Quinta de Lourosa: as vinhas da flor de lis

Fotografia: Ricardo Garrido
Marc Barros

Marc Barros

A cerca de 30 minutos do Porto, na sub-região do Sousa dos Vinhos Verdes, entremeada pela Rota dos Vinhos Verdes e os caminhos do Românico, a Quinta de Lourosa, em Lousada, é uma das propriedades mais relevantes da região, não apenas pela beleza pictórica, mas também pelos pergaminhos históricos e pela ciência e inovação vitícola que aí se produzem.

 

Quando o tema é a Quinta de Lourosa, de imediato pensamos no trabalho precursor de Rogério de Castro, professor catedrático do Instituto de Agronomia de Lisboa, e no sistema de condução em Lys que desenvolveu. A quinta era pertença de um tio-avô do atual proprietário, cujas raízes familiares remetem para Gondomar, onde desenvolveu a sua paixão pela agricultura. Porém, as origens da quinta, que possuía cerca de cinco hectares quando, através de partilhas, passou para as mãos do académico, remontam ao século XVII, com registos datados de 1675.


Atualmente, os filhos Joana e Nuno partilham com o pai a responsabilidade de gestão da propriedade, cabendo a Joana a enologia. Hoje com cerca de 30 hectares (que obrigaram a escriturar dezenas de artigos rústicos), dos quais 15 hectares em modo totalmente mecanizado, o encepamento da quinta compreende as castas típicas da região, como Loureiro, Alvarinho (4 clones de Alvarinho e 5 clones de Loureiro), Arinto, Avesso, Vinhão e um pouco de Touriga Nacional. Aqui encontramos também uma vinha mais velha de dois hectares, com 35 anos de idade, na zona de maior inclinação da quinta, superior a 20%. Batizada pela família Vinha da Encosta, é a primeira vinha ao alto da região dos Vinhos Verdes – destes sete artigos originais nasceu o Vinha do Avô, nome que foi dado à vinha pelos netos de Rogério de Castro e que corresponde a uma edição limitada comemorativa da primeira vinha contínua da quinta.

Porém, é o sistema de vinhas em Lys que predomina na Quinta de Lourosa. Trata-se, como nos explicou o investigador, de um “conceito de sistema de condução plurispacial”, que tem como palavras chave a “adequação” e “ergonomia”.

É o próprio Rogério de Castro quem admite que este é “um projeto sempre em construção, que tinha na origem vinhas em ramada e algumas ainda em enforcado”. Inicialmente, a viticultura da quinta seguia “o sistema de produção próprio da região, com hortícolas e milho, com vinha na bordadura”. As ramadas foram mantidas, “por razões histórias, de património e tradição, mas demos uma volta completa. Procuramos inspirar-nos no que era a viticultura tradicional da região, mas em permanente atualização”, afirma.

A vinha em Lys “surgiu da observação atenta do modo como os podadores empíricos, analfabetos, podavam as vinhas de enforcado”, recorda. “Registei o modo como as varas ascendentes, com mais vigor, produziam varas retombantes” (descendentes). Estas “produziam menos uvas, definhavam e perdiam vigor, eram jogadas fora e produziam-se novas varas, com mais vigor. A condução da vinha e a poda eram feitas aproveitando as varas mais vigorosas”. Rogério de Castro verificou ainda que, nas vinhas do Dão e da Bairrada, “com plantas mais pequenas”, os viticultores introduziam “algo semelhante”, em vinhas “espraiadas, com muitas bifurcações” e “aproveitando a vegetação ascendente, até um pouco anárquica”. Quase em simultâneo, “tomei conhecimento de investigações semelhantes feitas em Davis, na Califórnia”. “Curiosamente, estudavam aquilo que praticavam os viticultores dos Vinhos Verdes, da Bairrada e do Dão”. A certa altura, “comecei a fazer qualquer coisa, que não se chamava Lys, e a dividir a vegetação”, para “criar janelas” e “para que o microclima, na zona dos cachos, sobretudo, fosse melhorado”. Objetivos? “Facilitar a maturação, ter níveis de produtividade satisfatórios, boa qualidade da uva, menos tratamentos, e mais eficientes”. Tudo isto “controlando o vigor, porque o sarmento que cresce na vertical – ascendente - tem um ritmo de crescimento quatro vezes superior, em média, ao sarmento da mesma cepa que cresce de forma descendente, ou retombante”. “Percebi que os trabalhos feitos em Davis tinham chegado à mesma conclusão. Fizemos ensaios em cinco ou seis castas, em diversas regiões, e de facto era uma constante”, recorda.

