Quinta das Carvalhas: A joia da Real Companhia Velha

Fotografia: Daniel Luciano

A Quinta de Cidrô, em S. João da Pesqueira, foi o terreno escolhido por Pedro Silva Reis, atual presidente da empresa, para avançar num projeto à data inovador e que enfrentou muitas resistências dentro da própria empresa, entre as quais a do próprio pai, então o responsável pela RCV. Álvaro Martinho, Jorge Moreira e Rui Soares quase que coincidiram na entrada na Real, dando origem a um programa de experimentação que recebeu o nome de Fine Wine Division, visto, até internamente, com grande desconfiança.

 

Na posse da empresa desde 1972, a Quinta de Cidrô, assente em solos xistosos em altitudes de 500 a 600 metros, foi intervencionada com a plantação de parcelas estremes, utilizando castas provenientes de seleção clonal, grande parte de variedades ditas “internacionais”, como Chardonnay ou Cabernet Sauvignon, entre outras. Isto, frisamos, numa das casas mais antigas e conservadoras do Douro.

Para avançar com este projeto arrojado, era essencial ter um grande sucesso comercial, demonstrativo do acerto no caminho. Este surgiu em 1996, sob a forma do Quinta de Cidrô Chardonnay e do seu homólogo Cabernet Sauvignon, castas plantadas em 1993 e cujos vinhos eram feitos inicialmente sob a batuta do enólogo norte-americano Jerry Adler, secundado por Jorge Moreira. “Estes dois vinhos abriram imensas portas nos mercados internacionais para os vinhos de mesa da RCV nos anos 90”, recorda o atual diretor de enologia da empresa. Hoje, poucos duvidarão do sucesso da estratégia, que assenta na produção de “vinhos de gama alta que remuneram o investimento realizado em terras de altitude”, afirma Rui Soares, diretor de Viticultura da Quinta de Cidrô, Quinta dos Aciprestes, Quinta do Casal da Granja e Quinta do Síbio. Tradicionalmente “menos valorizadas em relação às propriedades ribeirinhas”, as propriedades mais distantes do rio “têm menor valor para a produção de Vinho do Porto” dado o ‘benefício’ atribuído, ou seja, no caso de Cidrô, letra D. Terreno ideal para lançar vinhos inovadores. 

Nascia então uma “divisão” dentro da empresa que ficaria responsável pelo trabalho precursor no estudo e na proteção das castas mais adequadas às suas diversas propriedades. Se, em Cidrô, a experimentação prendia-se em grande parte com as castas ditas internacionais (mas, para sermos justos e contrariando as críticas que sempre se fizeram ouvir quanto a este trabalho, apostaram também nas variedades autóctones, procurando sempre o melhor comportamento de cada uma nos diferentes terroirs e parcelas), em outras propriedades, como a Quinta das Carvalhas, o esforço foi feito no sentido do estudo e recuperação das castas autóctones que residem nos mais de 120 hectares da propriedade, entre as quais vinhas velhas com mais de 100 anos.

As Carvalhas de Álvaro Martinho

Foquemos-nos então na Quinta das Carvalhas e deixemo-nos enlevar por Álvaro Martinho Lopes, diretor de viticultura da propriedade. O seu apego e conhecimento da quinta são já bem conhecidos, mas fazer uma visita às Carvalhas com Álvaro Martinho faz-nos sentir a fundo o pulsar desta terra em toda a sua diversidade, riqueza e história. Localizada no Cima Corgo, na margem esquerda do rio e no coração do Douro, trata-se de uma quinta histórica, com registos que montam há mais de quatro séculos. “Apresenta-se como um cone” e possui 500 hectares em área total, dos quais 135 de vinha, com “diferentes exposições, desde Norte/Nascente a Sul/Poente”, a que se juntam “cotas díspares, de 100 a 550 metros, com várias idades de vinhas, desde um ano a mais de 100 anos”, acrescenta. “Estas variáveis conjugadas fazem com que a Quinta das Carvalhas seja uma propriedade onde podemos produzir várias qualidades de vinhos”.

