Puro prazer: harmonizações à beira-rio

Fotografia: Fabrice Demoulin
Marc Barros

Marc Barros

Na Ribeira do Porto, com vista para o Douro, o restaurante Casario da Gran Cruz House, ‘boutique guest house’ pertença do grupo de Vinho do Porto, foi palco de uma harmonização em que se juntaram charutos cubanos, espirituosos e, claro, fortificados. Puro prazer…

 

Com mestres de cerimónia deste calibre, altos voos se antecipavam. Pois, ao juntar no restaurante Casario, na Ribeira do Porto, o Habanos Master Pedro Ramos Rocha e Alejandra Gonzalez, respetivamente diretor geral e diretora de marketing da Empor, a Alexandre Leitão, ‘brand ambassador’ de Espirituosas da Vinalda, com os anfitriões Elsa Couto, Hubert Wolff e José Manuel Sousa Soares, ao redor de uma mesa orquestrada pela batuta do chefe Miguel Castro e Silva, não poderíamos esperar menos do que puro prazer hedonista.


Desta feita, o painel contou com a presença de espirituosos e fortificados. Neste caso, ao Vinho do Porto juntaram-se exemplares vindos de Jerez, a primeira denominação de origem espanhola, datada de… 1933. No seu longo historial, este vinho, cujas uvas são cultivadas num triângulo entre as cidades de Jerez de la Frontera, El Puerto de Santa María e Sanlúcar de Barrameda, conheceu diferentes períodos ao longo dos séculos, vivendo hoje uma fase de reafirmação internacional.
Aqui predomina um sistema de vinificação e evolução dos vinhos único, denominado solera. Esta dá-se após uma primeira fermentação dos mostos (fase em que são divididos em finos e olorosos, consoante o volume de álcool), sendo depois colocados em barricas de carvalho – as botas – dispostas em diferentes níveis. Cada um destes recipientes alberga vinhos de diferentes idades, sendo que os mais novos – criaderas - estão no topo e os mais velhos na base. No envelhecimento, determinada quantidade de vinho Jerez é distribuída entre os níveis, dos mais altos e jovens para os inferiores e velhos. Desta forma, o vinho engarrafado resulta do lote de diferentes idades – podendo estagiar durante décadas… -, mantendo uma incrível consistência.
Isso mesmo comprovou-se nos Jerez Matusalem Oloroso Dulce 30 Anos (66,00€) e Del Duque Amontillado, ambos produções González Byass. No primeiro caso, uma solera meio-doce 25% Pedro Jimenez e 75% Palomino. Fermentado em inox, o mosto de Palomino é fortificado a 18% e o Pedro Ximenez a 15,5%. Cada vinho entra numa solera em cascos de carvalho americano para envelhecer em contacto com o ar. Os vinhos são depois loteados, entrando na solera Matusalém, onde continuarão por mais 15 anos. Depois de 30 anos de envelhecimento, resulta um Oloroso doce, de cor mogno, com aromas de frutos secos, tâmaras, passas e especiaria. Doce e suave, elegante e complexo, muito longo no fim de boca.


Por sua vez, o Del Duque Amontillado é produzido exclusivamente com uvas Palomino. Não fortificado, passará quatro anos em solera sob uma capa de leveduras, conhecida como ‘flor’. Envelhece em contacto com o ar, permitindo a oxidação e, depois de 4 anos, entra na solera Del Duque, onde permanece por mais 22 anos. No total, estagia uma média de 30 anos em carvalho americano, proporcionando um Amontillado muito velho. Dourado escuro, aromas de flor e oxidação, fruto seco, fruta madura. Seco, intenso, estruturado, de final aromático interminável.


Mas, falando em fortificados, não poderíamos deixar de fora o ‘nosso’ Vinho do Porto. E, a jogar em casa, o magnífico e raríssimo Dalva Porto Colheita Tawny 1950 (549,00€), com edição limitada a 700 garrafas numeradas. Da responsabilidade do enólogo José Manuel Sousa Soares, este Colheita, com meio século de complexidade e elegância, revela cor ambarina, aromas ricos e profundos de torrefação e do estágio em madeira, com destaque para o caramelo, cacau e café torrado. Notas de acácia e damasco, num conjunto de enorme complexidade, que se desvela com o arejamento. Na boca é untuoso, fresco e vivo, final interminável, sedutor e rico. Vale por si, mas emparelha na perfeição com frutos secos, sobremesas de ovos ou especiarias, ou o tradicional “Bolo Rei”.
Esta categoria de vinhos goza de uma aura especial no que toca ao casamento com charutos – no caso, San Cristóbal de la Habana “Saudade”, vitola selecionada como Edição Regional para o mercado português. De medida 52 de cepo e 135 mm de comprimento, é elaborado com folhas de Vuelta Abajo, comercializado em caixas de 10. Oferece um sabor rico e complexo no primeiro terço, com destaque para as nuances de torrefação e especiaria, aromas que se desenvolvem ao longo do segundo terço, terminando com suavidade, de combustão uniforme, e de amplo leque de maridagens.


