Licor de Singeverga, inspiração divina

Fotografia: Daniel Luciano
Marc Barros

Marc Barros

Na vila de Roriz, Santo Tirso, os monges do Mosteiro de Singeverga produzem uma das 11 bebidas monásticas existentes no mundo. Falamos, claro, do famoso licor. Desvendamos o que está por trás da sua elaboração e os tesouros que o mosteiro encerra.

 

A ordem religiosa dos beneditinos tem uma longa história desde a fundação, por S. Bento, no final do séc. V, sendo a mais antiga das ordens religiosas. “Remonta ao tempo dos grandes mestres do Cristianismo, como Santo Agostinho, Santo António ou São Cristóvão”. No seu percurso, chegou ao então Condado Portucalense a pedido do Conde D. Henrique; com a fundação da nacionalidade e a expansão para sul, encetada por D. Afonso Henriques, vieram outros ramos dos beneditinos, nomeadamente os cistercienses, cuja referência é o Mosteiro de Alcobaça.


Quem nos guia por este caminho é D. Bernardino Costa, abade do mosteiro beneditino de Singeverga. Trata-se do “único mosteiro com comunidade beneditina em exercício” (chegaram a ser 22) mas, “depois da expulsão das ordens religiosas, em 1834, tudo ficou na mão do Estado e particulares e cada um seguiu o seu destino próprio”. Até que, em meados do século XIX, uma família daquela zona do Ave doou a propriedade, que à época já se chamava Quinta de Singeverga e, “a partir de 1892, a comunidade beneditina aqui se instalou e começou a edificar o mosteiro”.


Esta comunidade, que celebra 130 anos, contou 120 membros. “Hoje são 20, que se vão adaptando aos novos tempos, mas vive ainda em grande parte da agropecuária”, incluindo a produção leiteira, carne e vinho verde, nos cerca de 80 ha. da quinta. Em paralelo, existe uma hospedaria, aberta a visitantes de todas as proveniências sociais, faixas etárias e diferentes crenças religiosas, “atraídos pela liturgia sóbria, ou pelo canto ou pela tranquilidade do lugar”. Desenvolvem-se oficinas, “que caracterizavam os mosteiros”, com trabalhos como “encadernações, carpintaria, trabalhos em madeira e esculturas” – e o famoso licor de Singeverga.

 

Ora et labora

A sua produção data de 1935. “É, no fundo, a nossa cara para o exterior, as pessoas conhecem-nos graças a este licor”, refere o abade do Mosteiro de Singeverga. E explica as origens desta bebida: “Os mosteiros têm como característica a adaptação ao lugar ou à região onde estão inseridos. A partir daqui criam algo que os distinga”. Dá como exemplo os monges na Bélgica, Alemanha ou Áustria, onde dominam a produção de cerveja; em França, imperam o champanhe ou o vinho (foi também em Fécamp que, no século XVI, a abadia local criou o famoso Bénedictine) e, em Espanha, “há também o licor”; de igual modo, este mosteiro “procurava uma produção que fosse a sua marca registada”. Serve, igualmente, o lema dos beneditinos, Ora et Labora, porquanto “a ociosidade é inimiga da Alma”, “devem os irmãos ocupar-se a certas horas no trabalho manual e na lectio divina”.
Com a ajuda de um engenheiro químico, de seu nome Botelho, desenharam uma fórmula, “que se mantém até hoje” e “foi sendo apurada”, para chegar ao licor produzido até aos dias de hoje. “Trata-se de um processo complicado, longo e meticuloso”, cujos passos essenciais são revelados pelo abade.


“Começamos com uma primeira destilação em álcool a 96 graus e fazemos a primeira maceração, durante cerca de uma semana, em garrafões de vidro de 60 litros”. Nesta fase, são inseridas “várias especiarias, no total de 12, o que torna este licor único”. Na fórmula destaca-se o papel do açafrão, que vem conhecendo aumentos de preço exorbitantes e pode chegar aos 4.000 euros por quilo. O segredo da fórmula reside não tanto nas especiarias listadas (coentros, cravinho, mirra aromática, baunilha, raiz angélica, noz-moscada, cálamo, canela ou chá preto) mas nas dosagens. “Segue-se a fase da destilação”, direta, da qual se extrai a segunda saída; aqui “obtém-se a essência alcoólica [a 70%] e passa-se à segunda maceração, durante quatro dias, nos mesmos garrafões, em que o objetivo é conferir ao líquido cor, sabor e volume de boca”, com “a introdução de corantes como açafrão, baunilha e coentros”. O licor vai estagiar nas pipas de carvalho no mínimo um ano, sendo engarrafado depois de uma filtragem.


A produção dá-se sobretudo no inverno, pois “o processo manual de destilação é feito a fogo”; elaboram-se 4.000 litros por ano, “o que corresponde a dez doses por ano, sendo que cada uma se limita a 400 litros, correspondendo a duas pipas”.
As garrafas são uma pequena obra de arte e os rótulos são colocados, um por um, à mão. É um trabalho monástico, que resulta numa bebida única, que integra um exclusivo conjunto de 11 bebidas monásticas existentes no mundo. Apresenta tom acobreado e límpido, onde se destacam aromas de especiarias e balsâmicos, como caramelo, do estágio em barrica. O equilíbrio entre o álcool e a doçura é notável e ganhará em ser servido fresco, ou até com uma pedra de gelo. Mostra potencial de evolução e envelhecimento em garrafa, como atestou a prova de um lote de 1973. Ganha aromas mais balsâmicos, de caramelo e tostados, figo e fruta cristalizada, bem como um enorme volume de boca. Nestas coisas que pedem tempo, os monges sabem como se faz.

 

Mosteiro de São Bento de Singeverga 
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