A importância das vinhas velhas não se fica apenas pelo registo histórico. “Numa região como o Douro, muito heterogénea, que representa 0,47% da área agrícola do mundo, com uma certa fragilidade, baixa produção por hectare, solos pobres e clima agreste, o que nos salva é esta nossa singularidade na produção”. As vinhas velhas são, por isso, “autênticos laboratórios vivos de biodiversidade”, afirma Álvaro Martinho. Desde logo, “são ponto de partida para plantar vinhas novas com material original”, trabalho fundamental para a sua gama de vinhos Series. Entre as vinhas velhas estão a Costa da Barca, a vinha com maior número de castas misturadas, superior a 50 variedades. Outras duas consideradas emblemáticas: Cartola e Raposeira. No primeiro caso, na complexa mistura de castas encontram-se Touriga Franca, Moureto, Rufete, Tinta Barroca e Tinta Bastardinha. Na segunda, destacam-se Touriga Franca, Tinta Amarela, Rufete, Mourisco, Barroca, Tinta Roriz, Tinta Francisca, Tinto Cão ou Touriga Nacional. 

Castas misturadas, sem qualquer regra, desde logo porque “as temos”. Uma reflexão que, parecendo evidente, tem mais que se lhe diga. Até porque “o lugar sobrepõe-se muitas vezes à casta”. Outra razão da mistura de castas prende-se com “a divisão do risco de produção”, pois há um século atrás “não existiam os meios de controlo de produção atuais”. Por outro lado, “o Douro é uma região de monocultura, em que a dependência da vinha é total. Se plantarmos duas castas o fator de risco é 50%; se plantarmos dezenas o risco é atenuado”, acrescenta. Terceiro fator: “o Vinho do Porto ainda é o negócio principal da região, em que o lote é determinante”. Assim, o responsável da Quinta das Carvalhas refere a obrigação que sentiu com vista a estudar “a individualidade de cada casta”, pelo que “a vinha velha é um baú com muitos brinquedos”. Quando se fala em alterações climáticas e nos excessos do clima, “a melhor forma de os combater é através da genética das castas autóctones”. 

As mulheres de Álvaro Martinho

A Quinta das Carvalhas é também heterogeneidade, em que a mata mediterrânica, o olival, a biodiversidade, os javalis ou a avifauna acrescentam vida à vinha. Em 1999, foi decidido avançar com um plano de reabilitação da propriedade. Um dos aspetos em que atuaram foi na mão de obra. E é fácil perceber porquê: “Entre 70 a 80% dos custos de produção de uma quinta no Douro estão na mão de obra. À semelhança de toda a região, tínhamos um grupo de pessoas mais idosas, pouco estimuladas, que trabalhavam na vinha como último recurso, com salários pouco estimulantes. A mulher era remetida ao trabalho secundário e pagava-se menos. Mudamos esse paradigma, com pessoas mais jovens, melhores salários e condições, e a contratar mais mulheres, com salários iguais para homens e mulheres”, assegura Álvaro Martinho.

A viticultura “não tem de ser uma atividade de esforço: estamos no século XXI, temos máquinas, estações meteorológicas, temos informática”, pelo que “era fácil introduzir a simplicidade e remover a penosidade dos trabalhos”. Por outro lado, “sabemos que o trabalho da vinha é um trabalho táctil, de mãos, em que é importante o tempo que vai entre o que se pensa e se executa, para aumentar a eficiência; e sabemos que as mulheres são muito melhores do que nós”. E isso é vísivel em trabalhos que representam 75% dos custos de produção da quinta, “de grande delicadeza” e muito “importantes como a poda, a poda em verde ou a colheita, em vinhas com 100 anos e 50 variedades, em que é preciso selecionar”. Hoje, “80% das pessoas que trabalham comigo na vinha são mulheres, das quais um grupo que está cá desde 2000”. Nestas vinhas velhas chegam a trabalhar 80 pessoas por ano por hectare, disse aquele responsável. Os custos de produção de uma vinha velha, não mecanizada, ascendem a 800 horas/ha, enquanto numa vinha nova são de 500 horas/hectare. Por isso, “vinhos de 2/3 euros não são competitivos para nós”, conclui.

Os vinhos Carvalhas

O percurso de Jorge Moreira como enólogo é indissociável da Real Companhia Velha, apesar do seu portefólio englobar outras marcas e regiões. Mas é o próprio quem confessa que a Quinta das Carvalhas é aquela “que nos dá mais prazer trabalhar, pois é a que tem mais personalidade”. Desde logo porque apresenta “grande diversidade, com uma parte importante voltada a Norte, que oferece matéria prima com que gosto de trabalhar, para além da exposição sul”, a que se juntam “diferenças de altitude de 400 metros”. Alie-se “a diversidade de castas, que permite produzir, com alta qualidade, quase todos os tipos de vinhos que possamos imaginar”. 