No decurso da cerca de uma hora de tempo de fumo, a conversa desenrolou-se em torno do universo dos charutos, em que Pedro Rocha foi desvendando aos presentes um pouco deste mundo, ele próprio resultado de um terroir especial, igualmente protegido por Denominação de Origem. Partindo da sua história, desde que, em 1492, Cristóvão Colombo chegou a Cuba, deparando-se com hábitos dos índios locais, que enrolavam umas folhas misteriosas a que davam o nome de Cohiba, o diretor geral da Empor mostrou toda a rica dimensão de fumo, fruto do cultivo da planta Tabaco Negro Cubano em solos característicos, a partir de sementes selecionadas, bem como da sabedoria dos ‘vegueros’ e ‘torcedores’. A DO Habanos aplica-se a puros totalmente feitos à mão, envolvendo mais de 500 procedimentos manuais, desde a colocação da semente na terra até ao acondicionamento dos charutos nas suas caixas. Aliás, a filigrana de todos estes ‘participantes’ no encontro promovido no Casario esteve na base das harmonizações propostas.

‘Spirit’ selection

Estas incluíram ainda espirituosos como runs (de proveniências tão diversas como Cuba, Martinica e Madeira), scotch whisky e aguardentes do Douro ou de medronho do Alentejo.
De Cuba, o rum Edmundo Dantes Reserva 15 Anos (75,00€), elaborado em sintonia com maestros torcedores cubanos para obter um rum que harmoniza perfeitamente com o fumo. De produção limitada a 3.000 garrafas por ano, revela um carácter sedoso, aveludado, em que o tempo de estágio enriquece o conjunto e enobrece a parceria com o charuto.
Também das Caraíbas, mas da DO Martinica, o rum Saint James Single Cask 1999 (120,00€) é destilado em coluna e estagiado numa barrica única de carvalho branco americano. De cor mogno, apresenta notas de figos, chocolate e fruto seco, algo especiado. Na boca é suave, com nuance de torrefação.


Da não menos tropical ilha da Madeira, o rum agrícola William Hinton Whisky Cask (99,00€) é um lote com mínimo de 25 anos envelhecido outros três anos e estagiado nove meses em cascos de whisky, resultando distinto e complexo. Esta categoria de espirituosos obriga a que apenas possa ser usada cana de açúcar da ilha da Madeira, sendo que, para produzir um litro de rum a 50% de volume alcoólico são necessários 12 kgs. de cana.
Sabendo que na Escócia existem nada menos que cerca de 130 destilarias, rapidamente constatamos que o universo do whisky escocês é denso, amplo e rico. A atestar essa riqueza, o Glen Moray 21 Anos Port Wood Finish (140,00€) envelhece em barricas de carvalho americano durante 19 anos, onde desenvolve uma intensa doçura picante, ao estilo tradicional de Speyside. Posteriormente, este single malte é colocado em barricas de Vinho do Porto, onde lapida arestas e ganha o seu estilo aveludado muito próprio, com as notas frutadas e da madeira, como as baunilhas e toffee, surgem a par de especiados suaves.


Finalmente, um toque de portugalidade na sessão, sob a forma de duas aguardentes exclusivas: Dalva Aguardente Vínica Velhíssima (85,00€) e Cerca da Medronheira (64,99€). A Dalva Aguardente Vínica Velhíssima resulta da tradição da C. da Silva na elaboração de aguardentes de qualidade superior, como este exemplar, envelhecido em cascos de Vinho do Porto de 550 litros durante mais de 30 anos. De cor escura e brilhante, ostenta notas complexas, onde o fruto seco e a torrefação desvelam ainda nuance de fruto cristalizado. Macia e muito persistente, é uma combinação divina com o charuto San Cristóbal de la Habana.


Na Herdade do Rio Torto, bem junto ao Alqueva, são produzidos os frutos Arbutus unedo (medronho) que dão origem à aguardente Cerca da Medronheira. Espirituoso histórico - a aguardente de medronho começou a ser produzida no Alentejo logo no século X pelos árabes para fins medicinais – estagiado em cascos de carvalho, destaca-se pelos seus aromas frutados e pela intensa frescura de boca.
Num remate categórico, entre fumo, espirituosos e fortificados, permanece a sensação, omnipresente e real: os charutos pedem tempo, as harmonizações são tema de profunda e prazenteira investigação e no Casario come-se muito bem!