Mouchão: Do avô do Alicante ao branco renascido

Fotografia: Ricardo Garrido

Mouchão é sinónimo de Alentejo. E de Alicante Bouschet. Todavia, a célebre propriedade tem igualmente tradição em brancos, havendo registos centenários que enaltecem a qualidade do Verdelho ali produzido, algum dele com passagem pelos famosos lagares da herdade.


Iain Reynolds Richardson empreendeu nos últimos anos uma autêntica empreitada de descoberta do passado do Mouchão, procurando perceber o que está na origem do que alimenta a casa – as vinhas. O produtor quer ir mais fundo nesse esforço de investigação, não se contentando com a bandeira de esta ser a casa do Alicante Bouschet em Portugal. Quer saber mais para, a partir daí, preparar melhor o futuro.

Sabendo-se que a emblemática casta resulta do cruzamento da Grenache com o Petit Bouschet, Iain quer entender o que valem os “progenitores”. A paternidade do Petit Bouschet são as variedades Aramon e Teinturier du Cher. Se a primeira mantém alguma tradição em Languedoc-Roussillon, sul da França, a segunda perdeu expressão, estando residualmente plantada numa ou noutra vinha daquele país, na África do Sul e em Portugal. Pois bem, Iain conseguiu algumas varas na Estação Vitivinícola Nacional e plantou este ano 500 plantas deste “avô” do Alicante Bouschet, com o objetivo de dentro de dois anos realizar algumas microvinificações e ficar a conhecer o efetivo potencial da variedade.

No que diz respeito ao Verdelho, Iain admite retomar no futuro alguma da tradição secular, ou seja, experimentar vinificação em lagar ou mesmo vinhos brancos de sobremesa. Já este ano, o Mouchão plantou mais 1,5 hectares da variedade, depois de em 2015 ter feito a reenxertia de duas parcelas de Perrum para Verdelho. O Ponte Verdelho 2019 acaba por ser simbólico, uma espécie de primeiro Verdelho no Mouchão em 100 anos, obtido a partir de pés de vinha com mais de 25 anos. Se o Alicante é a cara tinta do Mouchão, o Verdelho poderá afirmar-se a cara branca da herdade.

Os 5ha de castas brancas estão plantados junto à barragem, a 35 metros de altitude, em solos de cascalho adjacentes às ribeiras do Almadafe e Jordana, que ajudam a conferir maior acidez. 

Antão Vaz e Arinto predominam, sobra um pouco de Fernão Pires. Iain anda, entretanto, às voltas para identificar a casta que tratavam no Mouchão por “Blanqueta” (também nome de variedade de azeitona) e é bem provável que consiga a descodificação a qualquer momento.

Nos tintos, o Alicante domina por entre um encepamento que conta ainda as presenças de Trincadeira, Syrah, Touriga Nacional e Moreto. Numa imensidão de 900ha de área total, a opção tem sido o plantio das variedades tintas em solos de várzea, em parcelas (a mais famosa é a de Carapetos) que à entrada das linhas têm bonitas papoilas – um dos muitos postais ilustrados possíveis de obter numa visita.


Mouchão 2014 e um relançamento muito feliz

Pela notável capacidade de envelhecimento que genericamente apresentam, os vinhos portugueses reúnem as características que permitem relançamentos felizes. Ainda vai sendo raro assistirmos ao regresso de colheitas antigas de vinhos tranquilos, mas justiça seja feita ao Mouchão por o fazer com alguma regularidade (basta recordarmos a série Mouchão Colheitas Antigas).

A surpresa é agora o relançamento de um branco – Dom Rafael 2011, um lote de Antão Vaz, Arinto e Perrum, de um ano de exceção em Portugal. Não conheceu malolática, apresenta-se nesta fase com oito anos de estágio em garrafa. A tensão que possui vai garantir-lhe mais um tempo de saudável evolução, sendo que a untuosidade e as previsíveis notas de algum fruto de caroço e melaço não o aborrecem, enaltecem-no. O relançamento, a preço muito convidativo, salda-se em 1.129 garrafas.

Neste regresso ao Mouchão, a Revista de Vinhos provou também o novo Mouchão 2014, que chegará ao mercado em setembro. Blend de Alicante Bouschet (72%) e Trincadeira (28%), é um vinho portentoso e raçudo, de matriz clássica, que os quase seis anos volvidos sobre a colheita permitiram amaciar. Mostra-se hoje mais domado, profundo e fresco, com pergaminhos que permitirão evolução longa. Provaram-se ainda licorosos e aguardentes.

“Mouchão é Mouchão”, diz-nos Hamilton Reis, o enólogo que ingressa nesta herdade após 14 anos passados no projeto Cortes de Cima. É o mais recente membro da equipa liderada por Iain Reynolds Richardson, que continua a contar o indispensável João Manuel Alabaça como adegueiro e Paulo Laureano como enólogo consultor.

Novecentos hectares de propriedade, 43ha de vinhas, 25 tonéis de 5.000 lts., 11 tonéis de 2.500 lts., 150.000 garrafas de produção média anual… Por muitos números que se escrevam sobre o Mouchão, esta é daquelas histórias que acima de tudo será descrita tendo por base o carácter. O carácter dos Reynolds e dos grandes vinhos ali produzidos.

TEXTO: José João Santos e Nuno Guedes Vaz Pires