Por isso, “nas Carvalhas conseguimos mostrar o que o Douro tem de especial, que é apresentar todos os mundos: de forma simplista, temos o Novo Mundo e o Velho Mundo, ou seja, regiões quentes e regiões frias. Há grandes vinhos do mundo oriundos de regiões quentes, com a gordura, a complexidade e a generosidade de grandes maturações; e grandes vinhos do mundo de regiões frias, com frescura, elegância, comprimento de prova e capacidade de envelhecimento”. O Douro “tem a concentração, complexidade e expressão aromática de uvas muito maduros mas mantém a frescura, acidez e tensão de boca das regiões frias. Nas Carvalhas agrupamos num vinho só o que existe de melhor em todo o mundo do vinho”, resume.

A marca Carvalhas

E, por isso, o posicionanento da marca Carvalhas é determinante, assegura Pedro O. Silva Reis, Fine Wine Manager da RCV. O membro mais jovem da equipa é também um dos seus elementos mais dinâmicos que, tal como os restantes, acredita no papel do conhecimento, da investigação e da experimentação. Talvez por isso, aquando da nossa visita, referiu estar a preparar-se para um mês de vindima… em Ribera del Duero, nos domínios Pingus. 

Mas nunca perde de vista o seu horizonte: a quinta “é muito emblemática para nós, pois é onde está a casa da família, há um valor sentimental muito grande”. Este projeto transporta assim um “sentido de tradição, com as vinhas velhas, as lagaradas”, no fundo, “a originalidade e tipicidade” durienses. Por isso, a empresa assume a marca Carvalhas como a marca de topo da empresa.

Nesse posicionamento, o turismo desempenha um papel cada vez mais preponderante. “Em 2018 recebemos 15 mil pessoas nas Carvalhas”, nota Pedro Silva Reis. Representa um fator central “no que toca ao marketing e à fidelização dos nossos vinhos e marcas”. E o projeto vai crescendo. Após o investimento na loja e na Ruína, localizada em plena vinha de montanha para provas a céu aberto, foi inaugurado recentemente o Carvalhas Terrace, esplanada sobre o Douro com vista privilegiada para o rio e o Pinhão. Foi também concluída a recuperação da estrada de acesso à Casa Redonda, no topo do ‘cone’, com 3,5km de extensão, virada a sul/poente, que garante fins de tarde únicos.

A sustentabilidade

Um dos aspetos a que a RCV deu mais importância ao longo de todo este percurso de investigação e experimentação é a sustentabilidade. Não apenas nas Carvalhas, mas em todas as suas quintas. Detamo-nos, por ora, na primeira propriedade. Segundo Álvaro Martinho, “85% área de vinha do mundo é plana”, onde “tudo é mais fácil” e 100 a 120 horas de trabalho por hectare/ano resultam em 7 a 15 toneladas de uvas. No Douro são necessárias 500 horas/ano para produzir 3 a 4 toneladas. Ou seja, “três videiras para produzir uma garrafa contra uma videira para produzir garrafa e meia”. Mas há outros desafios na viticultrua de montanha, como a erosão dos solos. Entre 2002 a 2017 “houve uma redução de pesticidas na ordem dos 70 a 80%. Não usámos um litro de inseticida desde 2010/2011 em toda a companhia. Reduzimos os herbicidas a menos de um terço da área de vinha. Uma vinha bonita para nós hoje, é uma vinha com coberto vegetal”. 

Contudo, para a Real Companhia Velha, não interessa só a vinha, mas tudo. Como refere Rui Soares, “privilegiamos a biodiversidade funcional, combater a natureza com a natureza, manter a biodiversidade, fomentar a plantação de plantas endémicas”. A gestão de resíduos levou-os a transformar um problema numa solução. Todos os anos pagavam para incinerar os seus resíduos. Em 2016 desenvolveram um projeto em parceria com a UTAD, englobando o aproveitamento de subprodutos da vinificação para a produção de um fertilizante rico de grande qualidade. Este composto orgânico, completamente isento de patogénicos, tem origem no engaço da uva e nas lamas provenientes da sua adega, após depuração das águas pela sua ETAR. Completa o círculo. “Vem da terra, finaliza na terra!”, destaca Rui Soares. 

É assim que Álvaro Martinho define “terroir”:  “vem da palavra terra!”, “terra, não do solo, mas da sua origem, como que a perguntar ao vinho, de que terra és?” Parece que esta reportagem é sobre o Álvaro Martinho. E é. Mas é também sobre o Jorge, o Rui, o Pedro (filho) e o Pedro (pai). Porque todos eles são as Carvalhas, todos eles viram o que outros não viram (ou não quiseram ver). E nós, em cada vinho, em cada garrafa, em cada casta, em cada visita, celebramos a sua visão. 

TEXTO: Manuel Moreira e Marc Barros