascendeu a sócio nr.1. Foi precisamente nesse ano de 2018 que nos deixou. “É um vinho muito especial para a nossa família”, reconhece o atual presidente da Sogrape, Fernando da Cunha Guedes, que sintetizou de modo feliz a apresentação da nova edição do vinho de todos os afetos: “Isto não é uma festa, é uma homenagem”.

No pré-jantar, oportunidade para realizarmos uma singela vertical com quatro edições anteriores e espaçadas temporalmente, que permitiram aferir o respetivo estado de evolução em garrafa. Estamos diante um vinho de vinha, que merece tempo e recompensa essa espera. O jantar teve autoria de Vasco Coelho Santos, do portuense Euskalduna, dos mais talentosos chefes de cozinha da atualidade. Uma edição especial de Mateus Rosé – não comercializada –, o Dão Pipas 1980 (Dão, tinto) e o Sandeman Porto Vintage 1948 harmonizaram com um menu de autor. A noite terminou com fado pela voz da talentosa Teresinha Landeiro.

Lá fora, por entre o escuro da noite e a chuva forte, parecera que Fernando Guedes sorrira no court – aquele sorriso aberto e franco, que para quem com ele privou ficará guardado na memória como o mais especial dos legados.