Quinta da Alorna, a poesia de um château

Fotografia: Ricardo Garrido

“Como está sereno o céu / como sobe mansamente / a Lua resplandecente / e esclarece este jardim!”. A poesia da Marquesa da Alorna, tantas vezes melancólica, parece fazer mais sentido quando contemplamos o palácio de paredes rosa claro, os jardins tratados com detalhe, as vinhas e a floresta até onde a vista alcança. A Quinta da Alorna está em vésperas de celebrar 300 anos. Permanece sólida mas continua irrequieta, a traçar vinhos e planos para o futuro, olhando para as pedras como palavras de um poema ainda por escrever.

 

TEXTO E NOTAS DE PROVA José João Santos, Nuno Guedes Vaz Pires

 

A riqueza patrimonial associada ao vinho português faz-nos, frequentemente, dar de caras com autênticos châteaux, muitos dos quais de traça semelhante à que vemos nas incursões a Bordéus. A região francesa tem sabido preservar e explorar esses legados arquitetónicos ao limite, a ponto de os tornar nos maiores símbolos que os turistas associam àquela região. Fachadas e jardins impolutos, brasões que cintilam, esquadrias aparentemente perfeitas. Não será exagero questionar-se se metade dos turistas que se “instagrama” com um château em fundo alguma vez se terá dado ao trabalho de visitar a vinha associada à respetiva marca. Provavelmente, não.


A verdade é que um château bordalês continua a ter valorizações, financeiras e aspiracionais, de causar inveja à generalidade dos territórios do mundo do vinho, Portugal incluído. Aliás, pelo nosso país vários destes châteaux permanecem escondidos da maioria do público, propositada ou inconscientemente. Quem sabe, quando a informação circular, quando as portas se entreabrirem e as fotos da praxe se tornarem possíveis, certamente não faltarão enoturistas prontos a valorizar de outra forma o que por vezes apenas conhecem de ver nas prateleiras ou nas cartas de um restaurante. E se o acesso for fácil e cómodo, como acontece com o foco desta reportagem, numa das estradas para Almeirim, o potencial deveras aumentará.
A Quinta da Alorna é um dos châteaux portugueses. A longa história inicia-se com D. Pedro de Almeida, tornado 1º Marquês de Alorna pelo rei D. João V, em reconhecimento pela conquista da Praça Forte de Alorna nas cercanias de Goa (Índia). Estamos em 1723 e as terras de que falamos eram então conhecidas por quinta de Vale de Nabais.


D. Pedro de Almeida era o avô de D. Leonor, a 4ª Marquesa de Alorna, tradutora e pedagoga, igualmente poetisa conhecida como Alcipe, que viveu entre 1750 a 1839 e marcou uma época, não somente pela escrita erudita, tantas vezes melancólica, mas sobretudo por transportar até à realidade portuguesas algumas das mais vanguardista ideias europeias. Anos volvidos, duas das filhas da marquesa venderam a propriedade aos condes da Junqueira, tendo os herdeiros decidido aliená-la em hasta pública.
Manuel Caroça, conceituado médico dentista, corretor de mercadorias e homem de negócios astuto, adquiriu a quinta e tornou-se no único proprietário. Era o bisavô dos atuais accionistas.
Há cinco gerações na esfera da família Lopo de Carvalho, tem Pedro Norton (gestor em teoria e ciência política, mestre em gestão televisiva, durante anos ligado à administração do grupo Impresa, do qual foi presidente executivo, atual comentador na RTP, gestor e CEO da energética Finerge) como presidente do Conselho de Administração. A família, em 2007, decidiu profissionalizar a gestão, isto é, quem gere presta contas ao Conselho de Administração, não havendo ninguém da família com funções executivas.

Uma marca de Portugal

Na planície ribatejana, a Quinta da Alorna é uma imensidão de 2.800 hectares, dos quais somente 160ha são de vinha. A principal mancha, 1900ha, é floresta, incluindo montado de sobro, de onde é retirada cortiça, pinhal manso para produção de pinhão e eucaliptos para pasta de papel. Nos 500ha de regadio coexistem produtores que têm por destino a indústria agroalimentar. Sem medo de nomear os destinos, uma espécie de preconceito ainda reinante no setor, o milho e a batata seguem para a Matutano, o amendoim para a PepsiCo, as ervilhas para a Dardico e também há batata-doce, cenouras... Somam-se seis centrais de produção de energia fotovoltaica, que permitem uma autonomia energética de 61%.