Do CAR ao Lys

O Lys surge com a sistematização destas conclusões. Trata-se de um sistema “ergonómico”, em que uma parte é ascendente e a outra é retumbante. Inicialmente, Rogério de Castro chamou-lhe CAR – Cortina Ascendente e Retombante. “Fizemos vários ensaios, com colegas de França e Itália, Carbonneau e Cargnello, aqui na quinta, e o Carbonneau mandou um fax, na época, sugerindo que este sistema, quando feito um corte transversal, fazia lembrar a flor de lis”. E assim ficou cunhado.
Convém precisar que “o Lys não é uma forma, é um conceito dinâmico, porque a vinha é uma máquina biológica, que consome energia e capta energia”, reforça o agrónomo. Com este modelo, “capta mais energia e produz mais energia, ou seja, uvas de qualidade, com teores de álcool e acidez conforme o pretendido”. No fundo, acrescenta, são “formas plurispaciais – hoje sabe-se que quando as folhas estão muito presas fotossintetizam menos, aquecem demais e favorecem o escaldão”. Assim, pretende-se introduzir “alguma vibração e evitar vinhas demasiado presas e contíguas, prática que se seguiu durante gerações, com vinhas mais bonitas mas menos rentáveis em termos fotossintéticos”, nota. Em simultâneo, procura-se “favorecer a mecanização”.


Na prática, o Lys implementa a separação de sebes, passando de um eixo único permanente e unilateral para dois eixos permanentes e bilaterais. Assim, este sistema é constituído por uma forma ascendente e descendente, formada por uma espaldeira simples ascendente e uma dupla retombante. Fisicamente, geram-se dois níveis de produção diferenciados, separados entre si por um espaço que Rogério de Castro chama “janela”.
A evolução do sistema é notória, sendo que o suporte físico desta tridimensionalidade assentava inicialmente num travessão, com cerca de 35 cm, na estrutura da armação, colocado perpendicularmente ao poste. Porém, este travessão constituía uma barreira à mecanização, pelo que o sistema evoluiu para uma forma sem espáduas, viabilizando as operações mecânicas, incluindo podas e vindima.

Cada sistema “é mais adequado a cada tipo de casta” e esse é, para o cientista, “um ponto nevrálgico”. Ou seja, diz, “é essencial conhecer os hábitos das castas e depois adequá-los a cada sistema”. Ao longo da história da viticultura são considerados fundamentalmente dois sistemas de condução: poda curta Royat e poda longa Guyot. “Sempre houve preocupação em defender um ou outro, quase como se existisse uma disputa entre estes dois critérios”. Com o sistema Lys “foi encantador descobrir que se consegue trabalhar na mesma cepa dois sistemas que parecem antagónicos” mas que, na prática, “são complementares”. De forma simples, explica: “Royat, poda mais mecanizada, Guyot, menos mecanizada”. E dá como exemplo a casta Loureiro: “Se a parte ascendente e retombante forem podadas da mesma forma temos mais acidentes com o passar das máquinas, pois partem mais varas. Por isso trabalhamos com Guyot na parte retumbante e Royat na parte ascendente, na mesma cepa”.
Assim, na parte superior, a poda é feita em vara longa tipo Guyot, a vegetação é elevada e conduzida com arames móveis. Já na parte inferior, a poda é feita em varas curtas, em cordões secundários que geram duas sebes retombantes distintas. A parte descendente possui largura considerável e torna as despontas laterais indispensáveis. 

Tudo isto, já hoje, mecanizável. “De um Lys simplificado passamos a ter capacidade para vindima mecânica e poda mecânica total. Essa conjugação, a que se junta a vibração da folhagem, mais liberta e menos compactada na parte conduzida, com janelas e descontinuidade, e totalmente espraiada na parte retombante, evita sobreaquecimento das folhas”, resume Rogério de Castro.
Este resultado é sobremaneira importante num cenário de alterações climáticas. “Pela sua adaptabilidade e constante evolução, o sistema Lys faz todo o sentido”, considera. Desde logo face “ao sobreaquecimento e escaldão pois, quando as folhas estão muito presas, seja qual for o sistema, aquecem mais e mais rapidamente, fecham para não perderem água e o escaldão é mais rápido”. Este conceito “espraiado, de divisão da vegetação, é mais adequado perante o desafio das alterações climáticas”.

