O Atlântico engarrafado

Baías e Enseadas

Fotografia: Fabrice Demoulin
Manuel Moreira

Manuel Moreira

Até aos vinte e tal anos, Daniel Afonso não bebia vinho. Ganhou-lhe o gosto e deixou-se arrastar e encantar para este mundo. O gosto pelo vinho, levou-o a abrir dois wine bar em Lisboa. Bem-sucedido nessa aventura, e estava á vista o próximo passo: fazer o seu vinho. O oceano numa garrafa.

 

Tão perto de Colares e Sintra e não nos vemos envoltos pela luxuriante sombra do arvoredo. A várzea ficou para trás, lá em baixo, numa guinada. E, agora a subir a caminho de Gouveia, vemo-nos numa estrada retilínea de vista desafogada, ladeada pelo verdejante rasteiro dos campos e lá ao fundo a silhueta do Castelo dos Mouros, encoberta pelo nebuloso da manhã, e o ténue azulado do oceano. É neste contexto que se encontram as três parcelas de vinha de Daniel Afonso, o produtor, o ‘vigneron’, o faz tudo no projeto Baías e Enseadas. São duas parcelas em Gouveia e outra na Codiceira, duas aldeias na freguesia de São João das Lampas, a norte da Praia das Maçãs e das Azenhas do Mar. Distam pouco mais de um par de quilómetros uma da outra.


Curiosamente, até aos vinte e tal anos, Daniel Afonso não bebia vinho. Ganhou-lhe o gosto e deixou-se arrastar e encantar para este mundo. O gosto pelo vinho levou-o a abrir dois ‘wine bar’ em Lisboa. Bem-sucedido nessa aventura, estava à vista o próximo passo: fazer o seu vinho. Materializar o entusiasmo através do seu vinho e que esse vinho fosse ao encontro do seu gosto. Não lhe bastava fazer um vinho só para si ou para beber com os amigos. Das mil garrafas do primeiro vinho feito em 2015, da vindima de 2020 já foram produzidas 6.000 garrafas e para 2021 pensa fazer 8.000. Daniel justifica-se: “quero projetar uma marca”.


O projeto Baías e Enseadas é composto por um naipe de vinhos brancos de forte vinco de acidez, salinidade e estrutura a partir de Arinto, Fernão Pires e Malvasia de Colares, Chardonnay e Castelão, todos certificados como vinho regional de Lisboa. Apesar disso, Daniel procurava, obstinado, uma vinha para fazer vinho Colares - “e quero ter Ramisco à força toda!” E lá encontrou uma vinha para fazer o Colares ali mesmo em Gouveia, bonita aldeia de características saloias conhecida como Aldeia em verso, porque as suas placas toponímicas têm todas, ou quase todas, uma quadra alusiva ao nome de cada rua. É uma vinha minúscula de chão de areia plantada em 2014 a escassas centenas de metros da Capela de Nossa Senhora de Belém. Está rodeada por uns muros do casario de um lado e por um pinhal do outro, assim ao jeito de um quintal ao qual poderíamos chamar, com graça, um “clos” como na Borgonha. É a vinha mais próxima do mar, mas a única vinha em que não se vê o mar. O pinhal que rodeia a vinha corta muito o sol, as vinhas só apanham sol da parte da tarde. Com tão pouco sol, levou Daniel a pensar “vou meter uma casta que se desenvolva mais rapidamente”, e plantou Galego Dourado. Pois a Malvasia precisa de sol. Mas a Galego Dourado também não o convenceu e enxertou algumas linhas com Malvasia de Colares, pensando “como está na areia também se desenvolve mais depressa”. É uma vinha aramada, distinta da tradicional vinha “rasteira” de Colares. A Malvasia de Colares desta vinha já põe um sorriso de agrado em Daniel e com a qual encheu uma barrica de 200 litros e outra de 100 litros. Diz que a junção desta à outra Malvasia de chão rijo dá “a melhor barrica”.


A outra vinha em Gouveia, ainda que um pouco maior, representa somente 0,5 hectares. Encontra-se numa encosta com vista para o mar, onde várias castas partilham o chão com coelhos, caracóis, com ervas aromáticas e alguma vegetação típica da proximidade marítima, levando a tratar-se de uma vinha em regime biológico. Não é, mas Daniel tenta o mais que pode fazer tudo em biológico. E, com convicção, atira: “A malta só fala no vinho, mas não é o mais importante, é o planeta. O mais importante é chegar aqui e ver as abelhas. Se isto tem abelhas é porque estou a fazer um bom serviço”. A vinha em encosta propicia três níveis de maturação das uvas, o que leva Daniel a vindimar tudo numa só passagem. “O equilíbrio faz-se entre as diferentes maturações das uvas do topo até à parte baixa da encosta”, refere.


Já na outra vinha, na Aldeia Galega, a pedra é bem mais presente, como se vê no amontoado das enormes lajes retiradas do solo e postas ao lado da vinha onde o calcário está associado a sílex. Noutra secção, surge algum basalto e não passam despercebidas as conchas de fósseis: “O chão está pejado de fósseis de ostras, enquanto em Gouveia tenho no solo fósseis de amêijoas”, abrindo os braços para exemplificar o tamanho. 
Esta foi a primeira vinha, onde tudo começou, em 2012. Boa parte das castas são as mesmas, aqui e em Gouveia. Mas Daniel encontra-lhes bastantes diferenças, a começar na produção média bastante inferior que a vinha de Gouveia, que também dá mais álcool, mais acidez e fruta. Esta vinha na Aldeia Galega tem mais concentração e “traz mais salinidade”, apesar de ser a vinha mais distante do mar, que está a 5 km e Gouveia a 3 km.

Vinhos com personalidade

A prova de barricas das castas e das vinhas em separado confirma plenamente a personalidade de cada uma delas. No primeiro vinho, de 2015, misturou todas as castas. Hoje já não é assim. Cada casta, seu vinho. Arinto, Malvasia, Fernão Pires, Chardonnay e Castelão. E quando alguma se destaca e enche as medidas a Daniel, é promovida a Escolha Pessoal. São vinhos moldados pelo “clima atlântico extremo com influência da serra de Sintra, com muitos dias de nevoeiro no verão, até final da manhã e retorna à tarde, muito vento quando não está nevoeiro”. As temperaturas moderadas, os solos de base argilo-calcários, são os restantes ingredientes com que Daniel conta para fazer os vinhos que adora: “Perfil de vinhos mais leves, mais frescos”. E, para Daniel, “os vinhos têm de representar a região”, e “têm de ser cristalinos”. Na vinificação, a filosofia é de intervenção mínima, mas com “muito trabalho” e muito cuidado e dedicação diária.


Os vinhos Baías e Ensedas mostram forte personalidade, onde imperam o vigor e a impressionante estrutura, de acidez acutilante e temperados com salinidade, captando para a garrafa esta área tão próxima de Sintra e que já lhe permitiu alcançar parceiros rendidos aos seus vinhos nos Estados Unidos que comprariam, se Daniel assim quisesse, quase toda a produção. O projeto é recente, mas os vinhos, nestas poucas colheitas, já demonstram um estilo bem decidido para alguém que sempre adorou os vinhos de Lisboa, “a melhor região para vinhos brancos do país!”


Baías e Enseadas
M. 964 028 175
S. https://www.facebook.com/baiaseenseadas/