No caso concreto do vinho, os primeiros passos com marca própria no mercado surgem no pós-25 de abril. Em passo seguro, ao longo destas décadas a Alorna afirmou-se como das mais sólidas marcas de vinho não apenas da região do Tejo mas de todo o país, alcançando um equilíbrio de realçar entre a presença na grande distribuição e no setor da restauração. A consistência apresentada, a simpatia do preço face à qualidade apresentada, levaram a fidelizar públicos.
Hoje, a produção média anual cifra-se em 2,2 milhões de garrafas, 46% destinadas à exportação: Brasil, Polónia, Reino Unido, China, Rússia e EUA figuram nos primeiros lugares por entre os 20 mercados. Dos principais desafios do médio prazo está a valorização dos produtos, admitindo a necessidade de aumentar o preço médio por garrafa e reforçar a presença das gamas superiores nos restaurantes e garrafeiras.  O off trade representa nestes dias 70% da faturação.
Nestes últimos anos, o portefólio tem-se alargado. Lutra é uma gama pensada para consumidores mais jovens, propondo vinhos brancos e tintos de perceção imediata. A ideia é atingir em breve as 150.000 garrafas nesta linha, muito pensada para exportação. A gama Reserva das Pedras encaixa acima dos Reserva e abaixo dos topos de gama Marquesa da Alorna.


Reserva das Pedras, em concreto, é um nome inspirado numa vinha onde salta à vista calhau rolado, zona de Charneca, prova que por ali passou o Tejo. Solo muito pobre, 70% do qual areia, sem rega, onde a vinha procurou as fissuras do subsolo para instalar raízes que lhe permitem obter os nutrientes necessários para viver e sobreviver, sobretudo em anos muito quentes e secos, como está a ser o atual. Por enquanto, um branco de Fernão Pires e um tinto de Castelão são os primeiros exemplares desta gama, estando na forja o lançamento de um monocasta de Tinta Miúda saída da vindima de 2020, ao qual se seguirá um Alicante Bouschet de 2021.


Pedro Lufinha, o diretor-geral da Quinta da Alorna, lembra as inovações que foram sendo perseguidas ao longo do tempo, recordando plantios de castas menos comuns no Tejo, o lançamento dos Grande Reserva, os rosés, os colheita tardia.
Martta Reis Simões, a enóloga que hoje faz dupla com Luis Branco Lérias, conhece bem cada pedaço de terra e continua a encarar a Alorna como um permanente desafio. Os solos de Charneca são onde está plantada a maioria das vinhas (115ha), estando nas zonas de transição de Campo, mais perto do rio e com mais areia, a restante mancha de vinhedos. Martta transformou, na última década e meia, o perfil de alguns vinhos, tornando-os mais elegantes, menos concentrados. Nota-se bem ao provarmos, por exemplo, os tintos de Castelão, o “amor à primeira vista” da enóloga. Acentua-se esse entendimento nos brancos, sobretudo com a presença do Arinto em vários lotes, para acrescentar frescura, acidez, mineralidade, tensão.
Nas vésperas de a Alorna celebrar 300 anos, está no segredo da adega o lançamento de uma edição especial comemorativa, um tinto de 2019, ainda sem nome definido, que terá apenas 800 garrafas. Também muito curioso é o Abafado de Fernão Pires, com aguardente obtida igualmente a partir de Fernão Pires, ainda em cuba mas que já tivemos oportunidade de provar. Exótico e de perfil oxidativo, combina notas de amêndoa e aniz, melaço e fruto desidratado.
O enoturismo será outra das vertentes a explorar no curto prazo. Visitas e provas, piqueniques nas vinhas, passeios pelos diferentes terroirs e culturas da propriedade. Talvez assim seja possível captar melhor a dimensão poética da Marquesa da Alorna, em trechos como este:

“Vai a fresca manhã alvorecendo,
vão os bosques as aves acordando,
vai-se o Sol mansamente levantando
e o mundo à vista dele renascendo”.

 

Vinhos do produtor disponíveis em VINHA.PT.

 

Quinta da Alorna
2080-187 Almeirim
T. 243 570 700 
E. geral@alorna.pt