Também o enrelvamento entrelinhas joga parte importante nesta dinâmica. “Consoante o tipo de solo, podemos ter mais ou menos vegetação”. Em solos pobres, “o recurso a leguminosas e gramíneas em consociação, muitas vezes espontâneas”, propicia não apenas “a captação de azoto”, mas “oferece um piso melhor para se trabalhar”. E “é na qualidade do corte, em termos de oportunidade, que está um jogo interessante, pois podemos induzir autossementeira”. Por outro lado, “quando se mecaniza mais, aumenta-se a exigência da qualidade do piso”. Por isso, “quando se mobiliza muito, criamos mais irregularidade, em que qualquer vibração do terreno reduz a qualidade, a velocidade das máquinas e o rendimento do trabalho mecânico”. 
Por último, mas não menos importante, está a ergonomia das operações. Sendo o grosso dos trabalhos manuais feitos ao nível do peito do trabalhador, este sistema minimiza a penosidade do trabalho e induz o aumento de produtividade do trabalhador e, até, a alegria do trabalho.

Os vinhos e o turismo

Todo este trabalho resulta em algo mais do que artigos científicos, apresentações em congressos e inúmeras teses, dissertações ou relatórios de estágio. Ao melhorar o microclima dos cachos, facilita a exposição dos sarmentos, particularmente os da sebe retombante, propicia menor ocorrência de doenças e pragas, maturações mais bem conseguidas devido à incidência direta da luz e do sol e ganhos na qualidade dos mostos e vinhos.
A enóloga Joana de Castro explica que a região dos Vinhos Verdes oferece já uma série diferenciada de perfis de vinhos, desde “o típico fresco e jovem, com gás, aos vinhos mais estruturados”. O produtor oferece duas linhas: os vinhos de entrada, “pensados numa vertente mais fresca e aromática, que vão de encontro à tipicidade da região, mais fáceis de beber, de consumo jovem”, e os vinhos que “refletem a imagem da quinta”. Esta linha subdivide-se no Colheita, um lote das castas típicas Arinto, Loureiro e Avesso, “cuja percentagem vai alterando em função das características do ano, de baixa graduação, estruturado, que acompanha vários pratos”. 

Desde 2010, a Quinta de Lourosa elabora um monocasta Alvarinho, parte fermentado com recurso a barrica de carvalho francês usada. Trata-se de um vinho que precisa de evoluir na garrafa. Joana refere que “a nossa filosofia é mais de parcela do que de casta”, pois “para todos os nossos vinhos fazemos vinificações monocasta durante a vindima e depois fazemos lotes”. Mesmo o Alvarinho, que tem cerca de 10% de Arinto, “fermenta parte em barrica com leveduras endógenas e parte em inox com leveduras comerciais, em lote”. A prova do Quinta de Lourosa Alvarinho e Arinto 2011 mostra belíssima complexidade aromática nas notas terciárias de frutos secos, citrinos maduros, ainda de imensa vivacidade, bom volume e estrutura, glicerinado, acidez citrina, um vinho senhorial. Também o exemplar de 2019 mostra a mesma aptidão para guarda, apesar de dar muito prazer desde já, com as suas notas de fruto de caroço, citrino e flores brancas, acompanhado pela acidez assertiva e fresca.

Entre as 100.000 garrafas anuais que a Quinta de Lourosa elabora, destacam-se ainda os espumantes, nas categorias branco, tinto e rosé, sendo que o tinto “é já a nossa imagem de marca, num espumante clássico de Vinhão e Touriga nacional, com fruta exuberante, que acompanha bem uma refeição”. Com 70% da produção destinada aos mercados externos, a intenção da Quinta de Lourosa é, a seu tempo, chegar às 250.000 garrafas.
O enoturismo é parte dessa estratégia. A casa rústica foi totalmente recuperada, oferecendo sete quartos, uns rústicos e outros mais modernos. Os programas incluem visitas às vinhas e à adega, piqueniques, workshops, ações de team building, entre outros. A pandemia reforçou a notoriedade do turismo e “em 2021 batemos o recorde de faturação, apesar de termos estado fechados alguns meses”, salienta Joana de Castro. “Este ano verificamos um aumento de reservas de estrangeiros, sobretudo franceses e espanhóis”. A localização da propriedade, perto do Porto e a caminho do Douro, confere-lhe uma centralidade importante, que leva Joana a considerar que o “enoturismo veio para ficar”.

 

Quinta de Lourosa
Estrada Santa Maria de Sousela, 1913
4620-469 Sousela - Lousada
T.255815312
M.963213655
E.info@quintadelourosa.com