Na vila de Roriz, Santo Tirso, os monges do Mosteiro de Singeverga produzem uma das 11 bebidas monásticas existentes no mundo. Falamos, claro, do famoso licor. Desvendamos o que está por trás da sua elaboração e os tesouros que o mosteiro encerra.
A ordem religiosa dos beneditinos tem uma longa história desde a fundação, por S. Bento, no final do séc. V, sendo a mais antiga das ordens religiosas. “Remonta ao tempo dos grandes mestres do Cristianismo, como Santo Agostinho, Santo António ou São Cristóvão”. No seu percurso, chegou ao então Condado Portucalense a pedido do Conde D. Henrique; com a fundação da nacionalidade e a expansão para sul, encetada por D. Afonso Henriques, vieram outros ramos dos beneditinos, nomeadamente os cistercienses, cuja referência é o Mosteiro de Alcobaça.
Quem nos guia por este caminho é D. Bernardino Costa, abade do mosteiro beneditino de Singeverga. Trata-se do “único mosteiro com comunidade beneditina em exercício” (chegaram a ser 22) mas, “depois da expulsão das ordens religiosas, em 1834, tudo ficou na mão do Estado e particulares e cada um seguiu o seu destino próprio”. Até que, em meados do século XIX, uma família daquela zona do Ave doou a propriedade, que à época já se chamava Quinta de Singeverga e, “a partir de 1892, a comunidade beneditina aqui se instalou e começou a edificar o mosteiro”.
Esta comunidade, que celebra 130 anos, contou 120 membros. “Hoje são 20, que se vão adaptando aos novos tempos, mas vive ainda em grande parte da agropecuária”, incluindo a produção leiteira, carne e vinho verde, nos cerca de 80 ha. da quinta. Em paralelo, existe uma hospedaria, aberta a visitantes de todas as proveniências sociais, faixas etárias e diferentes crenças religiosas, “atraídos pela liturgia sóbria, ou pelo canto ou pela tranquilidade do lugar”. Desenvolvem-se oficinas, “que caracterizavam os mosteiros”, com trabalhos como “encadernações, carpintaria, trabalhos em madeira e esculturas” – e o famoso licor de Singeverga.
Ora et labora
A sua produção data de 1935. “É, no fundo, a nossa cara para o exterior, as pessoas conhecem-nos graças a este licor”, refere o abade do Mosteiro de Singeverga. E explica as origens desta bebida: “Os mosteiros têm como característica a adaptação ao lugar ou à região onde estão inseridos. A partir daqui criam algo que os distinga”. Dá como exemplo os monges na Bélgica, Alemanha ou Áustria, onde dominam a produção de cerveja; em França, imperam o champanhe ou o vinho (foi também em Fécamp que, no século XVI, a abadia local criou o famoso Bénedictine) e, em Espanha, “há também o licor”; de igual modo, este mosteiro “procurava uma produção que fosse a sua marca registada”. Serve, igualmente, o lema dos beneditinos, Ora et Labora, porquanto “a ociosidade é inimiga da Alma”, “devem os irmãos ocupar-se a certas horas no trabalho manual e na lectio divina”.
Com a ajuda de um engenheiro químico, de seu nome Botelho, desenharam uma fórmula, “que se mantém até hoje” e “foi sendo apurada”, para chegar ao licor produzido até aos dias de hoje. “Trata-se de um processo complicado, longo e meticuloso”, cujos passos essenciais são revelados pelo abade.
“Começamos com uma primeira destilação em álcool a 96 graus e fazemos a primeira maceração, durante cerca de uma semana, em garrafões de vidro de 60 litros”. Nesta fase, são inseridas “várias especiarias, no total de 12, o que torna este licor único”. Na fórmula destaca-se o papel do açafrão, que vem conhecendo aumentos de preço exorbitantes e pode chegar aos 4.000 euros por quilo. O segredo da fórmula reside não tanto nas especiarias listadas (coentros, cravinho, mirra aromática, baunilha, raiz angélica, noz-moscada, cálamo, canela ou chá preto) mas nas dosagens. “Segue-se a fase da destilação”, direta, da qual se extrai a segunda saída; aqui “obtém-se a essência alcoólica [a 70%] e passa-se à segunda maceração, durante quatro dias, nos mesmos garrafões, em que o objetivo é conferir ao líquido cor, sabor e volume de boca”, com “a introdução de corantes como açafrão, baunilha e coentros”. O licor vai estagiar nas pipas de carvalho no mínimo um ano, sendo engarrafado depois de uma filtragem.
A produção dá-se sobretudo no inverno, pois “o processo manual de destilação é feito a fogo”; elaboram-se 4.000 litros por ano, “o que corresponde a dez doses por ano, sendo que cada uma se limita a 400 litros, correspondendo a duas pipas”.
As garrafas são uma pequena obra de arte e os rótulos são colocados, um por um, à mão. É um trabalho monástico, que resulta numa bebida única, que integra um exclusivo conjunto de 11 bebidas monásticas existentes no mundo. Apresenta tom acobreado e límpido, onde se destacam aromas de especiarias e balsâmicos, como caramelo, do estágio em barrica. O equilíbrio entre o álcool e a doçura é notável e ganhará em ser servido fresco, ou até com uma pedra de gelo. Mostra potencial de evolução e envelhecimento em garrafa, como atestou a prova de um lote de 1973. Ganha aromas mais balsâmicos, de caramelo e tostados, figo e fruta cristalizada, bem como um enorme volume de boca. Nestas coisas que pedem tempo, os monges sabem como se faz.
Mosteiro de São Bento de Singeverga
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